segunda-feira, 1 de agosto de 2011

As Eleições Municipais de São Paulo em 1928 e 1936 — Parte 2/2


Armando de Salles Oliveira

No dia em que os destinos do povo passarem para as mãos de quem se caprichar em evitar a nefasta ação do partidarismo político; em que ficar bem estabelecida e nítida a distinção entre os interesses gerais e os particulares; em que usufruirmos a suprema ventura de observar o “habeas animam” com a mesma popularidade do “habeas corpus”, e em que, afinal, perante os governantes, os patrícios não se dividirem entre gregos e troianos, aí sim, se iniciará a era do já afamado governo forte. (Marrey Jr., 1936)

O prestígio do Partido Democrático foi inteiramente englobado pelo novo interventor, o engenheiro Armando de Salles Oliveira. Empossado em agosto de 1933, ele era civil e paulista, como vinha sendo solicitado por São Paulo desde o golpe de 30, mas não um civil paulista apagado e desconhecido como Laudo Camargo e nem idoso e sem traquejo para a política atual, como Pedro de Toledo. Salles era jovem, preparado, inteligente, tinha ligações profissionais com o Estadão (ficou à frente do jornal durante a levante de 32), relações pessoais com os principais líderes revolucionários paulistas (era casado com Raquel, irmã de Júlio Mesquita Filho), e possuía malícia e desprendimento necessários para entrar em qualquer tipo de entendimento com um ditador insensível e acanalhado como Getúlio, que lograra, com sua inércia e sua incapacidade de tomar uma decisão, açular um Estado a ponto de jogá-lo em uma luta fratricida que poderia ter sido tranqüilamente evitada. Uma de suas primeiras providências como interventor foi o damage control no PD. O partido estava agonizando e era preciso fazer algo urgentemente. Estando ausentes do cenário eleitoral tanto Marrey quanto os demais descontentes com a Frente Única, Salles astutamente passou uma borracha nas desavenças nascidas dos levantes de 30 e 32 e organizou o Partido Constitucionalista, “uma síntese das aspirações que as duas revoluções defenderam”, para reunir sob uma única sigla os membros do PD, da Ação Nacional Republicana (dissidência do PRP) e da Federação dos Voluntários.

O objetivo primordial, evidentemente, estava nas eleições de outubro de 1934 para a Câmara Federal Ordinária — a função dos eleitos em maio de 33 era exclusivamente a elaboração e promulgação da nova Carta Constitucional. Realizada a missão, eles deixariam o congresso em março de 35, dando lugar aos eleitos em outubro, que exerceriam um mandato de 4 anos — e para as Assembléias Constituintes Estaduais. No dia 24 de fevereiro, quando completaria oito anos, o PD deixou de existir e nasceu o PC, Partido Constitucionalista. Em 16 de julho a Constituição foi promulgada, Getúlio Vargas proclamado “presidente Constitucional” — contra o voto dos perrepistas, que lançaram a candidatura simbólica de Borges de Medeiros — e a Chapa Única dissolvida. O PRP e o agora PC voltaram a ser adversários. Com efeito, a criação do PC foi uma forma de filtrar a população entre aqueles que estavam a favor da reconstitucionalização com Getúlio na presidência, e aqueles que viam aquilo como puro adesismo e exigiam um retorno à normalidade democrática e às eleições livres imediatamente. Sobre os métodos eleitorais utilizados pelos “peceístas”, como passaram a ser chamados os próceres do novo partido, é interessantíssima a descrição do historiador Plínio de Abreu Ramos:

Dissolvida a Chapa Única em julho de 1934, o Partido Constitucionalista usou dos mesmos artifícios de pressão política que o PRP exercera contra seus adversários ao longo de 36 anos de domínio. Armando participou pessoalmente da campanha, percorrendo os principais municípios paulistas, formando diretórios e capturando para o seu partido influentes chefes perrepistas do interior que não tinham condições de sobreviver politicamente sem a assistência cartorial dos favores governamentais. Vários comícios perrepistas foram dissolvidos na Capital, sendo que, em um deles, a polícia interveio precisamente no momento em que discursava o tribuno Ibrahim Nobre. Enquanto o Correio Paulistano, órgão do PRP, tinha sua ação limitada pela censura, O Estado de S. Paulo publicava amplas reportagens devassando todo o passado do PRP. (DHBB, volume IV. FGV, 2001)


Como se vê, bastou um ano de poder em São Paulo para que os Democráticos se corrompessem e passassem a incorrer exatamente nos mesmos vícios do regime anterior. De uma forma ou de outra, antes que os deputados estaduais fossem eleitos, Armando de Salles acabou com a dança das cadeiras que virara a prefeitura de São Paulo e, em 7 de setembro de 1934, nomeou o sobrinho de Antônio Prado, Fábio Prado, para o comando do Executivo paulistano.

Propaganda pra lá de apelativa do PC
para a eleição de 1934

Em 14 de outubro de 1934 vieram as novas eleições legislativas e naquele primeiro momento, o grupo ligado a Salles e à nova ordem política levou a melhor. A Chapa Única, incluindo quadros notáveis do PRP, pulou quase integralmente para o PC e os Constitucionalistas elegeram 22 deputados para os trabalhos ordinários da Câmara Federal, a partir de março de 1935: Abelardo Vergueiro César, Antônio Barros Penteado, Antônio Carlos de Abreu Sodré, Carlos de Moraes Andrade, Carlota Pereira de Queiroz, Cardozo de Mello Netto, António Castilho Alcântara Machado d’Oliveira (autor de Brás, Bexiga e Barra Funda e filho de José Alcântara Machado), Antônio Pereira Lima, Aureliano Leite, Francisco Alves dos Santos Filho, Francisco Oscar Penteado Stevenson, Horácio Laffer, João Alves de Meira Junior, João Rodrigues de Miranda Junior, Joaquim Sampaio Vidal, Justo Rangel Mendes de Moraes, Luiz Barbosa da Gama Cerqueira, Luiz de Toledo Piza Sobrinho, Paulo Nogueira Filho, Ranulfo Pinheiro de Lima, Teotônio Monteiro de Barros e Waldemar Ferreira.

O PRP elegeu apenas doze deputados para essa nova fase da Câmara: Álvaro Teixeira Pinto Filho, Antônio Bias da Costa Bueno, Cid de Castro Prado, Cincinato Braga, Félix Ribas, Heitor Macedo Bittencourt, Henrique Jorge Guedes (que chegou a ser prefeito de São Paulo entre dezembro de 31 e maio de 32, e mesmo assim permanecia no PRP), João Batista Gomes Ferraz, José Alves Palma, Laerte Setúbal, Manoel Hipólito do Rego e Roberto Moreira. Foi o prenúncio de uma derrota ainda maior; aquela que o PRP sofreria na Assembléia Legislativa paulista, onde, pela primeira vez em décadas, deixaria de ser maioria.

O legislativo estadual de São Paulo continha 75 cadeiras, sendo que 15 estavam reservadas para os deputados classistas (inovação que ocorreu a nível nacional e também fez parte do Congresso Constituinte; era uma tentativa capenga e mal planejada de inserir patrões, empregados e demais representantes do operariado, do comércio e da indústria entre os legisladores, e não passou das eleições de 33 e 34). Cinco partidos apresentaram candidatos: o PRP, o PC, o PCB (Partido Comunista Brasileiro), o PSB (Partido Socialista Brasileiro) e a AIB (Ação Integralista Brasileira). Das 60 cadeiras disputadas, o PRP conseguiu apenas 22 contra as 36 do Partido Constitucionalista. O PSB emplacou a eleição de Romeu de Campos Vergal e a AIB elegeu João Carlos Fairbanks, que lançou seu nome tanto para a Constituinte Federal quanto para a Estadual. 

Em sentido horário: Paulo Duarte,
Bento de Abreu Sampaio Vidal, Thiago Masagão e Romão Gomes


Eleitos pelo PC: Alarico Franco Caiuby, Antônio Carlos Pacheco e Silva, Aristides Bastos Machado, Aristides de Macedo Filho, Benedicto Montenegro, Bento de Abreu Sampaio Vidal, Cândido Motta Filho, Carlos de Moraes Barros, Carlos de Souza Nazareth, Cássio da Costa Vidigal, Celso Torquato Junqueira, Clóvis de Paula Ribeiro, Cory Gomes de Amorim, Dante Delmanto, Elias Machado de Almeida, Ernesto de Moraes Leme, Eugenio de Toledo Artigas, Francisco Mesquita, Francisco Vieira, Henrique Neves Lefévre, Henrique Bayma, Joaquim Celidônio Gomes dos Reis Filho, José Augusto de Souza e Silva, Laerte Teixeira Assumpção, Manfredo Antônio da Costa, Maria Thereza Nogueira de Azevedo, Maria Thereza Silveira de Barros Camargo, Mário Pinto Serva, Oscar Cintra Gordinho, Paulo Duarte, Renato Bueno Netto, Romão Gomes, Sylvio de Andrade Coutinho, Thiago Masagão, Valdomiro Silveira (que depois de renunciar a seu mandato de deputado federal constituinte para trabalhar no secretariado de Armando de Salles, ocupou duas secretarias e se candidatou à constituinte estadual, obtendo expressiva vitória) e Valentim Gentil.

Eleitos pelo PRP: Adhemar de Barros, Alberto Americano, Alfredo Ellis Junior, Carlos Cyrillo Junior, Décio Pereira de Queiroz Telles, Diógenes Ribeiro de Lima, Epaminondas Ferreira Lobo, Frederico José Marques, Innocencio de Assis Carvalho, Ismael Torres Christiano, João Baptista Ferreira, José Bastos Cruz, José de Almeida Sampaio Sobrinho, José de Moura Rezende, Luiz Fernandes de Abreu, Luiz Pereira de Campos Vergueiro, Manoel Carlos de Siqueira, Mariano de Oliveira Wendel, Miguel de Abreu Pereira Coutinho, Oscar Thompson, Sebastião de Magalhães Medeiros, Tarcísio Leopoldo e Silva.

Maria Thereza Nogueira de Azevedo
Há figuras dignas de comentários e análises nessa legislatura, inclusive Diógenes Ribeiro de Lima, vereador da canalhíssima legislatura de 1928, e o jovem Adhemar Pereira de Barros, que começou ali sua carreira política. Dentro de um contexto sociológico, porém, não se pode deixar de consignar a eleição das duas Marias Therezas eleitas pelo Partido Constitucionalista, primeiras representantes femininas em um parlamento paulista: Maria Thereza Nogueira de Azevedo e Maria Thereza Silveira de Barros Camargo. Azevedo era representante de Campinas e notabilizou-se pelos serviços prestados à resistência feminina na Revolução de 32. Fundou e secretariou a Associação Cívica Feminina e a União Feminina Paulista, ligadas à campanha da Chapa Única, além de integrar a comissão do monumento a Anchieta e o Conselho Consultivo da Faculdade Paulista de Medicina.

Maria Thereza de Barros Camargo

Já Barros Camargo, natural de Piracicaba, era um exemplo raríssimo de mulher emancipada, e não era aquela a sua primeira experiência com política. Viúva do empresário limeirense Trajano de Barros Camargo, que morreu prematuramente, aos 40 anos, em 1930, Maria Thereza assumiu todos os negócios do marido, como empresas em Santos e Limeira, e uma fazenda em Brotas. Em Limeira, contudo, ela concentrava suas atividades. Fundou a Associação Cívica Feminina daquele município, e se destacou no esforço de guerra, prestando grandes serviços à Assistência às Famílias dos Voluntários, ao Curso de Enfermagem e ao Hospital do Sangue de Limeira. A recompensa por essa larga folha de serviços prestados ao município e ao Estado veio em 1933, quando Armando de Salles, em gesto pioneiríssimo, a nomeou prefeita de Limeira por alguns meses. Com efeito, Maria Thereza foi a primeira mulher a assumir uma prefeitura no Estado de São Paulo, e uma das três ou quatro primeiras no Brasil inteiro. Eis o que se diz sobre Maria Thereza em publicação do PC:

Construindo escolas, abrindo e melhorando estradas, dirigindo severamente as finanças municipais, empreendendo melhoramentos de toda sorte, dona Maria Thereza Silveira de Barros Camargo aparece como verdadeira técnica em problemas municipais e urbanísticos, surpreendendo mesmo aqueles que já lhe conhecem o valor. (...) É uma figura singularmente ativa e eficiente de mulher moderna que, se apropriando daqueles valores de cultura e ação que em nosso país pertencem mais freqüentemente aos homens, conservou as suas excelsas qualidades feminis de dedicação e de bondade, fineza de espírito e de sentimentos. (Campos, Calazans de (org.). Candidatos do Partido Constitucionalista. São Paulo, PC, 1934)
 
A Assembléia Constituinte de São Paulo iniciou seus trabalhos em abril de 1935. No dia 11 Armando de Salles foi eleito “governador constitucional” (derrotando Altino Arantes, lançado pelo PRP) e na disputa pelas duas vagas ao Senado Federal (que na época eram votadas e eleitas pelos deputados estaduais), Paulo de Moraes Barros e Alcântara Machado levaram a melhor sobre os candidatos do PRP, Oscar Rodrigues Alves e Mário Tavares. A Constituição Paulista foi promulgada em 9 de julho de 1935. Terminada sua elaboração, não houve um segundo pleito para a Assembléia Ordinária, que acabou composta pelos próprios constituintes. A nível nacional, os comunistas deram seu grande passo em falso com a Intentona de novembro. Prestes, o PCB e toda a ANL foram para a ilegalidade e Vargas decretou Estado de Sítio.

Em sentido horário: Alcântara Machado, seu filho António de Alcântara Machado, Almeirindo Meyer Gonçalves e Oscar Cintra Gordinho

Passados quatro anos desde o golpe de 1930, o quadro político se alterara substancialmente. Os Democráticos e atuais Constitucionalistas sentiram o gosto do poder e preferiram acreditar cegamente que Getúlio tivesse, de fato, alguma pretensão democrática em seu futuro. Os perrepistas, por sua vez, utilizavam o mote dos mandatos “constitucionais”, outorgados pela Constituinte, para atacar o “adesismo” dos Constitucionalistas e a morosidade do retorno à democracia. O problema é que as tais “clivagens” ideológicas de que fala ocasionalmente a socióloga Regina Sampaio estavam funcionando a todo vapor, então já não era mais tão fácil saber quem era contra o quê, quem perdera e quem vencera no golpe, e nem a quem realmente pertencia o poder. Compreendia-se, por exemplo, que os modernistas António de Alcântara Machado e Cândido Motta Filho se desgarrassem da orientação perrepista de seus célebres pais, mas que o velho Alcântara Machado, ou um notório conservador como Bento Abreu de Sampaio Vidal estivessem no PC, era no mínimo curioso. Também não se sabia ao certo o que um plutocrata como Oscar Cintra Gordinho — rejeitado em todas as listas de possíveis sucessores de Waldomiro de Lima — estava fazendo no meio dos constitucionalistas. Verdade seja dita, era Democrático de primeira hora. Estranho, mesmo, foi o PC ter permitido que Almeirindo Meyer Gonçalves — também vereador da legislatura eleita em 30 de outubro de 1928 — se candidatasse a deputado estadual pela legenda constitucionalista.

Todas essas semelhanças e diferenças foram amplificadas imensamente assim que começaram a ser delineadas as duas candidaturas presidenciais. Mas antes disso, a Lei Orgânica dos Municípios estabeleceu que no domingo, dia 15 de março de 1936, o povo do Estado de São Paulo elegeria prefeitos e vereadores. Na Capital e em São José dos Campos haveria apenas eleições legislativas; a escolha dos prefeitos continuaria sendo de provimento exclusivo dos governadores.

Marrey Jr.

Era hora de ressuscitar Marrey, que há pouco mais de três anos estava quieto em seu canto, na Vila Mariana, assistindo tudo calado e vivendo na mesma pobreza honrada e franciscana em que viveu sempre. Assim que o pleito foi anunciado, o PRP passou por cima de mágoas e antigas diferenças, e aproveitou o rompimento de Marrey com seus companheiros do PD, para, sem qualquer cerimônia, convidá-lo a disputar uma cadeira na Câmara Municipal pela legenda que ele combateu tão duramente. À primeira vista pareceria uma aberração, mas quando constatamos o caso de Almeirindo Meyer Gonçalves na eleição estadual, ou de outras figurinhas carimbadas da legislatura de 1928, como Alexandre Albuquerque, que estava agora na chapa que concorria à vereança pelo PC, ou até mesmo de Rubião Meira, que assim como Marrey, fizera o caminho contrário, do PD para o PRP, verificamos que o jogo político agora era outro. Quantos Democráticos e Constitucionalistas não estavam se arrastando, dóceis e genuflexos pelas atenções de Vargas, e quantos perrepistas não se aboletaram na Chapa Única e depois no PC, utilizando a revolução de 32 como pretexto, abjurando ao que pregaram sua vida toda, somente para poderem permanecer politicamente vivos?

Marrey aceitou o convite e concorreu pelo PRP. O resto da chapa foi constituído dos seguintes nomes: Abrahão Ribeiro, Achilles Bloch da Silva, Alayde Borba, Synésio Rocha (que permaneceu no PRP e tentava voltar à Câmara), Francisco Patti, José Eiras Mairy, Carlos Pinto Alves, Fontes Junior, Leonardo Pinto, Múcio Faria, Franco de Abreu, Sylvio Margarido, Gilberto Sampaio, Orlando de Almeida Prado (ex-vereador e deputado estadual pré-1930), Luiz Tenório de Brito, Reynaldo Smith de Vasconcelos, Gaspar Ricardo e Rubião Meira.


Pelo PC concorreram, nessa eleição, Francisco Machado de Campos (vereador pelo PRP na legislatura de 1925 e prefeito de São Paulo nomeado por Laudo Camargo, de julho a novembro de 1931), Thomaz Lessa, Nicolau Marques Schmidt, Luiz Augusto Pereira de Queiroz, Antônio S. de Freitas, José Cerquinho de Assumpção, Alcides Chagas da Costa, Thiago Masagão Filho, Miguel Capalbo, Modesto Naclério Homem Netto, José da Costa Machado, Antônio Vicente de Azevedo, Mário Ottoni Rezende, José Ferreira da Rocha Filho, Zózimo de Abreu, Samuel Augusto de Toledo, Alexandre Albuquerque, Antônio de Queiroz Telles, Laurentino de Azevedo e Adhemar de Moraes. Entre os Constitucionalistas, a notícia do convite perrepista a Marrey foi recebida com incredulidade. Durante a reunião do partido que homologou a chapa de candidatos ao pleito municipal, um dos repórteres presentes escutou esta conversa entre dois próceres infelizmente não identificados, que descrevem Marrey com perfeição:

Um deles, virando-se para o seu companheiro de outro bairro, conversam sobre os elementos que compõem a chapa apresentada pelo Partido Republicano Paulista. E, por nada, quer acreditar que o Sr. Marrey Junior faça parte da chapa da oposição. “Em todo o caso”, disse ele a seu colega, “tome muito cuidado com o Marrey... ele é maneiroso e tem prestígio. É macaco velho, sabe manobrar o eleitorado”. (Diário da Noite, 2/3/36)

Sobre a constituição da chapa do PC, Prudente de Moraes Netto declarou, otimista: “A chapa do Partido Constitucionalista é um repositório das mais sublimes forças morais e intelectuais de nossa gloriosa terra. Com esses nomes venceremos, o que equivale dizer que São Paulo vai vencer mais uma vez”.

Nem tanto. Ou melhor, podia até ser, mas isso não significava que a bancada peceísta pensava em uníssono, ou que, mais cedo ou mais tarde, o PC não pagaria um preço por ter escancarado suas portas a coligações com inimigos de véspera para as eleições de outubro de 1934. Nessa época, que coincidiu com o triste falecimento, em 19 de fevereiro de 1936, do bom Gama Cerqueira, figura de proa entre os Democráticos e Constitucionalistas, surgiu formalmente uma dissidência do PC comandada pelo velho Alcântara Machado, que entrara em atrito com o Diretório Estadual do partido.

Alarico Caiuby e Cory Amorim
Era, porém, a mera manifestação pública do desacordo entre o grupo de Alcântara e determinados elementos; o apoio irrestrito a Armando de Salles continuaria até segunda ordem. Só que quando foram anunciados os candidatos do PRP, PC, AIB e PSB, apareceu uma quinta chapa, chamada “Coligação por São Paulo”, segunda dissidência constitucionalista que tinha à frente, entre outros, deputados estaduais eleitos pelo PC, como Alarico Caiuby e Cory Amorim. O primeiro era ex-perrepista e chegou a ser vereador na legislatura de 1925. O segundo vinha de um tal Partido Nacionalista de São Paulo, espécie de embrião do PDC, que contava com o futuro cacique pedecista Manuel Vítor entre seus quadros. Amorim foi candidato à Constituinte pelo PN mas perdeu a eleição.

Reunidos em assembléia, os membros da Coligação lançaram uma chapa com nomes desconhecidos e um manifesto que não teve qualquer repercussão. O documento, vazado em termos agressivos, mistura claramente ódio de perrepistas destronados e mágoa de Democráticos alijados. Era um manifesto de ressentimento político e hoje está inteiramente esquecido, mas relendo-o pelo que é, um simples comentário da situação do município pós-golpe de 30, o que se vê é uma análise brilhante, visionária, de inesperada clarividência sobre a grosseira pletora de equívocos revolucionários cometidos em São Paulo:

A Coligação por São Paulo aparece no momento em que se vai ferir o mais importante pleito eleitoral do país, que é o que organiza definitivamente a administração municipal. Sabedor do que esse pleito representa, na entrosagem (sic) de todas as atividades nacionais, a Coligação quer ser e vai ser uma partícula da interpretação do anseio geral, nesta hora de sombras e de subversão de valores. E inicia a sua atividade por onde devia começar, na defesa da cidade de São Paulo que, na loucura revolucionária destes últimos anos, se arruína a olhos vistos, transformando-se em quartel mestre de todos os desatinos políticos e administrativos.

Precioso é o comentário em que os dissidentes se dizem forçados a agir, “pela atitude precoce dos atuais regeneradores, abrasados por ambições políticas e pelo espetáculo desalentador de nossa cidade, anarquizada, desfigurada e empobrecida pelo entrechoque de prefeitos fabricados pela ditadura, ou indicados para preparar o apossamento das instituições pelos que se arvoraram em donos da revolução de 30”, prova irrefutável de que mesmo em tal conjuntura provocava espanto e indignação o troca-troca oportunista e criminoso de prefeitos de São Paulo no alvorecer do golpe.

Também exemplar é o trecho seguinte em que se enumeram os problemas de São Paulo, e, já naquela época, se fala do município que “de há muito oferece os mais graves e complexos problemas de uma metrópole, porém, com um desenvolvimento desmedido e irregular, sem plano algum”:

a) Sem conforto; b) sem pronto socorro médico; c) sem tranqüilidade; d) sem trânsito organizado; e) sem calçamento necessário; f) sem iluminação adequada; g) sem serviço de água e esgotos na atura de suas necessidades; h) sem divertimentos públicos; i) sem área ajardinada proporcional à sua população; j) sem defesa higiênica para as habitações, pois que: 1) possui bairros distantes em absoluto abandono, quase que isolados da vida urbana; 2) possui um sistema de construções infiscalizáveis (sic), proporcionando a criação de habitações coletivas que destroem a vida do operário e das populações pobres; 3) tem péssimo serviço de distribuição de gêneros alimentícios, com ausência de postos de socorro aos necessitados e às populações ribeirinhas do Tietê.

Em um parágrafo a tal coligação conseguiu ferir pontos delicadíssimos da administração paulistana, que até hoje são insolúveis, como a falta de hospitais, de saneamento básico e áreas verdes. Mais do que isso, cita os “bairros distantes em absoluto abandono, quase que isolados da vida urbana”, grande flagelo das zonas Sul e Leste, e ainda põe a descoberto o então nascente problema das favelas, “construções infiscalizáveis, proporcionando a criação de habitações coletivas que destroem a vida do operário e das populações pobres”. E continua, cada vez mais brilhante, culpando o “aparelho administrativo luxuoso mas deficiente”, responsável pelo fato de que a “cidade que está crescendo, de maneira alarmante num teor de vida insuportável”. E não fica só nas acusações. Passa, a seguir, a suas propostas:

Revendo, cuidadosamente, as loucuras destes últimos anos, que foram distribuídas fartamente, pela ausência de responsabilidade dos governos municipais e estaduais da ditadura, não pouparemos esforços para salvar a cidade, que foi uma das glórias do continente, de uma decadência irremediável e definitiva, propondo:

a) Uma política fiscal que redunde em beneficio da comunidade; b) uma política administrativa, que restaure a dignidade do funcionário e consiga, ao mesmo tempo, a eficiência da função; c) uma política urbana, dentro de um plano previamente traçado, tendo em conta as zonas da cidade, os bairros industriais, comerciais, proletários e residenciais; retificação do Tietê, construção do aeroporto; criação de novos playgrounds, etc.; d) uma política social capaz de animar o ensino municipal, a criação da assistência à infância, o amparo a todos os necessitados, construções de casas baratas e higiênicas, meios de transporte fáceis e a bom preço para escolares, proletários e professores; de postos de socorro nos bairros distantes.

Não queremos fazer tudo isso, de um momento para o outro. Somos realistas. Conhecemos os fatos e os homens. Para agir, agiremos com rigor, dentro dessa consciência e dentro desse programa. Assumimos uma grande responsabilidade, o que vale dizer que assumimos uma atitude que exige sacrifício e tenacidade.

É pena que a Coligação por São Paulo não tenha empolgado ninguém, porque, pelo menos na teoria, foi a demonstração mais lúcida e objetiva de conhecimento dos problemas citadinos em muitos anos. Dias antes da eleição se misturavam matérias pagas anunciando homenagens e reuniões da Coligação por São Paulo, com avisos apócrifos como este, que, sob o título “Somente nos parlamentos se fará sentir a ação dos dissidentes”, afirmava que “os dissidentes só passarão a agir eficientemente, quando do início dos trabalhos parlamentares, no Senado, na Câmara Federal e na Assembléia Legislativa”, desautorizando a Coligação por São Paulo e evidenciando que a dissidência vinha de cima e sequer entraria em assuntos municipais. Se era de responsabilidade da verdadeira dissidência, encabeçada por Alcântara Machado, não se pode dizer ao certo, mas o último parágrafo é explosivo: “Até lá, os dissidentes ficarão assistindo de palanque a luta entre peceístas e perrepistas”.

Olga Benário
O público brasileiro estava mais preocupado com outros assuntos que antecederam o pleito, como por exemplo a prisão, na madrugada do dia 5 de março, de Luiz Carlos Prestes no casebre que dividia com Olga Benário no nº 279 da rua Honório, no bairro carioca do Meyer. Os jornais noticiaram amplamente o ocorrido, referindo-se inicialmente à presença de uma “moça loira, secretária do capitão Prestes”, depois a “Olga Meirelles”, mulher de Prestes e, quem diria, “irmã do tenente Syllo Meirelles”, responsável pela intentona no Recife. Ainda houve espaço para uma “Olga Bergne” e “Maria Bregner”. O desconhecimento sobre a identidade da mulher de Prestes, “bastante moça e de boa aparência”, durou quase dois meses. Só em 30 de abril o nome “Olga Benário”, sua verdadeira identidade, foi finalmente divulgada, bem como sua lista de antecedentes no comunismo alemão. Seja como for, a prisão do casal foi a manchete do dia 5 de março e os jornais imprimiram 4 ou 5 edições diferentes, conforme as notícias vinham chegando.


Interessante que em lugar nenhum, verificando o que publicou a imprensa de São Paulo naquele dia, encontrei o tal “Não atirem! Ele está desarmado!” — gesto de heroísmo algo piegas e desastrado com o qual Olga teria defendido Prestes, jogando-se à frente dele no momento de sua prisão — que parece ter sido criado por Ruth Werner, primeira biógrafa de Olga (“Na frente do homem que deveriam matar, apareceu de repente uma mulher de braços abertos, protegendo-o. Olhava firme para os soldados. (...) Ela não gritava, não chorava. Calma e sem dizer uma palavra, simplesmente não permitia que ninguém tocasse em Prestes”) e descaradamente transformado em romance épico por Fernando Morais (“uma mulher alta pula na frente de Prestes, protegendo-o com seu corpo e dá um berro para os soldados. Não era um pedido de clemência, mas uma ordem dada por Olga: Não atirem! Ele está desarmado”). Segundo a imprensa, nada disso aconteceu. Quando se deu conta que a polícia estava lá, Prestes tentou fugir pelos fundos mas foi interceptado. A partir daí, não apresentou a menor resistência. Dizem alguns repórteres que Olga, ao contrário do que consta nas numerosas licenças poéticas e criativas de Fernando Morais, incitou Prestes a resistir, o que ele, prudentemente, teria evitado.

Três dias antes do pleito temos mais uma ocorrência que merece ser relembrada, só que fora da esfera política: pouco depois do meio-dia daquele 12 de março, um pequeno avião caiu dentro de uma casa, na então sossegada e residencial rua da Consolação. O avião partira do Aeroclube de São Paulo (que aliás, era presidido pelo deputado constitucionalista Eugênio de Toledo Artigas) e sobrevoava o Jardim América quando o piloto Anésio de Amaral Filho se deu conta de que o motor de seu Morane-130 estava falhando, uma “pane-seca”, no jargão aeroviário. A altura de 300 metros em que voavam ele e Natalino Carif, aluno do Aeroclube, e a pouca velocidade impediam a chegada deles ao Campo de Marte, razão pela qual foi necessário improvisar. Tendo pela frente as aristocráticas residências da rua da Consolação, o piloto escolheu aquela que tivesse as árvores de copas mais amplas e densas — a do nº 198 — porque “as árvores, na maior parte das vezes, amortecendo a queda do aparelho”, segundo Anésio, “se tornam aconselháveis como recurso dos aviadores”. Anésio, piloto experiente, “possuidor de um grande sangue frio”, falou ao Diário da Noite sobre as precauções que tomou e narra o momento decisivo:

Eugênio de Toledo Artigas,
deputado estadual do PC
e presidente do Aeroclube de São Paulo

Cortei imediatamente o contato do motor, tirei os óculos dos olhos, avisando o outro aviador para fazer o mesmo e planando o aparelho, fui aterrissando com calma e o melhor possível. O aparelho, quase em linha reta e a uns 20 metros de altura, encontrou três árvores, cujos galhos foram cortados com a queda, o que amorteceu a marcha do aparelho, que logo em seguida capotou. Após o choque, que não foi pequeno, verificou-se um princípio de incêndio, que se propagou logo às asas do aparelho, mas que não chegou a nos atingir, pois que procuramos safar-nos quanto antes. (12/3/36, 3ª edição)

O avião se espatifou, se incendiou, e dele saíram ilesos os dois tripulantes. Natalino Carif teve lesões leves no braço direito. Foi socorrido, por sinal, pelo próprio dono da casa.

No domingo, 15 de março de 1936, por fim, 130 mil eleitores do município foram às urnas para eleger os 20 vereadores que comporiam a 1ª Legislatura desde a cassação da Câmara, em 1930. Conferidos os primeiros resultados, veio a coincidência de que a AIB, em pleno delírio verde, com seus tresloucados sygmas e anauês, elegeu justamente um aviador, o renomado piloto João Ribeiro de Barros, natural de Jaú, famoso por ter realizado o primeiro vôo no Atlântico Sul, em 1927, a bordo de um aviãozinho velho e combalido.


Miguel Capalbo e Thomaz Lessa

A Coligação por São Paulo caiu no vazio e os socialistas, aniquilados por tabela pela malfadada intentona comunista, não contabilizaram nem 900 votos juntando todos os seus candidatos. Os peceístas esperavam uma reprise da apoteose constitucionalista ocorrida nas eleições legislativas de outubro de 34, em que o partido acabou definitivamente com a supremacia perrepista. O que aconteceu, todavia, foi o confronto entre uma situação e uma oposição que, na melhor das hipóteses, eram áreas cinzentas onde só se destacava mesmo a ambição pelo poder, de um ou outro grupo. Contados os votos, o PC conseguiu uma maioria suadíssima, de 11 vereadores contra 8 perrepistas e 1 integralista. Foram eleitos pelo Partido Constitucionalista: Alcides Chagas da Costa, Alexandre Albuquerque, Antônio Cândido Vicente de Azevedo, Antônio de Queiroz Telles, Francisco Machado de Campos, José Cerquinho de Assumpção, José Ferreira da Rocha Filho, Luiz Augusto Pereira de Queiroz, Miguel Paulo Capalbo, Thiago Masagão Filho e Thomaz Lessa.

Orlando Almeida Prado e Smith de Vasconcelos
O PRP trouxe à Câmara: Abrahão Ribeiro, Achilles Bloch da Silva, Gaspar Ricardo Junior, Marrey, Luiz Tenório de Britto, Orlando de Almeida Prado, Reynaldo Smith de Vasconcelos e Sylvio Margarido.

A prova de que o PC encontrava-se em uma situação de descrédito junto ao povo da Capital foi a eleição de Marrey, vereador mais votado da Legislatura, com quase 4.500 votos. A vitória tinha o sabor de uma tardia vingança sobre o partido pelo qual ele tanto lutara e que tão mal o tratara. Só que dentro de um esquema piramidal de importância política — como deixou claro o informe apócrifo sobre a dissidência peceísta — o Legislativo Municipal não valia nada, então a vitória de Marrey foi ignorada.

O aviador João Ribeiro de Barros

Também ignorada foi a instalação da Câmara Municipal, que fez sua discreta sessão inaugural no dia 9 de julho de 1936, sem a presença de Armando de Salles. Presidiu os trabalhos o juiz Oswaldo Pinto do Amaral e compareceram Carlos Mendonça (representando Salles), Laerte Teixeira Assumpção, presidente da Assembléia Legislativa, o prefeito Fábio Prado e o general Almério Moura, comandante do II Exército.

A solenidade não careceu de um incidente cômico. Chegada a hora de dar posse aos vereadores, Pinto do Amaral chamou-os, um por um, à Mesa Diretora para ouvir o compromisso de posse e dizer, protocolarmente, “assim o prometo”. Todos o fizeram de forma regular, menos o integralista Ribeiro de Barros, que disse: “Em nome de Deus, Anauê”, provocando gargalhadas e palmas. A pedido de Amaral, Ribeiro de Barros então disse o “assim o prometo” e a sessão prosseguiu.

João Ribeiro de Barros,
o aviador de Jaú
Por alguma razão, Ribeiro de Barros renunciou dias depois, passando o mandato para seu suplente, José Alves Ferreira Cyrillo, filho de ninguém menos do que o cacique perrepista Cyrillo Junior. Na 1ª Sessão Ordinária, no dia 13, já eleito presidente da Câmara o peceísta Francisco Machado de Campos, José Cyrillo foi convocado para tomar posse em lugar de Ribeiro de Barros. Adentrou o recinto sob aplausos, acompanhado por uma comissão especial, e ao invés de prestar o juramento tradicional dos vereadores, tomou seu assento e verberou: “Ao Chefe Nacional, diante da vida e diante da morte, três anauês!”, no que foi acompanhado de vários “anauês” dos integralistas presentes nas galerias. Incidente idêntico se verificou quando João Fairbanks tomou posse na Assembléia, em 34. Ambos concordaram, a seguir, em prestar o juramento tradicional.

Coberto pelo prestígio de uma votação consagradora, Marrey fez um longo discurso em desagravo próprio naquela sessão. Figura máxima daquele legislativo, que já ocupara tantas vezes, não se ouvia nem uma mosca quando o mineiro assomou à tribuna. Começou enaltecendo o gesto dos perrepistas, oferecendo-lhe legenda depois de terem se odiado por quase uma década:

Sr. Presidente, congratulo-me com o povo desta cidade pelo auspicioso acontecimento que foi a instalação da Câmara Municipal. Eleito pelo maior número dos seus sufrágios, em significativa demonstração de apreço pessoal e de aplausos a uma sincera e ilibada conduta política, volto a exercer o elevado cargo de vereador, a que já dei honroso desempenho. O Partido Republicano Paulista, num gesto de invulgar elegância, que tanto me sensibilizou, convidou-me para integrar sua representação nesta Casa. Com liberdade de pensamento e de ação que a nobre Comissão Diretora me facultou, para aqui entrei bem compenetrado da obrigação imposta pelo mandato e aqui estou desejoso de que possíveis divergências partidárias, não consigam atirar a inferior plana os interesses coletivos nem macular a grandeza da nossa missão.

A seguir um comentário necessário sobre os vira-casacas, os neo-democráticos e uma pincelada sobre o temor comunista, que grassava por culpa da intentona de 35:

Desde o findar da grande guerra mundial de 1914, que as lutas políticas, na Europa ou na América, não se limitam ao antagonismo entre o novo e o velho regime. Entre nós, contudo, erroneamente, não se tem dado outra feição à resultante da revolução de 1930. Os homens do poder, não admitem os homens do passado, a não ser quando esses se enfileiram no seu séquito. Os que aderem são isentos de culpa e pena e assanham-se, juntamente com os novos, contra antigos companheiros de jornada, no triste espetáculo que são as campanhas políticas que primam pela ausência de idéias e pelo excesso de injúrias. Não é dessa espécie, porém, que assinala a história constitucional dos povos que sofreram o grande cataclismo. Aqui, já os estadistas se convenceram de que a luta decisiva do após guerra é a que vem sendo travada entre a democracia e o sovietismo.

Na seqüência uma paulada violentíssima no fisiologismo evidente de que padeciam os atuais donos do poder, na maioria ex-companheiros de Marrey:

Ouve-se, hoje, contudo, generalizado apelo em prol da democracia. Proclama-se, entretanto, a democracia mas não se a exercita. O êxito da democracia não está simplesmente no exercício do sufrágio eleitoral, por força de lei que garanta o recebimento livre do voto, a sua regular e rigorosa apuração, mas não impede as manobras com as quais se coarcta a liberdade moral do eleitor. O mal brasileiro não é, todavia, de natureza eleitoral. O mal de que o povo se queixa está na ação do partidarismo político, infiltrado na administração, corrompendo-a, obrigando governos, os mais intencionalmente dispostos a acertar, os mais intencionalmente honestos, a deixar de ser governos pela lei para se tornarem governos de “fiats” arbitrários. São os partidos políticos denominados, pelo próprio chefe e alto representante de um deles, “partidos trampolins do poder, partidos agências de colocação”, explorando o voto, abusando da rudimentar instrução e educação do meio, que contribuem para o mal nacional. Desses partidos não saem estadistas. Prevalecem, no seu seio, os verdadeiros agenciadores de empregos, os que não alcançam a realidade das cousas nem se apercebem da fatalidade dos movimentos sociais.

Uma palavra sábia sobre a corrupção daqueles que chegam ao poder, e um comentário muito esclarecedor sobre a índole do povo paulista:

Costa Rego
Preconiza o senador Costa Rego [imagino que seja o alagoano Pedro da Costa Rego] o rejuvenescimento do regime pela renovação das fórmulas e seleção dos indivíduos. A seleção dos indivíduos, sim, mas numa escola de bons exemplos, de rigoroso culto à Justiça. E no dia em que os destinos do povo passarem para as mãos de quem se caprichar em evitar a nefasta ação do partidarismo político; em que ficar bem estabelecida e nítida a distinção entre os interesses gerais e os particulares; em que usufruirmos a suprema ventura de observar o “habeas anima” com a mesma popularidade do “habeas corpus”, e em que, afinal, perante os governantes, os patrícios não se dividirem entre gregos e troianos, aí sim, se iniciará a era do já afamado governo forte, o regime subsistirá, não haverá quartel para os que, enveredando por caminhos tortuosos, apelem para a força, para idéias exóticas ou subversivas da ordem pública. A massa popular é dócil e bem-intencionada. O povo contenta-se com os mais comezinhos atos de justiça. O de São Paulo aí está dando arras desses sentimentos, vibrante ainda de entusiasmo na recordação do período em que, acudindo aos pregões políticos desavisados, se multiplicou nos mais empolgantes lances de sacrifício e abnegação.

No bojo de seu pronunciamento, um grito de autonomia para o município, idéia que norteou o pensamento político e ação parlamentar de Marrey desde sempre: “A célula da democracia reside na autonomia do município. (...) É no município autônomo que se encontram as raízes da civilização moderna, as fontes vivificadoras do espírito humano e os centros da liberdade constitucional”. Um dos maiores erros do golpe de 30, segundo Marrey, era justamente pregar a autonomia no texto constitucional, mas adotar atitude diversa na prática. O vício se agigantava, ampliando-se “a tutela do Estado sobre o município”:

Satisfazia-se, ainda mal-disfarçada tendência centralizadora, mais tarde francamente dominadora nos congressos constituintes da República e do Estado. Feriu-se o sistema em que a unidade original e primária é a comuna, base do governo livre. Autonomia corresponde à descentralização. Constituiu motivo para uma das mais sérias campanhas políticas ao tempo da velha República. Coloquei-me à frente dos que se batiam pela autonomia do nosso município, centralizei a campanha, e, hoje, em face dos preceitos constitucionais que nos regem, reputo contrária aos princípios fundamentais à faculdade já aludida, concedida e adotada em São Paulo.

Curioso como Marrey isenta o PRP desse vício, por não ter sido jamais a autonomia uma reivindicação perrepista. Assim, o erro devia ser inteiramente debitado aos Constitucionalistas que exigiam o direito a voto, mas não pensaram da mesma forma em relação à Capital de São Paulo, quando redigiram a Carta de 9 de julho de 1935:

Uma vez só, entretanto, não se levantaram em prol da autonomia do município da Capital, nem mesmo para explicação da mudança de pensar por que passaram os que a defendiam. A proposta para que o Prefeito fosse nomeado pelo Governador é preceito da Constituição de 9 de julho de 1935. O Partido Republicano Paulista, coerentemente, com ela não se preocupou. A idéia que, entretanto, movimentara a opinião pública e provocara candentes artigos de indignada oposição, em defesa da autonomia municipal, constituíra ilusória promessa oposicionista. Vencedores, senhores da situação, os que em seu nome, combateram a reforma constitucional [de 1929, que acabou com as eleições municipais na Capital] e posteriormente tomaram parte na elaboração da Constituição de 9 de julho, esqueceram-na após a vitória. Um operoso e talentoso constituinte [que ainda não sei quem é mas descobrirei e darei o nome, oportunamente], aliás, funcionário municipal, timbrou-se em mostrar-se peremptoriamente contrário ao princípio com o qual estivera anteriormente de pleno acordo. Não contente com o que lera, ou porque não lhe parecera bastante claro o texto, pretendeu que da Constituição ficasse insofismavelmente constando que o Prefeito desta linda, progressista e acolhedora cidade, fosse de especial confiança do Sr. Governador...

Além de retirar dos paulistanos o direito de eleger seu prefeito, a Constituição encolhera os poderes do Legislativo Municipal ao ponto de que a Câmara era virtualmente supérflua:

 A legislação ordinária e posterior, meteu-nos até em posição de incomoda subalternidade ao delegado do governo do Estado. Refiro-me à Lei Orgânica dos Municípios, em certos passos contrária à Constituição, em outros concentrando poderes de tal monta em mãos do Prefeito que, em rigor, em grande parte, inutiliza a ação da Câmara. (...) Deu-se ao Prefeito o direito de absorver a função dos vereadores. Um prefeito audacioso e autoritário dispensará a colaboração da Câmara, porque ao seu critério, ao seu exclusivo critério, ficará a urgência dos casos; do seu critério dependerão os imprevistos...

Para terminar, depois de “esclarecido o meu ponto de vista e patente o meu protesto, inócuo, mas demonstrativo da minha coerência”, Marrey aproveitou que Armando de Salles mandara sua mensagem anual à Assembléia Legislativa exatamente no dia da instalação solene da Câmara, para responder ao interventor, e agora governador constitucional:

Armando de Salles Oliveira
Há quatro anos, amargando com o paulista a dor que nos ocasionou a luta, gloriosa pelo que de sublime lhe deu a cooperação popular, mas malfadada pela imprudência com que a deflagraram os políticos, eu disse que São Paulo estava em condições de fazer operar o milagre da reconstrução do Brasil. (...) Ontem eu apelava para os paulistas para que continuassem a ser  cavalheiros e generosos, orgulhosos de sadio orgulho, da sua força, da sua organização, para a conquista do Brasil. Ambos, eu e o Sr. Governador, andamos convictos de que não é possível traírem-se os bandeirantes nos seus sentimentos. Apenas, uma diferença entre nossas situações e que também me causa satisfação, servindo de advertência: hoje o Sr. Governador está recebendo flores que a S. Excia. trazem os que o acompanham e vivem do seu alto prestígio, flores em que se transformaram as pedras que, ‘estarrecidos’, eles me atiraram...

O Trocadero, onde funcionou a Câmara de 36/37
Marrey não pôde prosseguir, abafado pela explosão de aplausos e “vivas” que recebeu da bancada do Partido Republicano. Essa Legislatura também não prosseguiu. Durou ainda menos do que a 13ª, eleita em 1928. Programado para abrigar a Câmara, o Palácio Trocadero, que se localizava atrás do Teatro Municipal, passou por uma grande reforma, instalando-se a Sala das Sessões, a portaria, o Arquivo, a copa, a Sala dos Vereadores e a Sala da Presidência no térreo. No primeiro andar foram colocadas arquibancadas para o público, a Sala das Comissões e o gabinete do Diretor Geral e do secretário. Houve até concorrência pública para a contratação de uma empresa que se propusesse a construir as arquibancadas dentro de um orçamento de 30 contos. A reforma ficou pronta pouco menos de um mês antes do início dos trabalhos. Tudo à toa; a Câmara foi cassada 14 meses depois, em 10 de novembro de 1937, quando Getúlio deu mais um golpe na democracia e decretou o Estado Novo. Exemplo das tenebrosas “clivagens” do PC foi o destino de seus componentes. Enquanto Armando de Salles, que renunciou ao mandato para fazer campanha de sua candidatura à presidência, foi preso e exilado, Cardozo de Mello Netto, interventor que o sucedeu e um dos fundadores do Partido Democrático, jurou lealdade ao dantesco Estado Novo e permaneceu na interventoria até abril.



Epílogo

Armando de Salles ficou exilado durante 7 anos. Voltou ao Brasil em abril de 1945, em plena restauração democrática e partidária. Gravemente enfermo, viveu o suficiente para ser o patrono da União Democrática Nacional, UDN. Para esse partido foram os Democráticos da primeira leva, como Antônio Carlos de Abreu Sodré, Waldemar Ferreira, Carlos Moraes Andrade e Paulo Nogueira Filho.

Os perrepistas mais velhos não sobreviveram o Estado Novo ou já estavam aposentados quando Vargas foi deposto. Os que estavam vivos e politicamente ativos se dividiram entre o PSD, a UDN e o pequeno PR, Partido Republicano (fundado por Arthur Bernardes). As clivagens atingiram seu ponto máximo, que é quando desaparecem as diferenças: além de ter sido fundado por Vargas, o PSD misturava, em seus quadros, perrepistas históricos como Altino Arantes e Macedo Soares, roçando ombros com Dutra — ministro da Guerra de Getúlio quando foi decretado o Estado Novo — e Filinto Müller — torturador e carrasco durante a ditadura. Já na UDN, os fundadores do PD se tornaram colegas de perrepistas como Orlando de Almeida Prado e ninguém menos do que o velho Júlio Prestes - considerado o grande culpado pelas desgraças do pleito de 1928 - que chegou a fazer parte da Comissão Diretora da UDN pouco antes de sua morte.

Marrey Junior tentou ingressar na UDN em 1945 mas teve seu pedido indeferido por Antônio Carlos de Abreu Sodré. Fundou o Partido Popular Sindicalista com Miguel Reale, em 46, mas logo em seguida fundiu o PPS com o Partido Agrário Nacional de Mário Rolim Telles e o Partido Social Progressista de João Café Filho, do qual fazia parte Adhemar de Barros, que também teve a porta da UDN fechada em sua cara. Surgiu o PSP (mantendo o nome dado por Café Filho), que num primeiro momento acabou abrigando Marrey, Paulo Nogueira Filho (incompatibilizado com Waldemar Ferreira) e um setor amplamente fisiológico do velho PRP, que incluía nomes como Diógenes Ribeiro de Lima e César Lacerda de Vergueiro. Pouco depois Marrey se decepcionou com a corrupção de Adhemar e terminou sua carreira política no PTB, também fundado por Getúlio. Morreu em 1965.

O primeiro presidente eleito depois do golpe de 1930 foi Eurico Dutra. Morreu em 1974.
Getúlio Vargas foi eleito democraticamente em 1950, sucedendo Dutra. Se suicidou em 1954.

Washington Luís viveu para retornar ao Brasil, em 1947, depois de 17 anos de exílio, e assistir o suicídio de seu algoz, em 1954. Morreu em 1957, aos 88 anos.
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Bibliografia:
  • Annaes da Câmara Municipal de São Paulo. 1936 (1º anno da 1ª legislatura). São Paulo, Heitor Cunha & Cia.
  • ABREU, Alzira Alves de & outros. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós 1930. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2ª ed. 2001.
  • CALIMAN, Auro Augusto. Legislativo Paulista – Parlamentares 1835-1998. São Paulo, Imprensa Oficial, 1998.
  • CAMPOS, Calazans de (org.). Candidatos do Partido Constitucionalista. São Paulo, PC, 1934.
  • MORAIS, Fernando. Olga. A vida de Olga Benário Prestes, judia comunista entregue a Hitler pelo governo Vargas. São Paulo, 14ª ed., Alfa-Omega, 1987.
  • SILVA, Hélio. 1933: A Crise do Tenentismo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.
  • _____. 1934: A Constituinte. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1969.
  • WERNER, Ruth. Olga Benário. A história de uma mulher corajosa. São Paulo, Alfa-Omega, 1989.
  • Diário da Noite

4 comentários:

  1. Parabéns pelo magnífico trabalho. Vou divulgá-lo.
    Abraço.
    José Carlos

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  2. Uma correção: O presidente, então general (e não marechal, patente que seria promovido na reserva, somente 1952 no governo de Getúlio Vargas) Eurico Gaspar Dutra, faleceu no Rio em 11 de junho de 1974, aos 91 anos de idade, e não no ano de 1971.

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