domingo, 12 de novembro de 2017

Waack



Throwing in my two cents.

1 - Vazou na Internet um video da cobertura das eleições norte-americanas do ano passado, em que, fora do ar, William Waack se irrita com uma buzina próxima ao local da transmissão e diz "é preto, né? É coisa de preto. Com certeza", para um sujeito qualquer ao seu lado. O video provocou o afastamento imediato de Waack do Jornal da Globo e a justa revolta não só de movimentos negros mas de qualquer pessoa contrária ao racismo.

2 - Concomitante à revolta daqueles que condenam a declaração de Waack, surgiu, inesperado e surrealista, um cordão de indignados promovendo a DEFESA do âncora do Jornal da Globo. Segundo esse grupo, bastante vocal e nada discreto, formando por colegas, amigos e brancos de direita, Waack: a) foi pego "sem saber", "em um momento privado"; b) quem vazou o video o fez por oportunismo, porque esperou um ano; c) é uma vingança política da Globo contra seu próprio funcionário, porque Waack é um homem politicamente lúcido e não teve pejo de se pronunciar contra a desgraça promovida nacionalmente pelo PT nos últimos 14 anos; d) errar é humano. Quem nunca errou que atire a primeira pedra; e) não se deve promover o "linchamento" internético de uma pessoa.

3 - Vamos desmontar calmamente e sem gritaria os argumentos dessa inusitada defesa de Waack. Até porque eles são de um raquitismo absoluto.

a) "ele ter sido gravado fora do ar" — Sei. Incrível como a direita é capaz de usar as mesmas desculpas da esquerda que tanto condena. É precisamente essa a lógica esposada por reservas morais como Lula e Dilma no episódio das gravações do "Bessias" e do "tchau, querida". Foram gravados sem saber. Uma conversa íntima e pessoal, que não deveria ter ido a público. O crime, então, deve ser perdoado in limine. Ou seja, amanhã qualquer pessoa que estiver cometendo um crime poderá alegar que não pretendia que aquilo fosse a público, desde o político que delinqüe até o pedófilo que está em frente a seu computador, o empresário que está em um puteiro de luxo, o sujeito que faz bullying internético e assim por diante.

Não cola. Em primeiro lugar não havia nada de íntimo no ambiente em que o comentário foi feito. E mesmo que houvesse, as circunstâncias em que o comentário foi proferido não incidem no teor racista da declaração. É ridículo. É anacrônico. É a mesma defesa cretina que poderia ser utilizada para justificar o assédio sexual. “Estávamos entre quatro paredes”. O local não influi. O que importa é o que foi dito. Não é menos racista porque foi murmurado. Pelo contrário. É célebre o vídeo de João Figueiredo que apareceu, depois de sua morte, em que ele descreve, em uma festa, o abraço que recebeu de uma negra, e que mesmo depois de tomar banho, “ainda tinha o cheirinho de crioulo”. É menos racista porque ele estava em uma festa ou porque estava de pileque? No mesmo video ele fala mal de Roberto Marinho. É menos racista porque sabemos que essa cena só foi ao ar por retaliação da Globo? Bullshit.

b) “o vídeo foi vazado por oportunismo”  Dane-se. Não sei quem vazou. Não me importei em saber. Não quero saber. Não sei se foram pagos pelo PT, pelos Panteras Negras ou pela Congregação Mariana. Não sei as razões pelas quais o fizeram. O racismo é o mesmo. Novamente nos vemos diante de uma lógica completamente torta, criada para amoldar o mal-feito. Por esse raciocínio não aceitaremos mais delações premiadas porque são oportunistas. São mesmo. Não interessa. Como se diz em Direito, “não elide o crime”. Se amanhã descobrirmos que os sujeitos que vazaram o video eram canalhas e bandidos, que a justiça faça picadinho deles. Enquanto o vídeo for verdadeiro, não perdoará o racismo de Waack.

c) “é uma vingança política”  É um dos argumentos mais idiotas que já ouvi. A direita e a esquerda radicais vão ver conspiração até no Castelo Rá Tim Bum. O Waack está na Globo há séculos e nunca teve esse poder todo; a emissora pode ter todos os defeitos do mundo mas nunca contratou ou demitiu por ideologia, e se tudo isso não fosse suficiente, ficaria o absurdo de queimar um sujeito publicamente quando a situação já está clara e cristalina, as cartas já estão na mesa, o PT já foi pro vinagre, o Temer já está no vinagre e não haveria nada que o âncora do jornal da madrugada pudesse fazer ou desfazer para mudar isso. Querer politizar um crime de racismo é o mesmo que politizar ou ideologizar o movimento LGBT. Um dia o povo vai perceber que determinados movimentos tem a ver apenas com o ser humano, e não com ideologia e política.

d) “quem nunca errou que atire a primeira pedra”  Embora indevido, este argumento merece uma reflexão. Não sou nenhuma vestal de moralidade inatacável e sei muito bem que os tempos mudaram. Quando eu era criança essa era uma expressão comum. “Isso é coisa de preto”, “só podia ser preto” e inúmeras outras que o povo da minha geração lembra e não vem a pelo declinar. Eu, por exemplo, era beiçudo e muitas vezes disseram que eu tinha “boca de preto”. Jamais me ofendeu. Sempre achei graça. Dizer que algo ridículo e tosco era “uma baianada” ou “coisa de baiano” era corriqueiro. Dizia-se com tanta naturalidade que ninguém sequer pensava nos baianos. Era uma expressão que transcendia seu significado semântico. Era possível dizer para um homossexual coisas como “pára com essa viadagem” exatamente da mesma forma como isso seria dito a um hetero, sem que a referência tivesse qualquer coisa a ver com a sexualidade da pessoa. Eram expressões enraizadas em nossa língua, para o bem ou para o mal.

Só que as coisas mudaram muito. Está longe, num passado remoto, o tempo em que eu podia classificar meu melhor amigo de adolescência, que é mulato, de “mulato”. O que ontem era a definição de uma pessoa gerada por um branco e uma negra ou uma branca e um negro tem hoje vinte definições pejorativas antes dessa. Um dos comediantes mais brilhantes, progressistas e dedicados à causa negra e a demais minorias, nos Estados Unidos, Bill Maher, entrevistava recentemente um senador de Nebraska, e em meio à conversa, descontraída e divertida, o senador o convidou para “trabalhar nos campos” do Estado. Mahr replicou, no mesmo tom de galhofa: “Senator, please, I’m a house nigger”, em referência aos escravos que trabalhavam dentro das casas, ao invés de trabalhar em plantações. Desagradou o público em geral e a comunidade negra em particular. Naquele momento ninguém parou para pensar que o termo nigger só se transformou em ofensa capital de algumas décadas para cá e que em um dos maiores clássicos da literatura norte-americana, Adventures of Huckleberry Finn há um personagem referido ocasionalmente como “Nigger Jim”. O que ficou foi a palavra sendo usada hoje.

Na semana seguinte Mahr se desculpou e levou vários negros para falar sobre o quanto expressões e brincadeiras que em outras épocas poderiam ser inofensivas, são, hoje, degradantes e prejudiciais à causa dos negros. O episódio foi superado. Por quê? Porque temos a diferença evidente entre uma brincadeira infeliz feita por um comediante que é, ao mesmo tempo, um humanista e um notório defensor da causa negra, e o comentário sub-reptício e racista de um apresentador que não sabia que estava sendo filmado.

e) o “linchamento” internético  Esse é um argumento curioso. Vi pessoas da melhor qualidade intelectual reconhecendo que o comentário é racista mas que os ataques na Internet são errados. Não sei bem como interpretar isso; então ele é culpado mas ser fritado pela Internet é punição severa demais? Ele é culpado mas deveria receber um tapa na mão e a Internet deveria permanecer calada? Como isso funciona em relação à política? Lula e Dilma combinaram a blindagem de Lula pelo telefone via Bessias, mas a Internet não pode fritar nenhum deles? Harvey Weinstein e Kevin Spacey assediaram homens e mulheres durante anos, mas vamos ficar quietos porque o “linchamento” internético é errado?

Não. “Linchamento” internético é o que sofreu a mulher do Temer, que virou piada e foi agredida durante dias por algo que não disse. O “linchamento” é errado quando a pessoa não cometeu o crime. Se cometeu, como evitar isso, considerando a força das redes sociais? Como evitar isso num país onde impera a impunidade? Como evitar isso, sendo um jornalista da maior emissora do país? Não há como evitar. Nos tempos de hoje, é questão de tempo até que todos nós tenhamos nossos quinze minutos de fama internética, e nossos quinze minutos de desgraça internética.

Enfim, sei que Waack — a quem continuo admirando como jornalista — não está queimando cruzes no quintal. Sei que não lava a mão cada vez que cumprimenta um negro e não está pedindo a volta da escravidão. E sei quanto é difícil termos que condenar o comportamento de alguém que até o momento estava acima de qualquer suspeita. Não estou dizendo que ele deve ser execrado eternamente. Pode pedir desculpas, se retratar e vida que segue. O que não posso concordar é com movimentos de desagravo, de solidariedade e não mais o quê, como se ele tivesse sido vítima de alguma coisa além de suas próprias declarações. Seu comentário foi racista, sua punição foi justa e defendê-lo é consentir com o que foi dito.

Bernardo 

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Minestrone Cultural X


MIDSUMMER

1935 e 1968

As versões cinematográficas de "A Midsummer Night's Dream" de 1935 e de 1999 são conhecidas. A primeira é a pioneira mega-produção da Warner dirigida por William Dieterle, baseada na premiada montagem teatral de Max Reinhardt, com um elenco estelar que inclui Mickey Rooney (Puck), Olivia de Havilland (Hermia), Joe E. Brown (Flute) e outros. A versão de 1999 foi dirigida por Michael Hoffman, se passa na virada do século XIX para o XX e também traz grande elenco, com nomes como Michelle Pfeiffer (Titania), Christian Bale (Demetrius), Calista Flockhart (Helena) e Anna Friel (Hermia).

Perdida nos desvãos do tempo ficou uma versão de 1968, do grande diretor inglês Peter Hall com alunos e mestres da Royal Shakespeare Company. Nada haveria de especial nisso, considerando-se que se trata de filmagem sem grande apuro técnico, feita apenas para eternizar a montagem teatral da época. O que conta neste caso também é o elenco, que conta com figuras que iniciavam ali suas carreiras mas que brilhariam intensamente até hoje, como Ian Holm (Puck), Helen Mirren (Hermia), David Warner (Lysander) e Diane Rigg (Helena), entre outros.

Enquanto o Bottom de Kevin Kline, em 1999, recebeu apenas maquiagem e orelhas de burro, vemos (na foto) que a transformação do personagem foi basicamente idêntica em 1935 a 1968. Uma divertida máscara de burro, que permitia pequenos movimentos da boca, cobriu tanto James Cagney, em 1935, frente à maravilhada Titania de Anita Lousie, quanto Paul Rogers, em 68, junto à jovem e linda Titania de ninguém menos do que a hoje famosa e respeitada Dame Judi Dench.

Artigo em breve. (01/05/2017)

INCHON (1981)

Terence Young era um diretor eclético para dizer o mínimo; tinha em seu currículo nada menos do que três dos principais filmes de James Bond ("Dr. No", "Thunderball" e "From Russia with love"), além dos ótimos "Wait Until Dark", com Audrey Hepburn e "L'avventuriero", com Anthony Quinn e Rita Hayworth. Mas tinha também uma lista de filmes menores com Charles Bronson, idiotices como "Le guerriere dal seno nudo" (1973), meteu-se em uma fria com "Jackpot" (1975), estrelado por Richard Burton e Charlotte Rampling, interrompido por falta de dinheiro, e embora ainda contasse com o prestígio da classe artística, sua carreira entrou em decadência em meados dos anos 70. "Bloodline", baseado no livro de Sidney Sheldon e lançado em 1979, trazia Audrey Hepburn como protagonista e um elenco estelar que incluía James Mason, Irene Papas, Omar Sharif e Ben Gazarra. Foi um fracasso absoluto. Mas nada que se comparasse a seu projeto seguinte: um filme sobre a invasão anfíbia de Inchon, durante a guerra da Coréia.

A produção de "Inchon" já começa com inúmeros problemas. Os principais são três: o orçamento do filme - gravado em grande parte na Coréia do Sul - passou de 45 milhões de dólares, um verdadeiro oceano de dinheiro, em 1979; esse dinheiro veio da Igreja da Unificação, a célebre seita coreana fundada e chefiada pelo Reverendo Moon (o que não encontrou objeção de Terence, que certamente não queria repetir o fiasco de "Jackpot"); e por fim, o roteiro de Robin Moore e Laird Koenig é péssimo. O tema da guerra é tratado superficialmente e a história de amor é monótona e implausível. Ben Gazarra é um oficial americano lotado na Coréia do Sul. Ele é casado com Jacqueline Bisset, mas seu casamento naufraga e ele se junta com uma garota local. Quando a guerra da Coréia começa ele se sente obrigado a tirar a esposa do país. Eles se encontram, conversam por cinco minutos e se reconciliam. É ridículo, para não mencionar o fato de que Bisset e Gazarra tinham zero de química.

Terence Young e Olivier
Quanto ao resto do elenco, Olivier faz um bom trabalho no papel de Macarthur. Como já consignei em outros artigos, não sou fã de seu sotaque americano e ele estava visivelmente fragilizado por uma série de convalescenças, mas era um ator tão extraordinário que mesmo quando não estava em sua melhor forma ainda é um prazer assisti-lo. E ele não fazia qualquer segredo sobre o porquê de ter aceito o papel: dinheiro. Honesto o abnegado, não enriquecera com a profissão - mesmo sendo o maior ator shakespeariano do século XX e tendo sido diretor do National Theatre por quase dez anos - tinha filhos adolescentes e pressentindo que sua carreira se aproximava do fim, desejava deixar algum dinheiro para sua família, e sabia que esse dinheiro viria do cinema. Também é muito bom ver o grande Toshirô Mifune, mesmo que lhe tenham dado um papel mínimo que não lhe faz justiça. As garotas coreanas - as atrizes Karen Kahn (Lim) e Lydia Ley (Mila) - são muito boas. David Janssen e Richard Roundtree têm papéis pequenos e dispensáveis.

Cenas de batalha estão acima da média e a partitura de Jerry Goldsmith é boa. A edição é ruim; por conta de pré-estréias em que o público apedrejou a versão final de 140 minutos, o diretor reeditou o filme e quase trinta minutos foram para o lixo. O som também é estranho; tiros de metralhadora às vezes nos lembram o som de desenhos animados. Por essa e por outras, "Inchon" só foi lançado dois anos depois de filmado e recobrou apenas 1/9 de seu orçamento.

No geral, é uma produção defeituosa, mas muito longe de ser o desastre nuclear a que se referem os comentários apocalípticos do IMDB. O filme não foi lançado em VHS ou DVD, o que é uma pena. A pior coisa que eu poderia dizer sobre "Inchon" é que, em vez de um blockbuster (que é o mínimo que se poderia esperar de um filme com um orçamento desses), ele parece um filme feito para a TV. Ou um filme B. Mas quem tiver a chance de assisti-lo, deve fazê-lo. (21/05/2017)

A LOUCURA DO REI GEORGE



George III (1738/1820) foi rei da Inglaterra por mais de quarenta anos. No último quadrante de sua vida ele desenvolveu um transtorno mental que o tornava irascível, hiperativo, inconseqüente e o fazia falar sem parar, em uma blablação incontrolável. Séculos depois, médicos que se debruçaram sobre os registros de seu caso sugeriram que poderia ser uma doença nervosa chamada "porfíria", hoje conhecida e perfeitamente curável.

Na época, porém, depois de tratamentos medievais que em nada melhoraram seu estado, ele acabou sob os cuidados de um médico que tinha métodos nada ortodoxos para tratar a doença do rei.

É o tema do filme The Madness of King George", de 1994, dirigido Nicholas Hytner com Nigel Hawthorne, Helen Mirren e Ian Holm.

A cena a seguir é a do momento em que o médico, Ian Holm, inicia seu tratamento com o rei, interpretado por Nigel Hawthorne. O embate desses dois gigantes, permeado pela música de Händel, cria uma das mais maravilhosas cenas da história do cinema. (06/06/2017)

ORLANDO VILLAS BÔAS
FBF 11/1992


Que bom que esse maravilhoso Orlando Villas Bôas, discípulo digno e admirável de Rondon, está sendo alvo de todos os tipos de homenagens, junto a seus irmãos. Será que alguém também lembrará que o Parque do Xingu foi fundado pelo decreto nº 50.455, de 14/04/1961, assinado por um tal de Jânio? (foto de novembro de 1992, com Orlando e seu filho Noel. Estou com esse boné lamentável porque acabara de entrar no Mackenzie e tinha vergonha de andar por aí com a cabeça raspada) (09/06/2017)

THOTH


(14/06/2017)

SYLVYA (2003)


Muito interessante. Um bom filme com uma ótima dupla de protagonistas - Gwyneth Paltrow e Daniel Craig - sobre uma das figuras mais intensas e mais trágicas da literatura norte-americana: Sylvia Plath. E é pouquíssimo conhecido, provavelmente porque a única filha viva de Ted Hughes e Plath não gostou nada da idéia e impediu a utilização de quaisquer poesias de seus pais no filme.

Um retrato da depressão em uma época pré-Prozac e demais anti-depressivos. (18/06/2017)

ESCAPE (1940)


Drama de um americano procurando sua mãe na Alemanha nazista, contando, para tanto, com a ajuda de uma relutante e bem relacionada americana naturalizada alemã. Elenco impecável encabeçado pelo grande galã Robert Taylor, a primeira dama de Hollywood, Norma Shearer, a magnífica e tão injustamente esquecida estrela de Valentino, Alla Nazimova e, como cereja do bolo, o vilão feito por ninguém menos do que - Dih - o gênio Conrad Veidt.

Recomendo. (28/06/2017)

MIFUNE - THE LAST SAMURAI (2015)

Esperei ansiosamente para poder assistir o documentário de Steven Okazaki sobre o maior dos atores japoneses do século XX, o grande Toshiro Mifune. Admirador de Mifune desde "Shogun" (que assisti quando passou na TV, em 1980) até sua parceria inigualável com Akira Kurosawa, estava louco para conhecer melhor o ator, sua vida e sua obra.

Elementos e recursos para que o documentário fosse excelente não faltaram. Okazaki teve o raro privilégio de entrevistar os filhos primogênitos tanto de Mifune quanto de Akira Kurosawa, além de atores e atrizes que trabalharam com Mifune. A seu dispor esteve todo o acervo da TOHO, do espólio de Kurosawa e o acervo particular da família de Mifune. De quebra, Spielberg e Scorsese deram depoimentos sobre a influência do ator no cinema norte-americano. E com tudo isso, o documentário me decepcionou.

Tem apenas 80 minutos para contar a vida de um ator que fez centenas de filmes e influenciou um século de gerações diferentes de atores do mundo inteiro. Os depoimentos foram superficiais, fontes preciosas foram desperdiçadas e longos minutos foram gastos em histórias colaterais que nada tinham a ver com Mifune. 

Dos dezoito filmes do ator com Kurosawa, Okazaki escolheu três ou quatro para esmiuçar e mesmo assim nada foi dito que já não tenha sido amplamente vergastado por qualquer cinéfilo. Até mesmo as cenas escolhidas foram equivocadas. Quando o assunto é Rashōmon ou Shichinin no Samurai, não são mostradas cenas faladas, de Mifune. Nenhuma. Quando chegamos a Kumonosu-jō, toda uma sequência é gasta para que um ator coadjuvante fale de sua própria cena, e outra é para contar que a cena das flechas foi filmada sem que Kurosawa tivesse feito um seguro de vida para os atores. Muito interessante. Como detalhe. Só que nada mais é dito sobre esse trabalho primoroso de Mifune e Isuzu Yamada. Atrizes como Kyôko Kagawa e Yôko Tsukasa, que contracenaram várias vezes com Mifune e poderiam ter contado detalhes fantásticos tanto de seu processo criativo quanto de suas idiossincrasias, mantiveram-se no raso, na anedota. Culpa do diretor.

É lembrado por Spielberg que "The Magnificent Seven" é remake de Shichinin no Samurai e que "A Fistful of Dollars" é remake de Yojimbo. Mas nem uma palavra é dita sobre "The Outrage", com Paul Newman e Claire Bloom, dirigido por Martin Ritt em 1964, ser remake de Rashōmon .

Spielberg e Mifune

Nenhuma novidade ou insight sobre o rompimento de Mifune e Kurosawa, um daqueles mistérios que há tempos está pedindo para ser resolvido de uma vez. E terminada a parceria, Okazaki parece engatar uma quinta para terminar o documentário, mesmo considerando que Mifune teve pelo menos vinte anos de vida ativa no cinema e na televisão, depois de seu último filme com Kurosawa.

Kurosawa e Mifune
Para o público nerd, George Lucas é ausência imperdoável (e inexplicável), pois é conhecida e confirmada a influência que Kakushi-toride no san-akunin, de 1958, teve sobre toda a concepção da saga Star Wars. Também conhecido é o convite feito por Lucas para que Mifune interpretasse Obi-Wan Kenobi, e a recusa de Mifune, por recomendação de seu empresário cretino. Diz-se por aí, em trivias do Star Wars, que até o capacete de Darth Vader foi desenhado em cima dos capacetes de Mifune em seus filmes de samurai. Lucas, portanto, faz grande falta no documentário.

No mais, nem uma única entrevista de Mifune. Nenhum programa de TV, nenhuma presença em prêmios ou eventos. Me pareceu preguiça do diretor. Mifune era um homem retraído e reservado. Teria sido de valor inestimável vê-lo falar de sua própria vida e de sua carreira. Desconstruir o mito e mostrar sua humanidade. O diretor deveria ter garimpado toda e qualquer cena em que Mifune oferecesse uma peça na qual ajudasse a desvendar o quebra-cabeças de sua personalidade. Tal como foi editado, o documentário é sobre uma figura do século XVIII. Não há registros de voz, não há citações e declarações do próprio.

Uma oportunidade perdida. (19/06/2017)

BIBI SINATRA (Ensaio Aberto, 18/9/2014)



Bibi durante a temporada
de "Bibi canta repertório Sinatra"
No dia 1º de junho o Brasil comemorou os 95 anos de sua estrela maior, Bibi Ferreira. Neste finzinho de mês deixo meu singelo presente a todos os admiradores de Bibi: o ensaio aberto de seu espetáculo cantando músicas que ficaram famosas na interpretação de de Frank Sinatra. Eis o que aconteceu:

A estréia de "Bibi canta Repertório Sinatra" no Teatro Renaissance de São Paulo estava marcada para o dia 19 de setembro de 2014. A fim de acabar com qualquer insegurança em relação ao espetáculo, Bibi resolveu realizar um ensaio aberto na véspera, dia 18, às 21h. As imagens deste video foram feitas por mim naquela noite.

Bibi estava tranqüila. Só desejava mesmo testar as músicas diante do público antes do espetáculo entrar em temporada. Economizou a voz, evitou os agudos, fez recomendações, pediu mudanças aqui e ali, mas sempre descontraída e de bom humor.


Divirtam-se.
Um beijo, minha amada Bibi.

Bernardo (26/06/2017)

MARINA


Simpatia habitual da querida Marina, nos shows do Acústico MTV. (10/07/2017)

TERM OF TRIAL (1962)

Olivier e Signoret em "Term of Trial"
Direção e roteiro do competente Peter Glenville, que embora bissexto já tinha em seu currículo a vitoriosíssima adaptação do "Summer and Smoke" de Tennessee Williams, e seu filme seguinte a "Term of Trial" seria a obra-prima "Beckett", adaptação da peça de Jean Anouilh com Peter O'Toole e Richard Burton. O elenco traz feras como Olivier, Simone Signoret e dois estreantes da maior qualidade: Sarah Miles e Terence Stamp. É a história de um modesto e retraído professor de língua inglesa (Olivier) que foge do alistamento para combater na segunda guerra, o que prejudica sua carreira, impedindo-o de dar aulas em prestigiosas escolas particulares. Restam-lhe apenas as escolas públicas com todos os seus maus-elementos (entre eles, Stamp).

Ele aceita dar aulas de reforço a uma aluna de quinze anos (Miles) e ela se apaixona perdidamente por ele, mesmo sabendo que ele é casado (com Signoret, cujo papel começa magro e sem graça mas ganha inesperado conteúdo com o desenrolar da história). É um filme despretensioso mas muito bem feito e extremamente valorizado pelo elenco. E no entanto é menos do que uma nota de roda-pé na filmografia de todos eles. Inexplicável.

Recomendo. É dificílimo de encontrar mas quem conseguir não deve perder a oportunidade. (21/07/2017)

GOD'S GIFT TO WOMEN (1931)


Caso comum no cinema do fim dos anos 20 e início dos anos 30: uma foto fala mais do que o próprio filme. Neste caso, trata-se de "God's Gift to Women", de 1931, comédia dirigida pelo húngaro Michael Curtiz (que dez anos depois se notabilizaria por dirigir "Casablanca").

Fay e Stanwick
Nesse elenco quem menos importava era a atriz principal, Laura La Plante, que iniciara sua carreira nos primórdios do cinema mudo mas não vingou com o som e se aposentou em 1935 (morreu em 1996, aos 91 anos, olimpicamente esquecida). O filme era veículo para o então galã Frank Fay e o extraordinário elenco coadjuvante feminino.

Fay (o homem da foto) fizera uma transição exitosa do cinema mudo para o falado e era uma grande aposta da Warner. Era talentoso e cantava bem, mas seu sucesso durou pouco. A razão: ele era um ser humano absolutamente desprezível. Era alcoólatra, convencido e sabia-se que batia em suas mulheres. Casou-se com Barbara Stanwick em 1928 e lançou-a no meio cinematográfico. Nos anos seguintes a carreira dela foi ao espaço e a dele foi para o buraco. Separaram-se em 1935. Comenta-se que o filme "Nasce uma estrela" é abertamente baseada na história dos dois.

Para piorar, Fay era anti-semita e a ascensão do nazismo e a conseqüente eclosão da segunda guerra tornaram-no persona non grata em múltiplos círculos de Hollywood. Fez apenas nove filmes nos 30 anos seguintes e morreu no mais completo ostracismo, em 1961.

Fay e Louise Brooks

Blondell e Fay
Na foto que encabeça o artigo vemos, da esquerda para a direita, a francesa Yola D'Avril, que vinha de grandes sucessos que iam do drama "All Quiet on the Western Front" à comédia "Those Three French Girls". A seu lado está ninguém menos do que a maravilhosa Lousie Brooks, sem sua antológica franja, tentando timidamente, na América, chegar ao estrelato que já alcançara na Europa pelas mãos de Georg Pabst. E por fim, a linda e encantadora Joan Blondell, a "It" girl do momento, uma mistura entre Clara Bow e Mae West, com lindos e imensos olhos azuis que o preto e branco omitia criminosamente.

A comédia tem seus momentos. Fay faz um personagem que é descendente de Don Juan e vivia uma vida desregrada e cheia de mulheres até que se apaixona de verdade e tenta mudar seus hábitos. Mas não consegue. Hoje a única coisa que as pessoas se lembram é evidentemente o "catfight" de Brooks, Blondell e D'Avril na cama do convalescente Fay. Um pastelão histórico.

Fay me faz lembrar Bradley Cooper. Poderia ter sido um dos maiores, em Hollywood. Foi um talento desperdiçado. Por ele mesmo. (28/07/2017)


ROGÉRIA


Que tristeza. Rogéria foi uma das pessoas mais inteligentes que já conheci. Ela pode até ter se notabilizado inicialmente como uma travesti no meio artístico, mas como acontece com todo ser humano evoluído, sua sexualidade acabou se tornando mero detalhe em uma existência extremamente mais rica e profunda.

Assim como Elke, que nos deixou igualmente cedo, não havia na vida de Rogéria lugar para ódios e ressentimentos. Ela pairou sobre o preconceito e deixa um legado imenso de talento, nobreza e bom humor. Vai fazer muita falta. (05/09/2017)

VANYA E VANJA


Finalizando o artigo sobre Vanya e analisando alguns filmes que não entraram no texto me deparo com uma curiosa semelhança física: Paul Giamatti, que interpreta um ator em meio a uma montagem de "Uncle Vanya" no filme "Cold Souls", de 2009, está a cara de Arne Lie, personagem título do norueguês "Onkel Vanja", de 1963, dirigido por Gerhard Knoop.

O filme de 63, feito para a televisão norueguesa, traz, entre outros nomes, a linda e jovem Liv Ullmann no papel de Sonya. Já "Cold Souls" teria sido um filme bem melhor se tivesse se concentrado nas cenas de "Uncle Vanya", que Giamatti realiza brilhantemente. (10/09/2017)

90 ANOS DE LAURA CARDOSO

Com Laura em 1990, nos bastidores do Sérgio Cardoso depois de uma apresentação de "Vem Buscar-Me Que Ainda Sou Teu" de Carlos Alberto Soffredini, direção de Gabriel Vilella

Muito está sendo dito por aí sobre Laura ter feito 80 e tantas novelas. Mas ela é um talento tão consumado, tão maiúsculo, que a TV não é suficientemente grande para comportá-lo. Tudo que vi de Laura foi perfeito: no cinema, na TV e no teatro.

E não bastasse ser essa atriz que nos orgulha como brasileiros, ela ainda é um ser humano como poucos. É inteligente, é articulada, é culta. E ao mesmo tempo é simples, é humilde, é acessível, é doce. Quando estudei no Mackenzie, quantas vezes não a vi andando pela Consolação, indo a pé para o SESC, onde encenava "Pedreira das Almas", com Luis Melo? Quantas vezes a abordei, com a mesma admiração, e quantas vezes ela me respondeu com a mesma bonomia e a mesma gentileza?

No ano passado encontrei-a na missa de sétimo dia de meu irmão Flávio Guarnieri. Chegou sozinha, andando tranqüila. Foi dar um beijo em sua amiga Cecilia. Espalhava nobreza e dignidade aos menores gestos. Uma rainha. (13/09/2017)

JERRY



Muito a falar. Muito a agradecer. Tantas "Sessão da Tarde". Tantas gargalhadas, tanta felicidade. Toda a minha infância e minha juventude. Mas ainda não consigo.

Deixo aqui por enquanto "When you pretend", do filme "Artistas e Modelos", que assisti um milhão de vezes. Era o entretenimento de nossas tardes. Uma coisa linda, doce, pura, divertida.

Obrigado, Jerry. (21/09/2017)

J. PEREIRA


Quando decidi criar um blog exclusivo para divulgar a coluna musical que J. Pereira mantinha no Diário da Noite, na década de 50 ("No Mundo dos Discos"), não pensava em outra coisa senão trazer a inteligência e a cultura musical de J. àqueles que não tiveram o prazer de conviver com ele. Disse, no primeiro artigo do blog, em 2013:

"O Brasil é um país sem memória". Frase sovada, cediça... Melhor que repeti-la pela milésima vez, é fazer algo a respeito. Trazer J. Pereira dos arquivos empoeirados e de difícil acesso, para a Internet, ao nosso lado e ao mesmo tempo para o mundo todo, como ele jamais sonhou que poderia, falando com tanta força, tanto vigor, sobre música, 63 anos depois, é fazer algo a respeito.

Hoje tive o supremo prazer de verificar que, embora ainda faltem centenas de artigos para transcrever (tarefa que preciso de tempo e sossego para realizar, e infelizmente ando sem ambos), os 150 artigos que já transcrevi alcançaram seu objetivo: pesquisadores de todo o Brasil o estão consultando e aprendendo com ele. Acabo de saber que um pesquisador da PUC do Rio citou um dos artigos em sua tese de doutorado sobre o compositor Marino Pinto.

Fico muito feliz de ter sido a ponte entre J. e os pesquisadores de hoje.

Tenho certeza de que J. teria adorado. (11/10/2017)

DEZ ANOS SEM PAULO

Com Paulo em 1994, no camarim de "O Céu tem que esperar", no Teatro Villalobos,
Rio de Janeiro. Paulo ainda estava à caráter

Quando Paulo morreu comentei que era cedo demais para falar de alguém que teve tanta influência sobre mim e meu aprendizado teatral. Verifico que passados dez anos, ainda é cedo. Talvez porque ele ainda está muito presente ou porque, com sua morte, não apareceu ninguém para carregar o pesado epíteto de "maior ator brasileiro". Quando Procópio morreu, Paulo declarou: "Evidentemente ninguém poderá substituí-lo". Só que Paulo era não só a substituição, mas a renovação e a ampliação de Procópio. E não ficamos órfãos de um maior ator. Nos anos que sucederam a morte de Procópio, Paulo encenou Molière, Marguerite Duras, Harold Pinter, Poiret, Bernard Slade e Ibsen. Uma versatilidade que Procópio  só viveu através de Bibi.

Na minha adolescência eu sonhava com o Lear de Paulo. Sonhava com seu James Tyrone (que nunca veio, infelizmente). Hoje penso no que teria sido seu Edgar, na "Dança da Morte" de Strindberg, com Marília, Irene Ravache ou qualquer grande atriz dessa geração. Não tenho esses devaneios com nenhum outro ator. Quem mais se aproxima a isso é o maravilhoso Othon Bastos, que embora transborde saúde, já está com 84 anos. Quando Tom Jobim morreu minha querida amiga Tatiana me disse de como era assustador esse processo de "perdermos nossas referências". É o que aconteceu com Paulo. Perdemos nossa maior referência de ator. Temos muitos atores excelentes, mas aquele que foi da tragédia ao musical, da comédia ao drama, do monólogo à novela, esse não existe mais. Sua morte, como disse Fernandona, à época, "é simbólica".

Penso em Paulo todos os dias. Com a mesma saudade. Repito o que disse na época:

E digo, sobretudo, que vou sentir sua falta. Porque Paulo era uma figura benéfica e benemérita. Presente a nossas casas, conhecido por todos. Sentirei falta de sua sinceridade cortante. De sua elegância. De sua risada asmática. Da tranqüilidade e da autoridade com que dizia que "Oriundi" foi uma porcaria. Que adorou Ivanov, do Tapa. Que detestou "Gata em teto de zinco quente" com Vera Fischer. Que considerava a performance de Gianfrancesco Guarnieri em "Ponto de Partida" o maior momento de um ator em todos os tempos. Que gostava muito de Simon Khoury e Alberto Guzik, mas sentia, fundamentalmente, que deu a mesma entrevista durante 50 anos. Que morrer era a coroação da vida. E lembrarei que quando fui falar-lhe, depois de "O Avarento", abracei-o, beijei-o, e disse: "Mesmo sabendo que você é ateu, DEUS TE ABENÇOE". E ele riu, com seus lábios finos, os olhos cheios de bonomia por trás dos óculos, e a personalidade magnífica, tão adorável e inesquecível. (12/10/2017)

88 ANOS DE FERNANDONA

Com Fernanda em 2009, no SESC Vila Nova, durante temporada do monólogo
"Viver sem Tempos Mortos", em que ela comemorou seus 80 anos

A primeira vez que vi Fernanda no teatro foi no Ruth Escobar, com "Dona Doida", em 1990. Na platéia, o amado e saudoso Gianfrancesco Guarnieri. Com 18 anos, eu me vi no meio desses dois titãs. Não posso dizer que foi amor à primeira vista porque eu já os amava há quase dez anos, desde que assisti "Eles não usam Black-Tie" no cinema, e "Cambalacho" na televisão. Guarnieri me marcou desde "Éramos Seis", com Nicete Bruno, mas Fernanda eu fui conhecer melhor e admirar com "Brilhante" e "Guerra dos Sexos". Vá lá o clichê geracional, mas na época os atores de TV  eram uma constelação trazida do teatro, e não das capas de revista ou dos desfiles de moda.

Assisti Fernanda várias vezes depois do espetáculo com poesias de Adélia Prado. O curioso é que ouvia dizer, por más línguas, que ela era estrelona. Pude comprovar, em diversos encontros, que ela é o oposto diametral da estrelona. Fernanda é simples, bem-humorada, divertida e foge de qualquer abordagem que a transforme em algum tipo de monstro sagrado. E assim como as grandes figuras de nosso teatro no século XX, ela é inteligente, culta, lida, e mesmo um dedo de prosa com ela é uma aula magna.

Sua vida até o momento é tão plural, tão rica, tão decente, tão maravilhosa que quase perdôo Fernanda por nunca ter montado um Shakespeare. Ela esteve presente, durante a segunda metade do século XX, em todas os momentos mais marcantes da arte teatral, e sempre do lado humanista, democrático e popular. Há um arrependimento, mas não é dela; é meu. Perdi sua Arkádina.

O aniversário é dela. O presente é nosso: sua vida. Sua carreira. Ela ser brasileira.

Parabéns, querida Fernanda! (16/10/2017)

90 ANOS DE GEORGE C. SCOTT 

George C. Scott, em cena de "A Christmas Carol"

Uma semana de efemérides. Mas eu seria relapso se deixasse passar em brancas nuvens o aniversário de 90 anos daquele que considero o maior ator norte-americano do século XX: George C. Scott. Brevemente escreverei um artigo sobre a filmografia completa de Scott, então aqui me limito a falar sobre meu primeiro contato com seu imenso talento.

O conto "A Christmas Carol", de Charles Dickens, é extremamente famoso nos Estados Unidos e já foi levado à telona e à telinha inúmeras vezes. Lá, o natal não é o natal se a TV não passar "It's a wondeful life", de Frank Capra, e algumas das várias versões de "A Christmas Carol". Ocorre que eu estava nos Estados Unidos em novembro de 1984, quando estreou a mais recente versão para o célebre conto de Dickens; uma produção anglo-americana para TV, dirigida por Clive Donner e protagonizada por George C. Scott, tendo à ilharga um elenco praticamente todo britânico. Sendo fã dos quadrinhos Disney desde tempos imemoriais, minha ansiedade por assistir o filme decuplicou depois de saber que o personagem "Scrooge McDuck" (Tio Patinhas) é diretamente baseado no protagonista de "A Christmas Carol", Ebenezer Scrooge.

Assistir esse filme é uma daquelas experiências que desejamos para os nosso filhos, sobrinhos e crianças em geral. Com apenas 12 anos, conheci Dickens através de um de seus contos mais inspirados, mais maravilhosos, e tendo como guia o gênio que era George C. Scott. Um filme para rir, chorar, refletir, pensar e não esquecer nunca. O conto fala de um homem rico e avarento, solteiro, sem amigos, sem esperança, dessensibilizado pelas decepções que ele próprio provocou, e o encontro sobrenatural que tem, na véspera de natal, com três espíritos: o dos natais passados, do natal presente e dos natais futuros.

Eles mostram a Ebenezer que ele cometeu grandes erros e é parcialmente culpado por sua desdita, mas que no fundo de toda sua teimosia, seu ressentimento e suas mágoas ainda havia uma pessoa boa, com tempo para corrigir os equívocos e recomeçar. Um verdadeiro primor. Hoje em dia, quando assisto esse filme, choro da primeira à última cena. O próprio Dickens se emocionaria em ver o oceano de emoção que a estupenda colaboração entre Donner e Scott (que haviam feito um "Oliver Twist" sem o mesmo sucesso, dois anos antes) produziu, com sua obra.

Nos anos seguintes, utilizando a televisão e o mercado crescente de aluguel de fitas VHS, me aprofundei na filmografia de Scott. Acompanhei sua carreira até o que considero uma morte prematura, em 1999, aos 72 anos.

É fartamente sabido que ele não achava certo o princípio pelo qual atores devem concorrer entre si por um prêmio, então não foi receber o Oscar de melhor ator ganho por "Patton", em 1970. Foi uma atitude corajosa, audaciosa e temerária, que prejudicou sua carreira. Ele tentou explicar mil vezes que não estava recusando o prêmio, e sim pedindo para ser retirado da competição, com a qual não concordava. Hollywood ficou magoada. Acresça-se a isso o fato de Scott ser orgulhoso, saber o talento que possuía, e temos a receita para um casamento dar errado. Scott e Hollywood eram incompatíveis. Ele seguiu trabalhando pelos 30 anos seguintes, mas o fim foi melancólico. Tirando dois ou três filmes, a última década de sua carreira é uma coleção de filmes esquecíveis. Pouquíssimo, pouquíssimo para quem tinha tanto talento.

No fim de sua vida a indústria cinematográfica o esnobou. Hoje é reverenciado como um Deus. Ainda me recordo do "In Memoriam" do Oscar no ano seguinte à sua morte. Quando a imagem de Scott apareceu em filmes espetaculares como "The Hustler" e "Dr. Strangelove", a salva de palmas foi ensurdecedora. Uma coisa linda e tocante. Como sempre, era Hollywood pedindo desculpas...

Too little, too late. (18/10/2017)
________________________________________________________________

Veja mais:

domingo, 8 de outubro de 2017

Tio Vânia, Uncle Vanya, Dyadya Vanya, Дядя Ваня - 2/2


Anthony Hopkins, Mary Elizabeth Mastrantonio, David Warner, Greta Scacchi,
John Hargreaves e Julianne Moore

Os Vanyas de Michael
Blakemore e David Mamet

Em 1987 Woody Allen prestou sua homenagem a Tchekhov escrevendo e dirigindo Setembro, um de seus filmes mais teatrais, e que tem Vanya e A Gaivota em seu DNA. Lane (Mia Farrow) está passando uma temporada na casa de férias da família, em Vermont, depois de se separar e tentar o suicídio com uma overdose de soníferos. Lá ela tem a companhia do vizinho Howard (Denholm Elliott) e da amiga Stephanie (Dianne Wiest). Lane tem planos de vender a casa e comprar um apartamento em Nova York, onde deseja trabalhar como fotógrafa. Em Vermont ela conheceu e se apaixonou pelo escritor Peter (Sam Waterston), que não consegue fazer deslanchar seu livro mas foi convidado a escrever a biografia da mãe de Lane, Diane (Elaine Stritch), uma famosa atriz, que foi visitá-la com o marido, Lloyd (Jack Warden). Tirando o fato de Diane ser atriz e fascinar o escritor Peter — o que nos remete à Gaivota, e não a Vanya — e o fato de Woody Allen por alguma razão ter inserido na trama de Lane e Diane a desgraça que ocorreu na vida real à atriz Lana Turner e sua filha Cherryl — Lana se casou com um gangster que a maltratava e a filha o matou — Setembro é uma reciclagem de Vanya.

Lane (Mia Farrow)
Lane é uma mistura de Vanya, Sonya e Konstantin; é frustrada no amor e no trabalho e é apaixonada por Peter. Ele é Astrov; flerta com Lane mas é apaixonado por Stephanie, que no caso seria Yelena; ela corresponde o afeto de Peter mas não pode levá-lo adiante porque é casada e tem filhos. Diane é Alexandr e Arkádina, no sentido de ser uma péssima mãe e só pensar em si mesma, com a diferença de que é feliz no casamento com Lloyd, que é uma mistura de Marina e Telegin. Howard seria uma outra faceta de Vanya e Sorin, tentando conquistar, em plena meia idade e sem ser correspondido, o amor da jovem Lane, que neste caso se torna Yelena.

O beijo de Peter/Astrov e Stephanie/Yelena ocorre em uma despensa e eles são flagrados por Lane/Vanya, uma corretora de imóveis e um casal de potenciais compradores da casa. Para piorar, logo na seqüência Diane/Alexandr resolve melar a venda da casa avisando que pretende ficar lá com Lloyd, o que provoca a explosão de Lane. Ela e a mãe têm uma tensa lavagem de roupa suja e Diane desiste de ficar e vai para Palm Beach com Lloyd. Lane esconde consigo um vidro de valium que Stephanie, neste caso incorporando Astrov, a obriga a devolver. Peter e Howard vão embora e deixam Lane e Stephanie sozinhas.

É um trabalho menor, embora competente, de Allen, escorado nas interpretações perfeitas de Dianne Weist e Elaine Stritch, e no trabalho correto de Mia Farrow, Sam Waterston, Denholm Elliott e Jack Warden. Ao contrário das adaptações que veremos a seguir, o filme de Allen não se enquadra nessa classificação; é, antes, um filme autoral feito, basicamente, sob a inspiração de Vanya e de Tchekhov.

Em maio de 1988 estreou, no Vaudeville Theatre em Londres, uma montagem de Uncle Vanya com tradução de Michael Frayn e direção do consagrado ator e diretor australiano Michael Blakemore. O elenco impressionou pela qualidade: Michael Gambon (Vanya), Jonathan Pryce (Astrov), Greta Scacchi (Yelena), Imelda Staunton (Sonya), Benjamin Whitrow (Alexandr), Elizabeth Bradley (Marina) e Jonathan Cecil (Telegin). No papel de Mariya Vassilyevna estava Rachel Kempson, viúva de Michael Redgrave (que falecera três anos antes) e mãe de Corin, Lynn e Vanessa Redgrave. Foi um dos maiores sucessos da temporada teatral daquele ano e seja por isso, ou pelo fato de ser um dos maiores encenadores de Tchekhov no teatro inglês, Blakemore decidiu voltar a Vanya, tempos depois. Antes disso, porém, quem tomou a dianteira nas várias adaptações que a peça receberia a partir de então foi o dramaturgo norte-americano David Mamet. Ele já adaptara a tradução de Peter Nelles para O Jardim das Cerejeiras, em 1986 e dois anos depois recebeu uma encomenda de Robert Brustein, produtor do ART — American Repertory Theater (teatro que existe dentro da Universidade de Harvard), para adaptar a tradução que Vlada Chernomordik realizara de Vanya.

Jonathan Pryce (Astrov), Michael Gambon (Vanya) e Greta Scacchi (Yelena)
no Vanya dirigido por Michael Blakemore em 1988

O Vanya de Michael Gambon, 1988
Não conheço suas adaptações para Jardim das Cerejeiras ou Três Irmãs (que ele adaptou em 1990), mas o que ele fez com Vanya foi basicamente adaptar o texto para uma prosódia moderna norte-americana. "Atemporalizou" o texto, de certa forma, e incluiu, aqui e ali, mudanças mínimas e em geral, desnecessárias.

Comparando com a mais conhecida e utilizada de todas as traduções, que é a de Constance Garnett, vemos o seguinte: na primeira fala de Vanya, Mamet já inclui uma piadinha teutônica — ao invés de the Professor and his wife ele diz the Herr und Frau Professor — e um afrancesamento bobo que nada tem a ver com o personagem — ao invés de at lunch and dinner I eat the wrong sort of food usa-se I'm served all sorts of 'je ne sais quoi' to eat. Ninharias, bobagens sem qualquer relevância ou alteração de significado, e cacoetes do próprio autor: quando Sonya pergunta a Astrov se ele já jantou, Garnett traduz literalmente do russo: No, I haven't (Нет-с, не обедал). Já no texto de Mamet temos uma perfeita "mametice": No, many thanks and thank you kindly, no, I haven't, no.

David Mamet
Mesma coisa quando Mariya diz ao filho que quer falar. Troca-se o simples e irritado but I want to talk! por no... I want to talk, dado de forma inutilmente solene e dramática nas montagens sucessivas, e Vanya responde: We've been talking and talking, and reading pamphlets for the last fifty years! Mamet torna a fala estupidamente rebarbativa: We all want to talk. We've been talking. We've been talking the last fifty years. Fifty years we've been talking, reading, writing pamphlets.

Telegin fala de sua mulher tê-lo deixado no dia seguinte ao casamento por ele não ter uma aparência atraente (по причине моей непривлекательной наружности); Mamet reduz o comentário a I think she didn't like me, ou seja, corta-se importante aspecto da peça refletido no personagem — a atração por beleza x atração por personalidade — e o apelido "Waffles" cai no vazio. Na cena da convalescença Alexandr pede a Vanya que não fique lá: I entreat you to go for the sake of our past friendship. Mamet corta inexplicavelmente a ótima ironia do "past", incluído para mostrar em que pé andavam as relações entre os dois. E por aí seguem, nessa linha, os cortes e as mudanças de texto, que em nada beneficiam personagens ou trama. 

Daniel Von Bargen (Vanya), 1988
O primeiro teste para esse trabalho conjunto de Vlada Chernomordik e David Mamet veio na estréia, em abril de 1988, do Uncle Vanya dirigido por David Wheeler para a temporada do ART. O elenco não era espetacular como o da montagem de Blakemore (que estrearia em Londres no mês seguinte), mas tinha um trio protagonista competentíssimo, liderado pelo Astrov de ninguém menos do que o superlativamente carismático Christopher Walken. Junto a ele estavam o Vanya de Daniel Von Bargen (cujo background era teatral mas ficou bem mais conhecido por seus papéis coadjuvantes no cinema) e a Yelena de Lindsay Crouse (esposa de Mamet, na época, e também mais conhecida por suas interpretações cinematográficas). Além deles, Bronia Stefan Wheeler (Marina), Alvin Epstein (Alexandr), Tim McDonough (Telegin), Pamela Gien (Sonya) e Priscilla Smith (Mariya). A jornalista Hilary DeVries assistiu a peça, que teve uma temporada rápida e analisou o impacto do texto de Mamet sobre o original de Tchekhov e escreveu crítica certeira, na ocasião:

Walken (Astrov), Pamela Gien (Sonya)
e Von Bargen (Vanya), 1988
Não é fácil descrever o Astrov do Sr. Walken e o Vanya de Dan Von Bargen como se tivessem sido arrancados de uma peça original de Mamet, seja "American Buffalo" ou "Glengarry Glen Ross", enquanto o resto do elenco lida bravamente com a vida russa na virada do século. (...) Esqueçam o texto de Tchekhov ou a complexidade dos outros relacionamentos da peça, este 'Vanya e Astrov' é completamente um Mamet moderno — todos os tiques neuróticos, cadências amalucadas de discurso que deixam entrever um bando de demônios internos que reduzem a tragédia filosófica de Tchekhov ao nível das ansiedades do século XX. (...) Yelena é linda, entediada e desapaixonada por seu alquebrado e exigente marido, Serebryakov (...). Sonya, sua enteada, é caseira, entediada e apaixonada por Astrov. Se suas performances não chegam a ser notáveis (com exceção da extremamente notável cena da reconciliação entre as duas), elas pelo menos são coerentes com o período e, no caso da Srta. Gien, adequada ao ambiente e a intenção da peça.

Lindsay Crouse (Yelena) e Christopher Walken (Astrov), 1988

Sobre Crouse a articulista faz um comentário que poderia ser facilmente repetido na montagem seguinte da adaptação de Mamet, conforme veremos:

Como a ótima atriz que é, Crouse tem o fardo de interpretar Yelena  a ninfeta madura que provoca fogosos devaneios nos homens somente por entrar em uma sala  fora do padrão. Crouse, cerca de dez anos mais velha que seu papel (...), perambula, linda e entediada como manda o texto. Mas Crouse tem uma aura inegável de autoridade. Quando Yelena lamenta sua incapacidade de ensinar os camponeses, o comportamento de Crouse é de quem poderia estar governando a Rússia.

David Warner (Vanya), 1991
A adaptação de Mamet voltou a ser utilizada em 1991, na montagem de Uncle Vanya produzida pela BBC em parceria com a norte-americana PBS para o programa "Performance". Dirigido por Gregory Mosher, o elenco escolhido é bastante eclético (o que nem sempre é uma vantagem). Vanya é interpretado pelo excelente David Warner, velho conhecido de Tchekhov, cuja Gaivota ele protagonizou com Simone Signoret, no antigo filme de Sidney Lumet. O sempre bom Ian Holm foi chamado para dar vida ao médico Astrov. Temos aqui um problema recorrente: aos 60 anos, Ian parece mais um velho pastor evangélico que vai levar conforto espiritual à família, de quando em quando, do que o sujeito por quem as duas mulheres se apaixonam. O absurdo se exponencializa quando descobrimos que Yelena será interpretada por Mary Elizabeth Mastrantonio, uma das atrizes mais lindas e sensuais do cinema, na época com apenas 32 anos. O tarimbado Ian Bannen ficou com o papel de Alexandr e Rachel Kempson voltou ao papel de Mariya Vassilyevna, que interpretara pouco antes no Vanya de Michael Blakemore.

Por fila: Ian Holm, David Warner, Rachel Kempson,
Mary Elizabeth Mastrantonio, Rebecca Pidgeon,
Ian Bannen, Roger Hammond e Sandra Voe
Recém-casada com Mamet (que no ano anterior se separara de Lindsay Crouse), a jovem Rebecca Pidgeon recebeu o papel de Sonya. Menos conhecidos mas experientes, Sandra Voe interpretou Marina e Roger Hammond interpretou Telegin.

As mudanças de Mamet tornam o ritmo relativamente mais ágil mas há um miscasting intransponível. A brilhante e talentosa Mary Elizabeth Mastrantonio não nasceu para ser Yelena. É outro problema recorrente em montagens da peça: assim como Lindsay Crouse, Mary transborda personalidade e autoridade. We're both tiresome people, we're both dull, que é como ela justifica sua amizade com Vanya, ou I am just a dull second-rank character, que é como ela própria se define são as últimas coisas que pensamos em relação a ela. Para que uma atriz com tal presença e tão famosa por filmes onde demonstrou ser exatamente o contrário de Yelena, conseguisse se desvestir disso e assumir a pele aborrecida e frustrada da esposa do professor Serebryakov, seria necessário um dos mais complexos e profundos trabalhos de desconstrução de personagem. Ajudaria que ela contracenasse com um Astrov por quem pudesse sentir alguma coisa, porque não há mágica que nos faça crer em seu deslumbramento pelo velhinho que fala das árvores, sobretudo quando o diretor cometeu o erro de manter no texto a fala de Yelena em que ela afirma ser ele ainda jovem e ter "trinta e seis ou trinta e sete anos".

Sonya (Pidgeon) e Astrov (Holm): crush avoengo
Quanto ao próprio Holm, geralmente ótimo, aqui está deslocado. Sua ligação com Yelena não convence, isso já sabemos, mas até com Sonya a relação é torta. Na primeira cena, quando entra o sujeito com a mensagem de que ele terá que ir embora, ela se abraça a ele como uma criança, e ele corresponde como o amantíssimo avô com sua neta favorita. Não vejo qualquer sentido nisso. O texto pressupõe que além de um crush de proporções homéricas, o que a moça tem pelo médico é uma imensa admiração intelectual, e conseqüentemente se sente intimidada quando está com ele. Está tão apaixonada que não se atreveria a tocá-lo. Vemos isso com clareza na interpretação perfeita de Joan Plowright. Rebecca Pidgeon, não obstante, está muito bem. Assim como Rachel Kempson, que aos 81 anos era uma velhinha linda e com suas poucas falas distribuiu elegância. Realeza teatral pura. Esperava uma performance mais vigorosa de Ian Bannen. Ele é um Alexandr controlado demais, sem picos de exaltação.

Rachel Kempson: realeza

Uma Yelena brutal: "You disgust me"
David Warner não teve uma tarefa nada fácil. Além de seu Vanya não ter nenhum humor, as adaptações de Mamet para as falas de Yelena tornaram a dinâmica dos dois um tanto desigual. No texto original, Yelena e Vanya são "amigos", no sentido de que ela tolera a paixão do ex-cunhado de seu marido jogando-lhe um osso, ocasionalmente, por pena. Isso dá mote para situações que vão da ternura ao humor, e mesmo quando são desconfortáveis ficamos do lado de Vanya. Mamet tornou Yelena ambígua. No segundo diálogo de ambos, quando Vanya lhe fala de seu amor comparando-o a um raio de sol que se perde em um poço, Garnett traduziu a resposta com a frieza normal de Yelena: When you speak of your love for me I feel stupid and don't know what to say. Forgive me. There's nothing I can say to you. Good night. Já Mamet deixa no ar a possibilidade do "sim" como se aquela fosse uma decisão dificílima para Yelena: You speak to me of love. How am I to deal with that? I don't know. I'm sorry but it's true. What did you expect? I'm sorry. I must say good night. Quando vai embora, entretanto, ela olha para ele sorrindo e ao invés do ultrajado Don't! This is really hateful!, ela diz: You disgust me. Crueldade não condizente com Yelena.

"I alone am happy, I'm in ecstasy"...
Há algumas soluções interessantes que não sei se são criações do diretor ou sugestões de Mamet mas certamente não passam desapercebidas. Na cena da convalescença de Alexandr, por exemplo, o diálogo tenso entre o velho e sua esposa é suavizado. Respostas dela, como I'm ready to collapse adquirem tom irônico, figurativo. O casal está trocando farpas mas Mamet brinca com as falas do professor, que são azedas, fazendo-as parecer uma brincadeira entre os dois. Funciona parcialmente e torna o personagem de Alexandr menos odioso. Na mesma linha, sabemos que Marina o trata com um carinho que tem o condão de acalmá-lo e fazê-lo parar com seu mimimi. Aqui vemos que ele muda da água para o vinho com a atenção da criada e vai embora com ela bem humorado e satisfeito. Belo contraponto para a verdadeira terra arrasada que ele deixa por trás de si, com as duas mulheres emocional e fisicamente exauridas.

"All right, one more time"
Há derrapadas: na (tenebrosa) cena da sedução de Yelena, Astrov está de costas para Vanya. Quando o médico se vira o vê com o buquê de flores, ele dá uma risada extemporânea, ao que Vanya responde: Very well, never mind, sorrindo. Aqui a crueldade não é condizente com Astrov, que tem no texto um comentário idiota para mostrar o desconforto de ter sido pilhado, e não precisaria rir na cara de Vanya. Muito diferente do riso de Sergey Bondarchuck, discreto, envergonhado e só entre os dois. Já na cena do atentado, Vanya dá dois tiros e erra. Ele então caminha até o professor, diz all right, one more time, põe o revólver em seu queixo e atira. O revólver não dispara. Ele se vira e anda lentamente até uma cadeira dizendo, baixo: No. Oh, no. Damn, damn this, damn. A cena perde o dinamismo, perde a característica de "insanidade temporária" e se transforma em uma tentativa de assassinato a sangue frio. E o que é pior: ninguém dá um pio ou tenta pará-lo quando ele faz isso. Yelena limita-se a dizer, desanimada, o kill me, take me away or kill meNada a ver.

Mastrantonio: esbanjando personalidade

Yelena (Mary Elizabeth Mastrantonio)
e Astrov (Ian Holm), 1991
Apesar de durona, cheia de personalidade e nem um pouco frágil, a Yelena de Mastrantonio é, paradoxalmente, mais chorona do que as outras. Na cena da sedução faz cara de indignada e quando se espera que meta a mão em Astrov, começa um chorinho safado que ninguém sabe de onde veio. É o problema de algumas montagens; tentar mostrar uma Yelena em conflito com sua corruptibilidade, e, no caminho, matando o romance da cena.

Interminável, a cena da despedida tem o diálogo normal do finita la comedia e o for once in my life é dado aos prantos, enquanto ela se joga nos braços de Astrov, quase derrubando o pobre velhinho. O programa foi ao ar em outubro de 1991 e não teve maior repercussão. Foi ressuscitado recentemente em uma caixa de DVDs onde estão várias performances televisivas de peças de Tchekhov. A adaptação de Mamet, porém, seguiu sendo usada eventualmente por grupos amadores e profissionais, nos Estados Unidos.

Em 1994 Michael Blakemore voltou à Vanya, seis anos depois de dirigi-lo no teatro. Só que desta vez o diretor optou pelo cinema, mídia no qual era bissexto. E também não utilizando o texto em sua forma original, mas adaptando-o para New South Wales, na Austrália, em 1919. Da montagem original só quem ficou foi Greta Scacchi. Blakemore ofereceu o papel de Alexandr ao grande Nigel Hawthorne mas este encontrava-se ocupado com vários trabalhos, entre eles o mais importante papel de sua carreira, o Rei George III em The Madness of King George. Declinado o convite, Blakemore decidiu ele mesmo interpretar o professor.

Só que na adaptação, de crítico de arte, Alexandr Serebriakov se tornou o crítico teatral Alexander Voysey. Ele passou os últimos vinte e dois anos em Londres e resolve visitar sua filha, Sally (Kerry Fox). Leva com ele sua jovem esposa, Deborah (Greta Scacchi). Sally administra a propriedade da família, no interior australiano, junto ao tio Jack Dickens (John Hargreaves) e lá moram sua avó, Maud (Patricia Kennedy), o amigo Wally Wells (Ron Blanchard) e duas empregadas, uma mais velha, Hannah (Googie Withers) e uma novinha e bonita, Violet (Robyn Cruze). O médico da família é o Dr. Max Askey (Sam Neill).

Alexander (Michael Blakemore)
Além do que é evidente, ou seja, a mudança de cenário, a criada bonitinha e todo um contexto político pós-guerra, em que Max Askey não é apenas ambientalista, mas luta aguerridamente contra os latifundiários pela preservação das florestas e um tratamento digno aos índios (questão em voga na época, em que a união de colônias britânicas que formou, finalmente, a “Federação da Austrália” contava menos de duas décadas), Country Life tem como novidade o fato de que a primeira meia-hora é uma espécie de pré-história da peça. Vemos a chegada de Alexander e Deborah, as dificuldades de adaptação e com isso entendemos melhor o estado de espírito em que se encontram todos eles no momento em que a peça de Tchekhov começa, efetivamente. Sonya logo se dá conta que o pai é um insensível, preocupado somente consigo mesmo; a vida rural faz aflorar o pior em Deborah e ela se vê de frente com o absurdo de seu casamento e o vazio de sua existência e assim por diante. 

Deborah (Greta Scacchi)
Há também uma alteração sensível nas características de alguns personagens. Alexander não é só pomposo e mimado, mas também um cafajeste prevaricador. A empregada Violet foi adicionada à trama apenas para mostrá-lo flertando desavergonhadamente com ela e tentando assediá-la em seu escritório. Esse aspecto imoral de seu comportamento dá margem para que se inclua uma cena dele em consulta desesperada com Askey, onde ficamos sabendo que o único flerte do crítico é com a impotência. A jovem Deborah, insatisfeita e conhecedora da imoralidade do marido, tem nisso a desculpa perfeita para traí-lo. Uma solução interessante. Sally não é suave e doce como Sonya; masculinizada pela vida que levou, ela é uma espécie de capataz da fazenda e tem prazer de pegar no pesado, enquanto o tio é um ex-dândi que aprecia música, literatura e se ocupa mais da parte burocrática. Ela também não é resignada e passiva; sente ciúmes de Deborah e ao pressentir que a madrasta alimenta o flerte com Askey, avisa com acintoso prazer que o médico foi chamado para uma emergência. Ela mantém, entretanto, a essência de Sonya.

Greta Scacchi, John Hargreaves,
Kerry Fox e Sam Neill
No caso de caso de Vanya, as alterações são problemáticas: Jack Dickens é uma caricatura de Ivan Petrovich. É um personagem apalermado, subserviente, sempre aos gritos e tropeços, com um sorriso falso e permanente na boca. Compreende-se que idolatrasse Alexander e com o tempo percebesse que estava enganado mas no filme essa mudança se opera rápido demais. Jack ama Alexander e depois de ler um manuscrito qualquer do crítico, se decepciona e passa a odiá-lo a ponto de tentar matá-lo.

Kerry Fox, Patricia Kennedy, Googie Withers e  Robyn Cruze são boas atrizes; sou suspeito para falar de Greta Scacchi porque a considero uma absoluta perfeição de mulher, além de excelente atriz. Greta é a razão pela qual o cinema existe. Dito isto, ela é uma ótima Deborah/Yelena e tem momentos maravilhosos, como a cena de sua reconciliação com Sally (que por sinal ocorre não pela razão original da peça, mas porque Deborah percebeu que Sally ama o médico e não quer que ela pense que são concorrentes). Do céu ao purgatório, Sam Neill é o mesmo medíocre sensaborão de sempre e por conta disso seu papel passa em brancas nuvens. Ele é apático, inexpressivo, não transmite nenhuma emoção, sua química com Greta Scacchi (ou com qualquer outro personagem) é zero e são constrangedoras as cenas românticas de ambos.


Sem ser uma obra-prima, Country Life é uma adaptação agradável e tem bastante mérito. Ao contrário do texto de Mamet, que se limita a trocar palavras, o texto de Blakemore segue a linha mestra de Tchekhov mas acrescenta falas, situações e novos aspectos aos personagens originais. Estreou em outubro de 1994 na Austrália e em 1995 no resto do mundo.

Lançado em 1981 com direção de Louis Malle, o filme My Dinner with André se passa em um restaurante e é um diálogo que mistura realidade e ficção entre o diretor de teatro Andre Gregory e o ator Wallace Shawn, ambos roteiristas do filme. André começara sua carreira nos anos 60 e depois de inúmeras experiências pelo mundo ele se decepcionara com o teatro e estava afastado. O filme reativou sua carreira e no fim da década de 80 ele trabalhava com um pequeno grupo de atores quando entrou em contato com a adaptação de Mamet para Uncle VanyaTchekhov fora sempre um de seus autores favoritos (ele chega a citá-lo no filme de Malle) e ele decidiu fazer uma espécie de workshop com a peça, sem a ambição de transformá-la em um espetáculo comercial. O projeto teve início em 1989 e se prolongou pelos anos seguintes até que em 1994 eles ocuparam o velho e decadente New Amsterdam Theater, em Nova York. Louis Malle foi novamente chamado por Gregory e começou a tomar forma o filme Vanya on 42nd Street.

A concepção, a exemplo de My Dinner, era a mais simples possível: não haveria cenário, apenas objetos de cena e móveis para cada ambiente; não haveria figurinos específicos e sim as roupas dos próprios atores e eles encenariam a peça utilizando uma parte do palco. Em outra estariam André e um pequeno grupo de convidados para assistir a encenação. O formato que juntava elenco e um grupo seleto de espectadores era recorrente nas apresentações dirigidas por André, e Malle decidiu mantê-lo no filme.

Malle, Shawn e Gregory
A versão de Olivier é o que se costuma denominar "teatro filmado". Não é exatamente o caso deste Vanya, que se enquadra mais no que seria uma leitura dramática, só que com o texto já decorado e poucas marcações em um espaço bem limitado. Não sei ao certo quem fazia parte do elenco fixo de André Gregory mas acredito que das leituras anteriores ficaram Wallace Shawn (Vanya), Larry Pine (Astrov), Phoebe Brand (Marina) e Lynn Cohen (Mariya). Juntaram-se a eles o experiente George Gaynes (Alexandr), Jerry Mayer (Telegin), a jovem e lindíssima Julianne Moore (Yelena) e Brooke Smith (Sonya). A intenção, aparentemente, foi extrair o máximo de realismo da peça e afastá-la tanto quanto possível da Rússia de 1897. Se essa era a intenção, conseguiram. Se isso se coaduna com o texto de Tchekhov, é uma questão de opinião. De minha parte, achei interessante ver os atores chegando ao teatro, conversando sobre assuntos pessoais, mostrando o ambiente nova-iorquino da época e iniciando o texto de maneira quase imperceptível. 

Por fila: Wallave Shawn, Larry Pine, Phoebe Brand,
Jerry Mayer, Lynn Cohen, Julianne Moore,
Brooke Smith e George Gaynes
Como não há propriamente uma obra cinematográfica para ser dissecada, podemos analisar a performance dos atores. Wallace Shawn é uma figura no mínimo curiosa. Ele parece uma tartaruga com cara de porquinho. Sua voz é anasalada e ele tem a língua presa. Quando fala, é o próprio Patolino. Imagino que sua escolha para o papel venha não só de sua longa associação com André Gregory, mas justamente da idéia de que quanto mais cara de loser, melhor ele encarnará Vanya. Como já deixei claro no comentário sobre o Vanya de Michael Redgrave, discordo dessa concepção. Vanya não é um loser. Pelo contrário; ele tinha todo o potencial para ser um grande homem — e inclusive para se casar com Yelena anos antes, como ele deixa claro, em seu monólogo do segundo ato — mas se deixou virar um loser pela idolatria mal-orientada e malfadada pelo ex-cunhado. Escalando Shawn para o papel e fazendo dele um Vanya pegajoso e inconveniente, Gregory neutralizou um dos dramas da peça: a paixão de Vanya por Yelena não se torna algo simplesmente impossível; torna-se absurda e beira o grotesco. Os dois juntos parecem o corcunda de Notredame importunando Esmeralda. Se abstrairmos essa incompatibilidade fundamental, o trabalho de Shawn é ok.

Julianne Moore (Yelena)
Julianne Moore não era exatamente uma iniciante mas tinha feito mais televisão e apenas uma meia dúzia de filmes quando participou deste projeto. Amo Julianne desde aquela época e considero-a uma das melhores e mais lindas atrizes de Hollywood. Sua beleza resplandece, no filme. Tenho, entretanto, algumas restrições sobre essa performance. Não saberia dizer se a culpa é dela, de Gregory ou de Louis Malle, mas detecto duas ou três personalidades diferentes em sua Yelena. Não há, por assim dizer, uma unidade interpretativa, uma uniformidade em sua performance, coisa que Rosemary Harris fez com perfeição. Quando a Yelena de Julianne entra e se senta com os outros ela parece ser uma pessoa séria e normal mas em momentos específicos de suas conversas com Vanya ou com Astrov ela se porta como uma menina infantil e idiota. Fala como uma idiota, ri como uma idiota e não transmite nada que faça lembrar a verdadeira essência de Yelena. Creio que ela errou o alvo; quis mostrar uma pessoa entediada e meio desligada e ao invés disso interpreta uma tonta que vive rindo. O adjetivo ditzy me vem à cabeça instantaneamente quando penso em sua Yelena.

O segundo ato mostra muito disso; a cena da convalescença de Alexandr traz o mesmo jogo da montagem televisiva de 1991, ou seja, a troca de farpas entre Yelena e o marido mistura realidade com brincadeira, e tem até um beijo dos dois (o que deve ter provocado cambalhotas nos ossos de Tchekhov). Mas nessa cena Julianne é, não obstante, uma Yelena séria quando deve ser séria e brinca quando deve brincar. Já no diálogo com Vanya ela se idiotiza completamente e na seqüência, com Sonya, volta à seriedade e se dirige à enteada com a sobriedade de uma madrasta severa e dedicada. Quando Sonya levanta e vai perguntar ao pai se Yelena pode tocar piano, Julianne chora. Não é um choro falso, mas não é natural e constante, como no caso de Irina Miroshnichenko; é técnico. É on cue.

Seguindo o que deve ter sido uma orientação de Gregory, Larry Pine é um Astrov completamente diferente daquele escrito por Tchekhov. Ao invés do médico sofrido, rude, beberrão e calejado pelas desgraças, Pine lembra um cinqüentão meio mauricinho, com o cabelo tingido, uma espécie de yuppie envelhecido. É o problema central dessa montagem: "contemporanizou-se" tanto a performance que ela não tem mais nada a ver com o texto original. Os atores são todos muito bons, mas o que estamos vendo não é Tchekhov.

No mais, George Gaynes é muito bom, possivelmente a melhor interpretação de todo o filme, e Brooke Smith é uma boa atriz, embora falte-lhe meiguice para interpretar Sonya. Enfim, é apenas minha opinião. O filme é bastante famoso e muito utilizado por pessoas que desejam ter seu primeiro contato com a peça. Num mundo perfeito, isso ocorreria com a versão de Olivier.

Hopkins: aos 33 anos, um excelente Astrov
O Vanya de
Anthony Hopkins

Desde a sua criação, no fim dos anos 30, a BBC adaptou grandes obras da dramaturgia universal para a TV. Um dos programas dedicados ao teatro, na emissora, era o "BBC Play of the Month" e Tchekhov esteve freqüentemente na lista de autores escolhidos. No elenco de muitas dessas montagens estava Anthony Hopkins, que iniciara sua carreira profissional em 1965 no National Theatre, a convite de Olivier. Em novembro de 1970, provavelmente em meio ao lançamento russo do Dyadya Vanya de Konchalovsky, a peça escolhida pela BBC foi Uncle Vanya, que recebeu direção de Christopher Morahan. A tradução foi de Elisaveta Fen, que pouquíssimo se afastou do trabalho já conhecido de Constance Garnett. O elenco dessa montagem, assim como de várias outras da BBC, é pra lá de irregular: Freddie Jones (Vanya), Anthony Hopkins (Astrov), Ann Bell (Yelena), Roland Culver (Serebriakov), Jenifer Armitage (Sonya), Anne Dyson (Mariya), Susan Richards (Marina), John Baskcomb (Telegin). Desnecessário dizer que com 33 anos incompletos, Hopkins já era a única estrela desse elenco.

Por fila: Freddie Jones, Anthony Hopkins, Roland Culver,
Ann Bell, Jenifer Armitage, Susan Richards, John
Baskcomb e Anne Dyson
Não há muito que se possa dizer sobre esse Vanya da BBC porque o programa era basicamente uma engrenagem que produzia uma peça por mês. Se o produto tinha ou não qualidade, era problema de outro departamento. Não havia mistério: quando contavam com grandes atores e um diretor talentoso, as montagens eram boas. Quando juntavam um bando de desconhecidos e um diretor medíocre, o produto final deixava a desejar. No caso em questão, é um meio termo. A direção é nula; a encenação é chata e sem humor; Freddie Jones é um Vanya deprimido e deprimente que não sorri uma única vez; Ann Bell é uma Yelena infantil; fala ciciando e choraminga como uma menina de treze anos; Jenifer Armitage é uma Sonya doce e bonita mas de performance algo monocórdia; os outros são competentes mas não deixam lembrança. Resta Hopkins que salva a montagem, com uma das melhores criações de Astrov em todos os tempos.

Embora seja claríssima a influência de Olivier no trabalho de Hopkins, sobretudo na prosódia e na entonação (há momentos em que ele praticamente imita o mestre, de quem por sinal foi stand in durante alguns anos), sua abordagem é inteiramente diferente. Porque se Olivier foi capaz de fazer o médico brilhar com humor e sarcasmo, é certo dizer que ninguém seguiu tão à risca a orientação de Tchekhov para a composição de Astrov, como Hopkins. Pela primeira (e única) vez, estamos vendo alguém fiel às descrições de Marina, Sonya, Yelena e do próprio Astrov para si mesmo.

Um Astrov alcoólatra

Vanya (Freddie Jones) e Astrov (Hopkins)
No primeiro ato Marina lhe diz que ele está envelhecido e ele está, mesmo. Sua expressão é de fadiga e seus olhos transmitem pura exaustão. A criada brinca com o consumo excessivo de álcool por parte do médico, o que mais tarde é confirmado por Sonya e Yelena; aqui está um dos traços mais marcantes dessa performance: o Astrov de Hopkins é um alcoólatra. Tem cara e trejeitos de bêbado. Mas não o demi-drunk de Olivier, que está mais para o pileque inofensivo do que para a embriaguez inconseqüente, ou o bêbado controlado e curtido na pinga, de Sergey Bondarchuck; o Astrov de Hopkins é mais jovem e tem cara de quem bebe todos os dias e afoga suas mágoas na vodca. Sua interação com Sonya é rica e diversa das interpretações que vemos por aí, e por uma simples razão: Astrov está, efetivamente, bêbado. Quando se inicia o diálogo dos dois, de madrugada, o médico se aproxima dela, abraça-a, há um carinho perfeitamente etílico, por parte dele. E segue nas reações, nos olhos semi-cerrados, nos meneios de cabeça. É crível, finalmente, a frase na qual diz que não comeu nada durante o dia, só bebeu.

Sonya (Jenifer Armitage) e Astrov (Hopkins):
um bêbado carinhoso
A rudeza de Astrov, comentada por Yelena, também foi depurada na medida exata por Hopkins. Ele não é o rude piadista e classudo de Olivier ou o rude só na aparência, de Bondarchuck; o Astrov de Hopkins já na cena do chá explica seu ponto de vista com clareza e objetividade mas quando percebe que não está sendo levado a sério por Vanya, aumenta o tom de voz quase ao ponto da estupidez. Outro exemplo excelente de sua rudeza vem na cena da bebedeira; nas duas vezes em que pede a Telegin que toque o violão e recebe a mesma resposta de que as pessoas já estão dormindo ele não repete o pedido de forma cômica como Olivier e Bondarchuck; ele berra, histérico: "Play!" Quando Sonya aparece e pede a ele que beba à vontade mas não deixe o tio beber, mesma coisa; ao contrário de Olivier, cuja resposta atravessada foi somente para que ela se sentisse culpada de ter reclamado com ele, ou de Bondarchuck, que não teve reação nenhuma, Hopkins responde aos gritos, visivelmente alcoolizado, irritadíssimo, o que leva Sonya a um "shhhhh" que certamente teria divertido Tchekhov.

É um trabalho que segue de perto a montagem de Chichester. Ann Bell, Roland Culver, Jenifer Armitage e Susan Richards parecem emular os atores da célebre encenação dirigida por Olivier. O resultado é pálido. Mas se sobressai a performance de Hopkins.

No início de 1994, sem ter idéia de que os Vanyas de Louis Malle e Michael Blakemore estavam sendo produzidos, os diretores do Theatr Clwyd — equivalente galês do National Theatre inglês — abordaram Anthony Hopkins sobre a possibilidade dele encenar alguma peça naquele teatro. O convite era natural, considerando que o ator nasceu no condado de Glamorgan, no País de Gales, e é, atualmente, sua maior estrela. A princípio Hopkins cogitava montar algo na linha de The Dresser, de Ronald Harwood, ou Lear, de Shakespeare. Porém, o dramaturgo Julian Mitchell havia acabado de concluir uma adaptação de Uncle Vanya para um contexto galês e sugeriu o texto a Hopkins. Ele ficou fascinado com a idéia e estabeleceu duas condições para aceitar o convite: ele próprio iria dirigir o espetáculo, e um filme seria feito antes mesmo da montagem da peça. Condições aceitas, ele mergulhou no trabalho, que não incluiria apenas a interpretação do papel-título e a direção, mas a trilha musical, já que há tempos a música vinha deixando de ser apenas um hobby para Hopkins, adquirindo contornos profissionais. O filme, portanto, seria sua estréia como diretor e como compositor.

Mais uma vez os nomes foram ligeiramente adaptados; alguns para seus próprios equivalentes no idioma galês, outros mais para o inglês, mesmo. Vanya se tornou Ieuan (pronuncia-se “Iáian”) Davies, Alexandr virou Alexander Blathwaite, Yelena virou simplesmente Helen, Sonya virou Sian, Mikhail Lvovich virou Michael Lloyd, Marina virou Gwen, Mariya Vassilyevna virou Mair Davies e Telegin virou Thomas Prosser, apelidado “Pocky”, ao invés de Waffles. A ação se passa em alguma localidade rural ao norte do País de Gales e o moinho citado na peça de Tchekhov é uma pedreira, cujas explosões vez por outra deixam feridos que são tratados por Lloyd.


Vanya, 24 anos depois de Astrov
Com exceção de Sonya, geralmente feita por atrizes em início de carreira, Hopkins (Ieuan) juntou um elenco experiente e consideravelmente mais velho. O grande Leslie Phillips, com quase sessenta anos de carreira, ficou com o papel de Alexander; Gawn Grainger, que nos últimos trinta e cinco anos se notabilizara como um dos mais competentes coadjuvantes do teatro inglês, deu vida a Michael Lloyd; Rhoda Lewis, também há três décadas trabalhando em teatro e TV, recebeu o papel de Mair Davies; Menna Trussler — vinte e cinco anos de teatro — viveu Gwen; Hugh Lloyd, a quem coube o papel de Thomas Prosser, tinha quarenta anos de teatro e TV, além de ter sido um dos atores cômicos mais famosos do Reino Unido, na década de 60. A novata Rhian Morgan interpretou Sian e Hopkins convidou a filha de Richard Burton, Kate, para o papel de Helen. Em entrevista ele explicou que desejava uma atriz que fosse norte-americana, o que enfatizaria sua sensação de não pertencer ao local, mas que tivesse algum tipo de ligação com o País de Gales, o que era o caso de Kate, cujo pai era um célebre galês.

Por fila: Gawn Grainger, Anthony Hopkins, Rhoda Lewis, Kate Burton, Rhian Morgan,
Leslie Phillips, Hugh Lloyd e Menna Trussler

O filme ficou pronto no fim do primeiro semestre de 1994. É interessante analisá-lo. Só Deus sabe o quanto eu gostaria de poder dizer só coisas boas sobre esse trabalho de Hopkins, que é um ator que eu amo e admiro há muitos anos. Não posso, infelizmente, por um dever de honestidade. Em termos plásticos, Hopkins foi muito feliz. As paisagens são lindas, as tomadas são bem feitas e os enquadramentos são corretos. O casarão utilizado me parece aristocrático demais para as 50 libras que Ieuan recebe anualmente do professor, mas funciona muito bem. A música é um ponto positivo e Hopkins revela-se talentoso também nessa área. Tecnicamente é um filme perfeito.

Leslie Phillips (Alexandr)
Seu grande erro não está na direção do filme, e sim na direção dos atores. Claudia Cassidy, a antiga jornalista do Chicago Sunday Tribune que ficou chocada com o fato do Old Vic inserir elementos de farsa ao clímax do terceiro ato, em 1946, teria uma síncope se assistisse o filme de Hopkins. Praticamente todas as cenas são de farsa, como praticamente todas as performances são over. A impressão é de que ator procurou tornar leve o drama de Vanya e de todos os outros, exagerando as características mais marcantes de alguns. Acabou desvirtuando-as. Tornou-as excessivamente teatrais, e, na maioria das vezes, quase ridículas. Vanya virou uma ópera-bufa. O Alexander de Leslie Phillips, por exemplo, não é só autoritário e egoísta, mas faz lembrar um vilão idiota de desenho animado. De tão desagradável ele é cômico. Já Rhian Morgan — que apesar de tudo se mostrou uma excelente atriz — é uma Sian chorona e histérica, ao invés de triste e resignada. Seu constante choramingo a torna chata.

Helen (Kate Burton)
A Helen de Kate Burton não é empática e não é simpática. É
cínica e coquete, quando bastaria deixar claro que seu coração continua pulsando por baixo de seu tédio e sua frustração. O primeiro exemplo é a cena do chá, quando Lloyd reclama que veio às pressas para cuidar do professor e ele estava bem. Ela não responde nada e simplesmente abre-lhe um sorriso largo e sexy. Faz caras e bocas com Ieuan pouco depois. É muito sedutor mas não tem nada a ver com a personagem, que inicialmente é seca com o médico; na peça de Tchekhov, Yelena chega a comentar com Vanya que por ser tímida, ignorou o médico em suas três visitas e que ele deve considerá-la uma pessoa de "mau temperamento" (Он подумал, что я зла). Rhoda Lewis, Menna Trussler e Hugh Lloyd somem em meio ao overacting. Gawn Grainger não é over mas seu Lloyd/Astrov de 60 anos, bonachão, maquiado, de cabelo tingido e bigode aparado não é rude, não bebe em excesso e simplesmente não é crível.

Hopkins: um bufão
O Ieuan/Vanya de Hopkins é um capítulo à parte. É, literalmente, um bufão. Não há outra palavra para descrever sua performance. Ele é uma coleção desordenada e aleatória de caretas, macaquices e exageros. Logo no início, quando o professor e os outros chegam do passeio, ele bate uma panela e grita várias vezes Tea time! Tea time!, com voz esganiçada. Vê-se desde esse momento que o tom ultrapassa o teatral. Na discussão com a mãe ele responde aos gritos mas não há sentimento. Ele o faz de propósito, e transforma a discussão em deboche. Quando Sian o obriga a ficar quieto ele começa a dançar sozinho e a imitar um pássaro, para irritar a mãe. Pouco depois, em meio a seu primeiro diálogo com Helen ele a puxa para a rede onde está deitado e os dois brigam aos gritos e gargalhadas como se fossem irmãos. O texto se dilui e o drama vira pastelão.

Helen: particularmente cruel com Ieuan
Excetuando Leslie Phillips, completamente over na cena de sua convalescença, o segundo ato tem os únicos bons momentos do filme. Hopkins coreografou seu segundo diálogo com Helen de forma criativa. Seguindo linha interpretativa contrária à que vinha acontecendo até o momento, o drama floresce. Não há palhaçada ou complacência. Ieuan tenta dar um beijo em Helen mas ela se mantém fria, sem corresponder, com os olhos abertos. Ele se afasta, se declara e é rejeitado sumariamente. Ieuan sente o golpe. Hopkins brilha em sua reação. Quando ela tenta ir embora, outro ótimo momento: ele dá a fala sobre mais uma vida sendo desperdiçada naquele lugar e ela lhe pergunta se está bêbado. Mas o questionamento não suaviza a conversa, como nas outras versões. Helen se torna ainda mais arisca e eles discutem de forma azeda, antes dela se desvencilhar e sair.

Na seqüência Hopkins abre um armário, o “santuário de Blathwaite”, uma versão mais rica da pasta com recortes do filme de Konchalovsky, e começa a rasgar os cadernos e livros que encontra dentro, enquanto faz seu monólogo. Aqui e ali há referências meio sem pé nem cabeça sobre País de Gales, para que a regionalização não seja esquecida. Pouco antes Alexander misturou Tchekhov com este comentário: Now for no reason I find myself in this ghastly welsh morgue, meeting stupid people all day long, forced to listen to their boring conversation... Wales, Wales.... it’s like living in exile! Ieuan faz o mesmo, durante seu acesso de raiva no qual picota os cadernos: I’ve been cheated, just like the welsh have always been cheated by the English.

A cena de Sian e Lloyd é bonita e sensível graças à performance de Rhian Morgan; em sua delicadeza ela traz à memória o trabalho ao mesmo tempo sutil e intenso de Irina Kupchenko.

Rhian Morgan: ótima, apesar de tudo

Daí em diante o filme se perde. O terceiro ato começa com a cena de Ieuan, Helen e Sian. Hopkins gargalha, faz caretas, abraça e chacoalha Helen e vai buscar as “rosas de outono, adoráveis e tristes” às carreiras, jogando para longe seu chapéu, gritando e cantando. Inqualificável. A cena da sedução de Helen tem um tom desafinado desde o princípio; como não há a mais ínfima química entre Kate Burton e Gawn Grainger, tudo soa falso, tanto a maneira meio agressiva com que ele a corteja e persegue pelo aposento, quanto a recusa dela, que vai do humor ao choque. Quando Astrov beija (ou simplesmente abraça) Yelena o público geralmente fica satisfeito, há uma certa catarse em ver acontecer algo que estava evidentemente reprimido. Neste caso a sensação é de desconforto, Helen não queria aquilo e parece ter sido beijada, efetivamente, à força. Na entrada de Ieuan os três gritam, assustados, em lance clássico de comédia pastelão. Apela-se desbragadamente para o humor fácil, deixando de lado o coração partido de Ieuan, a vergonha de Helen e o deslocamento de Lloyd.

Hopkins...
Gawn Grainger e Kate Burton: pastelão

Phillips e Hopkins: bufões
A cena da reunião em que Alexander anuncia seu plano de vender a casa é o corolário dessa sucessão de equívocos. Ieuan vai da irritação à histeria, pura e simples, rápido demais e Hopkins despeja as falas atropeladamente, aos berros, diluindo-se o texto e seu significado, mais uma vez. O desespero que o personagem diz estar sentindo, à mãe, foi canalizado fisicamente por Hopkins e por Leslie Phillips. Ao invés de enfatizar cuidadosamente as falas, num crescendo dramático , como fizeram Michael Redgrave e Innokenty Smoktunovsky, Hopkins grita, corre, gesticula, faz caretas, é um louco. Quando atira em Leslie Phillips, este se enrosca na cortina, pula a janela e sai correndo metido na cortina, como um fantasma trapalhão, no melhor estilo de Chaplin e Harold Lloyd. O absurdo é tal que adquire inesperado sentido uma de suas falas para queixar-se de estar em Gales: Wales, I can’t stand it. I feel I’ve fallen off the earth and landed on some undiscovered planetAté a música composta por Hopkins para essa cena é engraçada e faz lembrar as comédias do cinema mudo, com entradas, saídas, tombos, perseguições e demais maluquices.

Leslie Phillips e Kate Burton

Burton e Grainger:
um beijo pra lá de desconcentrado
Assisti esse filme pela primeira vez há uns vinte anos, na TV a cabo, e somente duas cenas ficaram em minha lembrança. Nenhuma delas por razões positivas. Recordava-me por alto da cena de Ieuan correndo como um doido pela sala, e, sobretudo, da despedida de Helen e Lloyd. E não por qualquer outra razão, senão pelo fato de que quando ela beija o médico, ele abre o olho rapidamente. É terrível. Por ser postiço, incoerente e impossível, o romance dos dois já não é algo no qual acreditamos, durante o filme, e no fim o beijo é tão falso, tão antisséptico, e o ator está tão desconcentrado que abre o olho. O porquê de Hopkins não ter refeito um take que deu tão obviamente errado é um mistério inextricável. 

O ator pretendia dar ao filme o nome de Country Life, por ser o subtítulo da peça. Foi quando descobriu que esse era precisamente o nome dado por Michael Blakemore à sua própria adaptação de Vanya, prestes a entrar em cartaz. Hopkins, então, optou por August. Considerando o filme de Woody Allen, podemos dizer que a história de Vanya está devidamente mapeada, no calendário.

Em outubro de 1994 August — a peça — estreou no Theatr Clwid, na cidade de Mold, e em novembro foi apresentada no New Theatre, em Cardiff, capital do País de Gales. Foi uma temporada de grande sucesso. Soube, inclusive, que o papel de Helen, por alguma razão, não foi feito por Kate Burton e sim pela linda atriz norte-americana Lisa Orgolini. Só posso lamentar que a escolha do papel não tenha recaído originalmente sobre ela, porque Kate não me agradou. O filme estreou cerca de um ano e meio depois, em meados de 1996. Não teve maior repercussão e foi logo esquecido. Primeiro porque, infelizmente, não é um filme memorável. E segundo porque depois das versões de Louis Malle e Michael Blakemore, a sensação é de que Vanya não precisava de mais uma adaptação, regional ou não.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...