quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Minestrone Cultural VIII

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O PATATIVA

Mais textos deste blog sendo usados como fonte para teses de doutorado na USP e na UNB. O ego agradece.



O VENTO E O BENTO


O clássico de Victor Fleming, "...E o Vento Levou", com Vivien Leigh e Clark Gable, estreou em dezembro de 1939 nos Estados Unidos, e em setembro de 1940 no Brasil. E é claro que o grande revisteiro Freire Junior e a atriz cômica Alda Garrido não perderam tempo e criaram às pressas um espetáculo de Revista satirizando o filme, "E o Bento... Levou", e o colocaram em cartaz já em outubro. (25/09/2016)

1909


O Barão do Rio Branco era chanceler de Affonso Penna. Vejamos o que diz esse comercial de "Manah", um fortificante qualquer (na verdade sacarose de tamarindo composto):

“Seu Barão, o que devo fazer para ficar forte e bonito como o senhor?”. O Barão responde: “Deves te alimentar com o milagroso Manah, que além de ser atualmente a salvação das crianças, ainda oferece um prêmio de 500$000”.

O detalhe é que os publicitários da época não contrataram o venerando barão, que jamais cederia sua imagem para um anúncio idiota como esse. Não era assim que funcionava. E Rio Branco tem em sua história uma nota de roda-pé como garoto propaganda do MANAH.

Pelo menos o bom e balofo barão foi chamado de "forte". E morreu três anos depois.

Este aqui é da série "Anúncios apelativos da década de 30":

(27/09/2016)


AYN RAND - A SENSE OF LIFE (1997)


Maravilhoso.

É catártico ver tanta inteligência em uma pessoa, e tal facilidade em transmiti-la. Ayn Rand desconstrói filosofia, política, sociologia, antropologia e psicologia, e realiza façanha que apenas um punhado de pessoas antes dela realizou, ao longo dos séculos: explicar de maneira clara, simples, concisa e envolvente, o segredo da felicidade.

Um bom documentário sobre um dos mais admiráveis seres pensantes de nossa história. (08/10/2016)

NIHIL SUB SOLE NOVUM


Caramba... ontem a página do Harold Lloyd postou uma montagem divertidíssima mostrando como o poster do filme mais recente de Keanu Reeves, John Wick 2, é idêntico ao poster do filme Two Gun Gussie, de Lloyd, lançado em 1918.

Hoje a página simplesmente deletou a postagem. Será que ficaram com medo de melindrar os produtores do filme de Reeves?? Bom, seja qual for a razão, refiz a montagem e posto novamente, só de birra. (12/10/2016)

MÁRIO PAMPONET

Mário Pamponet, Luis Avelima, Humberto Mesquita, Bernardo Schmidt e Synesio Jr.

A vida passa mesmo em um segundo. Naquele dia de fevereiro de 2014 fui haurir conhecimento e experiência roçando ombros com esses quatro coringas de nossa imprensa, de nossa televisão, de nossa música, de nossa cultura, enfim, de nossa arte. Da esquerda, Mário Pamponet Júnior, Luis Avelima, Humberto Mesquita e Synesio Júnior.Como não aprender com eles? E como não apreciar cada minuto da prosa que seguiu, terminado o programa de rádio que gravamos, e que seguiria eternamente se não tivéssemos que ir embora em algum momento?

A conversa andou pelo Pinga-Fogo, pela Bandeirantes, pelo velho João Sayad, pela Secretaria Municipal de Cultura, dali para a música, Caetano, Gil, Inezita Barroso e quando menos percebemos, estávamos às gargalhadas em plena Paulista com Avelima em verdadeira conjuração de Alaíde Costa! Sim, porque aquilo já transcendeu a imitação para virar uma coisa quase mediúnica.

Hoje perdemos Mário Pamponet. Fica a tristeza de não ter convivido mais com ele. Mas fica também o privilégio de tê-lo conhecido e abraçado. Obrigado, Mário! (25/10/2016)

DE WONKA PARA WONKA



Interessantíssimo saber o que o maravilhoso e recentemente falecido Gene Wilder pensava sobre o horroroso remake de Tim Burton para o clássico Willy Wonka and the Chocolate Factory.

Concordo com ele em quase tudo. (11/11/2016)

THE ADVENTURE OF SHERLOCK HOLMES'
SMARTER BROTHER (1975)




Gene Wilder alcançou o olimpo de Hollywood depois de seus três filmes com Mel Brooks, sua parceria com Woody Allen, o Willy Wonka dirigido por Mel Stuart e tudo o que fez naquele primeiro lustro da década de 70. Em 1975, dono de um dos maiores cachês da indústria, resolveu partir para a carreira solo. Escreveu, dirigiu e protagonizou "The Adventure of Sherlock Holmes's Smarter Brother", no qual interpretou um irmão mais novo e menos talentoso do famoso detetive de Conan Doyle.

Wilder trazia patentes a influência de Brooks e a memória afetiva de um passado que efetivamente não viveu, exceto (creio eu) pelo relato de pais e avós. No caso do primeiro temos a comédia pastelão, as piadas por vezes quase infantis e a presença de 80% do cast estável de Brooks, como Madeline Kahn, Dom De Louise e Marty Feldman.

Madeleine e Gene em foto promocional do filme
Quanto ao passado, a história ocorre na última década do século XIX e todo aquele período parecia ser fetiche de Wilder. Em tudo: interpretação, música, dança, comportamento, vestuário e assim por diante.

Outra impressão clara que se tem é a de que o filme é uma declaração de amor de Wilder a Madeleine Khan. Nunca ela foi mostrada de forma tão generosa, tão intencionalmente em primeiro plano, assim como em nenhuma performance ela logrou ser a um tempo linda, engraçada e cantora brilhante. Tudo nela pode e deve ser admirado, em cada cena. Que outra razão poderia haver para que Wilder incluísse, no produto final, três números musicais inteiros protagonizados por ela, sendo que não são capitais para o enredo e deles poderia haver apenas trechos? Entre eles há que citar "You don't love as I do", de 1923, precedendo o atentado sofrido pela personagem de Kahn, no teatrinho de vaudeville primorosamente recriado. Ela é o diamante dessa coroa. Wilder ter deixado de lado por instantes a comédia rasgada, aproveitando a magnífica voz de Kahn, sua beleza e seus dotes dramáticos (ou tragicômicos), é um de seus múltiplos presentes para a posteridade. 

Outro deleite é a inexplicável "The Kangaroo Hop", de 1912, que surge do nada e vai para o nada. E ainda assim, é número adorável, divertido e quase comovente do filme, com Wilder, Kahn e Feldman cantando e pulando como crianças. O elemento surrealista da coisa toda me trouxe a grata lembrança de Peter O'Toole cantando "The Varsity Drag", em "The Ruling Class", lançado pouco antes. Era provável reflexo da época, da necessidade de quebrar aqueles medalhões do início do século.

É lugar-comum dizer isso, mas trata-se tão somente de "admirável esforço para um trabalho de estréia". Tem música, comédia, romance e ação. Num nível superficial, mas também super-valorizado pelo elenco.

Recomendo. Eram todos gênios. Wilder, Kahn, Feldman e o querido Dom De Louise.

No video, as cenas completas de "The Kangaroo Hop" e "You don't love as I do". (14/11/2016)

TBT 1991

Com Paulo Autran no Head Office, em 1991

Um bonito prédio comercial acabava de ser inaugurado na Joaquim Floriano, quase esquina com São Gabriel, ao lado do Pão de Açúcar. No térreo, um restaurante luxuosíssimo e uma sala pequena de espetáculos com o nome do prédio: "São Paulo Head Office". Assisto o "Quadrante", monólogo de Paulo Autran. Pela primeira vez via no palco o amado e saudoso mestre.

No fim vou ao camarim, nervoso, me apresento singelamente como mais um de seus admiradores e dou-lhe um abraço emocionado. A seu lado estava (lindíssima, por sinal) Zizi Possi. Troco duas palavras com Paulo sobre o espetáculo e confesso-lhe minha ignorância com a poesia - que permeava o "Quadrante" - e minha dificuldade em compreendê-la e desfrutá-la. O mestre me diz, com toda a sabedoria que guardava por trás dos olhos bicolores: "Toda a boa poesia é acessível". (17/11/2016)

TBT 2003

Chico e Sérgio, 2003

Em 2003 fui assistir Sérgio Britto e Cleyde Yáconis em "Longa Jornada Noite Adentro" no Centro Cultural Banco do Brasil, aqui em São Paulo, e trombei com Chico de Assis. Lembro que o cumprimentei e ele apontou para o livro que eu levava debaixo do braço (a biografia de Leopoldo Fróes escrita por Raymundo Magalhães Jr.): "Esse sujeito (Magalhães) até soneto inventou, dizendo que era do Machado de Assis", referindo-se ao desastroso trabalho em 4 volumes, de Magalhães sobre Machado.

Eu não resisti, pouco depois, e disse a ele: "Chico, você está a cara do Mário Covas!", que morrera apenas dois anos antes. Ele riu e respondeu na hora: "Pois é, mas é de propósito! Estou aqui incorporando ele!"

Na saída dos atores, aproveitei para eternizar esse belo encontro de titãs. (22/12/2016)

TBT 2010

Com Liza e Flávio, 10/10/2010

No Teatro Santo Agostinho, onde fui assistir meu irmão Flávio Guarnieri protagonizando "O Advogado de Deus", de Zibia Gasparetto (ditado por Lucius), dirigida por Valdir Ramos com Liza Vieira, Denis Derkian e outros.

Eu acabava de sair do hospital. Estava tão anêmico que mudei o filtro de cor da foto, na época, para ficar menos pálido. Mas meu hoje saudoso mano merecia essa deferência. Quanto à Liza, continua igual há 40 anos.

Saudade. (01/12/2016)

25 ANOS SEM ERIC CARR

A reportagem feita graças à minha insistência

Em 24 de novembro de 1991 morreu o imenso Freddie Mercury, vocalista do Queen, aniquilado pela AIDS, espalhando tristeza e comoção por todo o mundo. Lamentei muito sua morte; o Queen foi a primeira banda de rock que gostei e que me abriu as portas para todo o universo de hard rock e heavy metal que fui curtir tão intensamente por toda a década de 80.

Mas houve outra morte naquele mesmo dia, que senti de forma ainda mais profunda: a do baterista do KISS, Eric Carr, aos 41 anos, vitimado por um câncer brutal no coração e pulmões.

O KISS foi minha banda favorita por anos e anos, e as notícias que chegavam ao Brasil naquela época pré-internet, sobre Eric, eram poucas e superficiais. Não havia MTV ou qualquer outro canal especializado em música, o KISS estava em uma época relativamente decadente então era ignorado pela mídia, e nós, fãs da banda, nunca chegamos a saber a gravidade de seu estado de saúde. Sabíamos que estava doente, mas sequer poderíamos imaginar que era terminal. Recebemos sem qualquer preparo a notícia de sua morte.

Não encontrando uma única nota sobre o assunto nos jornais do dia seguinte, tomei a iniciativa de ligar para a editoria da Folha Ilustrada, caderno artístico da Folha de S. Paulo. Reclamei com quem atendeu o telefone: "Por que é que vocês não noticiaram a morte do Eric Carr??" Fui transferido, e depois da mesma reclamação ser feita para 4 ou 5 pessoas que não faziam idéia do que eu estava falando, ou a razão de minha reclamação, veio ao telefone, para a minha extrema sorte, o editor. Infelizmente esqueci o nome do sujeito (de sobrenome "Cavalcanti") e não encontrei nos números antigos da Folha que pesquisei no acervo digital.

Eric, na turnê de Crazy Nights
Ele foi gentil, confessou que ninguém ali sabia direito quem era o baterista do KISS e ouviu meu palanfrório de tristeza e indignação com a maior paciência. No fim perguntou: "Você tem fotos dele?" Sim, eu tinha centenas de fotos dele. O editor então prometeu que um artigo seria publicado assim que o motorista da Folha viesse ao meu apartamento e retirasse as fotos. Empolgadíssimo, separei minha coleção inteira de revistas, uma tonelada de material, e entreguei ao motorista, que apareceu mais tarde.

E eis que na quarta-feira, 27 de novembro de 1991, a Folha publicou uma notinha serôdia sobre o falecimento de Eric Carr, utilizando foto que vinha de uma revista alemã que fazia parte da minha coleção. Como fã enlouquecido e sem noção, estranhei que não dedicassem uma página inteira a Eric, mas fiquei muito feliz de ver que meu empenho pessoal impediu que sua partida tão prematura passasse em brancas nuvens pela imprensa brasileira.

Saudades do bom Eric Carr. (24/11/2016)


MIRAI SHÔNEN KONAN (1978)


Miyasaki vintage. Série de TV com 26 episódios de meia hora sobre Conan e Lana, duas crianças às voltas com a ganância, a maldade e as agruras de um mundo pós-apocalíptico. Embora fosse um trabalho de equipe, Miyasaki dirigiu, foi responsável por grande parte dos storyboards e estava no departamento artístico. Identificam-se claramente alguns dos temas que ele desenvolveria nas décadas seguintes, bem como a personalidade de seus personagens.

A ver, como tudo aquilo que saiu da mente e das mãos privilegiadas desse gênio que é Hayao Miyasaki. (02/12/2016)


"OS SETE SAMURAIS" E "THE MAGNIFICENT SEVEN"

O poster, original japonês, de
"Os Sete Samurais"
Com o recente lançamento de "The Magnificent Seven", dirigido por Antoine Fuqua, resolvi conhecer de uma vez seus antecessores. Vai um rápido comentário:

O projeto original é de 1954, quando Akira Kurosawa roteirizou e dirigiu a primeira de suas obras-primas, "Os Sete Samurais". O filme é ambientado no século XVI, período que sucedeu uma série de guerras civis que anarquizaram o Japão e deixaram inúmeros povoados à mercê de bandidos e saqueadores. Conta a história de um pequeno grupo de camponeses cansado de ter suas colheitas roubadas, e que sai à caça de samurais que se comprometam a defender seu vilarejo.

Sem entrar nos detalhes - pois para isso seria necessário um longo artigo - uma das múltiplas qualidades do trabalho de Kurosawa é a criação dos personagens; cada samurai tem uma personalidade distinta, extremamente bem delineada e, em geral, complementar. Toshiro Mifune, no início do que seria sua gloriosa parceria com Kurosawa, brilha em cada cena, como Kikuchiyo. O mesmo ocorrendo com o Kiuzo de Seiji Miyaguchi, o Kambei Shimada de Takashi Shimura e assim por diante. Até mesmo o romance, em filme tão agrestemente masculino, funciona perfeitamente, entre o jovem Katsushiro, de Isao Kimura, e a voluntariosa e moderníssima Shino, de Keiko Tsushima.

Em 1960 o ator Yul Brynner deu a um produtor a idéia de um remake hollywoodiano do filme de Kurosawa. "The Magnificent Seven" tomou a forma de um faroeste passado no fim do século XIX, no qual pistoleiros famosos e algo decadentes são cooptados por camponeses de um vilarejo de mexicanos constantemente achacado por uma quadrilha. O filme, dirigido por John Sturges, mantém a espinha dorsal de "Os Sete Samurais" com poucas alterações. O Chris de Yul Brynner é o Kambei Shimada de Takashi Shimura. Kikuchiyo e Katsushiro são fundidos em um único personagem, Chico; o Britt de James Coburn emula propositalmente o personagem Kiuzo, e assim por diante.

Uma das inovações é dar personalidade ao líder da quadrilha, que no filme japonês passa em brancas nuvens e no filme de Sturges tem grande destaque na figura de Eli Wallach.

Considerado o maior faroeste de todos os tempos, está muito longe disso, em minha modesta opinião. Acredito que tem dois pilares poderosos de sustentação e de entretenimento, sendo o primeiro o extraordinário carisma de seu elenco principal, que traz atores maravilhosos como Brynner, Steve Macqueen, Charles Bronson, Robert Vaughn e os já citados Coburn e Wallach. E em segundo, a lendária trilha sonora de Elmer Bernstein, utilizada durante décadas nos comerciais do cigarro Marlboro. Suas duas horas, entretanto, não chegam aos pés das três horas e vinte sete minutos do épico de Kurosawa. Também não alcançam a profundidade de cada um de seus personagens, ou o "pathos" de seu destinos.

Embora em muitos aspectos seja um filme de ação, "Os Sete Samurais" tem uma atmosfera sombria, constantemente chuvosa, que espelha o ânimo dos camponeses; cada rasgo de sentimento é intenso, violento, como que contrastando com a tristeza da existência miserável de todos. O olhar de admiração que Katsushiro dispara na direção de Kiuzo, quando este rouba um mosquete dos bandidos, é uma obra-prima por si só; o monólogo de Kikuchiyo, amaldiçoando seus ancestrais fazendeiros é uma pérola de emoção e interpretação; a cena em que Shino praticamente pede para ser violentada por Katsushiro é digna de uma antologia sobre o feminismo; o velho do vilarejo é um personagem quase macabro, assustador em sua sabedoria. A contra-parte americana de cada uma dessas cenas é superficial e insípida, em comparação. O filme americano é asséptico, bonitinho. E quanto ao velho do vilarejo mexicano, é um senhorzinho simpático e divertido, que fala de mulheres e afirma ter 83 anos, quando aparenta no máximo uns 60.

É um bom filme. Mas não passa disso. E mesmo assim teve três continuações, sendo que apenas Brynner participou da segunda. As outras duas poderiam ser filmes à parte, mas mantiveram o DNA do primeiro na tentativa frustrada de auferir alguns cobres na bilheteria.

Este ano Antoine Fuqua resolveu ressuscitar a franquia mas recauchutou a coisa toda. A idéia de sete justiceiros impondo ordem permanece e a época em que se passa é a mesma do filme de Sturges. O vilarejo, os camponeses e o vilão, porém, deixaram de ser mexicanos. Trata-se de uma verdadeira cidade do velho oeste que foi dominada por um bandido de colarinho branco, interpretado por Peter Sarsgaard. A personagem feminina é agora uma mulher que teve seu marido assassinado a sangue frio por Sarsgaard e se torna praticamente a oitava magnífica. Os pistoleiros são na nova versão uma espécie de delegação da ONU: há um negro - Chris é agora Chisolm, interpretado por Denzel Washington - um mexicano, um índio, um oriental e três americanos brancos. Nenhum deles guarda qualquer semelhança com os personagens dos filmes anteriores.

É entretenimento leve. Completamente raso, sem sequer sombra do oceano psicológico dos personagens de Kurosawa. Só que hoje o filme do japonês está num passado distante e os jovens nunca nem ouviram falar dele. Podem, por essa razão, apreciar sem quaisquer idéias pré-concebidas, o filme de Fuqua. Denzel continua muito bom; Chris Pratt fez o mesmo papel em todos os filmes de que participou, ou seja, o galã idiota; os excelentes e talentosos Vincent D'Onofrio e Ethan Hawke são tristemente sub-aproveitados e dos outros não há maiores recordações.

Minha recomendação única: assistam os três na seqüência cronológica. (13/12/2016)

BEIJO NO GORDO!

O privilégio de ser entrevistado pelo gordo, em junho de 2013

Foram 26 anos de programa, contando os dez no SBT e os dezesseis na Globo.

Na década de 80 eu assistia o programa de Carson todas as noites, quando estava nos Estados Unidos, bem como a Letterman (que vinha logo depois, na NBC), Arsenio Hall, retardatários como Pat Sajack e Dennis Miller, etc., e conhecia, portanto, o formato do talkshow. Estranhava que nunca se tivesse tentado nada semelhante no Brasil. Jô tentou.

Johnny Carson
Sempre condenei o fato de que a parte efetivamente humorística do programa se limitasse ao monólogo, em geral pouco inspirado. Era para mim o mais supremo contra-senso. Jô queria continuar fazendo o humor que o celebrizara, mas parece ter ignorado o fato de que o talkshow era eminentemente um programa de humor. Não por coincidência, 99% dos apresentadores vinham da comédia, de um jeito ou de outro.

Carson e Letterman tinham monólogos duas vezes maiores do que o de Jô, e ocupavam toda o primeiro bloco do programa com sketches de humor e personagens, no caso de Carson, e com as mais fantásticas palhaçadas, improvisadas ou muito bem elaboradas, no caso de Letterman. Depois vinham as entrevistas, quase que como uma sobremesa para o prato principal que já viera antes. Os programas de ambos - assim como de todos os outros - contavam com uma equipe de dez ou vinte redatores. Os monólogos estavam longe de ser uma sucessão boba e insípida de piadas; eram o extrato das notícias do dia, nos Estados Unidos e no mundo, transmitido com o intuito de fazer rir, além de informar.

David Letterman
Letterman inovou, inclusive, realizando sketches memoráveis com artistas do primeiro time hollywoodiano. Estes adoravam participar porque era humor da melhor qualidade, feito de forma despretensiosa e divertida. Nunca esqueço um programa em que ele utilizou ninguém menos do que Paul Newman e Zsa Zsa Gabor em inserções absolutamente hilárias, do mais puro nonsense. Bill Murray foi um campeão dessas palhaçadas, assim como Steve Martin, Bruce Willis, Alec Baldwin e assim por diante. Mais do que isso, Letterman foi para as imediações do Ed Sullivan Theater e pinçou por ali coadjuvantes de seus quadros de humor, como Rupert Jee (com quem eu trombei em NY, em 1997), os vendedores bengalis Mujibur e Sirajul, etc.

Jô tinha cacife para fazer tudo isso porque é inteligente, culto, preparado, e é amigo de 90% do meio artístico, mas optou por uma produção enxutíssima, de poucas pessoas e um ou dois redatores, onde brilhou durante duas décadas o velho Max Nunes. Era um bela homenagem ao grande redator que Jô admirou por toda sua vida, mas agrilhoou o processo criativo do programa, que não teve como sair daquela linha de humor que já estava, infelizmente, ultrapassada. Vez por outra era repetido um sketch em que Jô entrevistava uma velhinha engraçadíssima nas ruas de Porto Alegre. Foi precisamente o que faltou ao programa. Mais sketches desse tipo. Letterman os apresentava diariamente, com ele ou com seus sidekicks, como Calvert Deforest, o contra-regra Biff Henderson, o cue-card guy Tony Mendez, etc.

Houve tentativas, como transformar Derico em "assessor para assuntos aleatórios", os clipes em que anunciavam o novo e-mail do programa na Globo, a busca por uma namorada para o pianista Osmar, o bullying com o garçom chileno, e etc., mas foram poucas e de vida efêmera. Não sei se Jô conseguiria dividir os holofotes com um sidekick, mas acho que faltou-lhe sempre um Ed Macmahon ou um Paul Schaeffer. A banda teria que ter papel maior. Carson tinha no maestro Doc Severinson um segundo sidekick, além de Macmahon; Letterman utilizava todo seu staff em sketches, desde o narrador Alan Kalter, passando por Schaeffer, até o presidente da CBS, Les Moonves.

O resultado é que o gás criativo terminou em determinado momento e o público passou a ser bombardeado todas as noites, durante o monólogo, por piadas que surgiam na internet, ou as chamadas pérolas do Enem. Uma ou outra vez isso tem sua graça, mas os talkshows nos quais Jô se inspirou jamais teriam permitido a exploração diária de material não-original dessa forma.

Jô em 1988, primeiro ano do "Jô Soares Onze e Meia" (Rubens Mano - Folhapress)

Jô em 1988, primeiro ano do "Jô Soares Onze e Meia" (Nani Gois - VEJA)

Também não aprovei seu excessivo envolvimento pessoal em determinados assuntos. Carson e Letterman passaram 30 anos entrevistando figuras políticas das mais variadas orientações ideológicas ou programáticas. O objetivo foi sempre um só: o entretenimento. Especialmente Letterman, cujo humor era mais escrachado e descompromissado. Jô deixou, em ocasiões emblemáticas, que seus próprios pontos de vista não apenas dominassem o tom de algumas entrevistas, mas descambassem para a mágoa pessoal, o que por vezes provocou a irritação do público e impediu que figuras interessantes retornassem a seu programa. Nessa área são marcantes os casos de Wilson Simonal, Hélio Fernandes e Luiz de Orleans e Bragança, entre outros.

No lado político, foi relativamente perdoável que Jô apoiasse de corpo e alma, por exemplo, o impeachment de Fernando Collor, ridicularizasse as idiossincrasias de Itamar e não fizesse vista grossa aos inúmeros erros e incoerências de Lula na presidência, o que teve como conseqüência a recusa dos três de voltarem ao programa.

Dilma e Jô
Já a entrevista chapa-branca com Dilma, no momento mais crítico do naufrágio de seu lamentável governo, é deslize inexplicável que acertou seu prestígio em cheio quando o programa entrava na reta final. Ao invés de submetê-la ao justo pelourinho de uma entrevista com um público que não fosse sua claque habitual, deixando-a vulnerável e açulando sua sinceridade com perguntas incisivas, esclarecedoras, mas sem esquecer do humor e permitindo inclusive que ela mostrasse sua humanidade (o que provavelmente suscitaria muito mais simpatia do que ódio), ele foi entrevistá-la no conforto e na segurança do Planalto, onde o que se viu foi um encontro blandicioso e estéril que nada esclareceu, a exemplo do que ocorreu recentemente no Roda Viva com Michel Temer.

Por outro lado, diga-se, "As Meninas do Jô" foi uma das melhores coisas introduzidas por seu programa, na TV. Uma mistura exata de informação e entretenimento.

Lilian Witefibe, Lúcia Hipólito, Ana Maria Tahan
e Cristina Lobo: As Meninas do Jô
(Zé Paulo Cardeal - TV Globo)
Feitas essas colocações, eu ficaria dias enumerando entrevistas memoráveis. Assisti o "Jô Soares Onze e Meia" desde a primeira noite, então tenho minha memória repleta de lembranças. O Ultraje a Rigor cantando a música "Filho da Puta", que as rádios haviam censurado dias antes; Ney Latorraca e Marco Nanini matando as pessoas de rir, falando sobre o eterno Irma Vap; o velho brigadeiro Burnier obrigando um Jô de saco cheíssimo a ler intermináveis documentos (se não me falha a memória) sobre Aragarças; o saudoso Patrick Swayze, bem-humorado e divertido; Maluf, candidato em 89, trocando de sapato com Jô, por conta do anúncio que fez na época, para a Vulcabrás; Caetano indignado, olhando diretamente para a câmera e chamando o jornalista do New York Times de "canalha", tendo a seu lado um Gil calmo e sorridente; Dercy Gonçalves desafiando a quem tentasse calar sua verve pouco ortodoxa: "Venha! Venha que eu dou-lhe uma bucetada!"...

Dercy e Jô
Jorge Dória me fez gargalhar sonoramente (como sempre) com a história que contou a Jô: "Lembra do fulano? Sabe que ele morreu, né? Ele era amigo de beltrano, que já morreu, e fez tal coisa com sicrano, que já morreu, e ambos trabalhavam para não sei quem, que já morreu", e seguiu em frente, em meio às risadas do público, até que Jô intercalou: "Por enquanto só estamos os dois vivos, pelo jeito"; o querido Oswaldo Loureiro, depois de muita insistência, deu uma palinha de sua magnífica voz de barítono; Quércia cantou e tocou no violão uma música caipira; Geraldo Magela explodiu como comediante depois de sua entrevista a Jô; Chico Buarque deu uma de suas poucas entrevistas a Jô, para lançar seu livro "Estorvo"; Tom Jobim encantou a todos meramente por estar ali, vivo e espalhando a imensidão de sua presença; Roberto Carlos esteve lá pela primeira vez ainda no SBT, depois de longa negociação com a Globo, ressentidíssima com a partida do gordo e dificultando em tudo que era possível a presença de globais no programa da concorrente...

Juca e Jô
Juca Chaves dava uma aula de inteligência cada vez que comparecia. Em uma das ocasiões cantou uma de suas músicas, e nunca esqueci do fim: "Se bicudo vem de bica e se grota vem de gruta, conforme a palavra indica, deputado vem de puta"...

Celso Pitta, estomagado com as piadas de Jô sobre sua administração, resolveu vingar-se retendo o "habite-se" dos estúdios da Berrini até o o último segundo possível, horas antes da reestréia de Jô na Globo; Francisco Milani brilhou no programa de estréia, no papel de um contra-regra atrapalhado que fazia os últimos reparos nos cenários do programa quando ele já tinha começado. O sketch terminou com um holofote se espatifando no centro do palco.

Curiosamente, embora o programa tenha durado dezesseis anos na Globo, portanto seis a mais do que no SBT, o grosso de minhas recordações vem da primeira fase. Talvez seja cedo demais para recordar o período Globo. 


Estive em gravações de seu programa inúmeras vezes no SBT, logo no início, e fui entrevistado por ele em 2013, na Globo. Uma experiência inesquecível. Abaixo, fotos que tirei de gravações que assisti no Sumaré:

O grupo Ira dando entrevista a Jô em 1991
Jô entrevista o ministro FHC em 1993, sob o olhar atento
do contra-regra e "pai de santo" Tião
Jô entrevistando a atriz Florinda Bulcão no mesmo dia
Também em 1993. Vê-se o guitarrista Rubinho (morto em 1999), o contra regra Tião (sobre quem não há qualquer referência por esse nome, na Internet) e o câmera José Roberto Lucas de Araújo, conhecidíssimo como Eddie Murphy, que trabalhou com Jô por vários anos. Depois foi para a Globo e por volta de 1999 ou 2000 abateu-se sobre ele grande desgraça: o diabetes o fez perder a visão e ele passou por dificuldades financeiras. Infelizmente a Internet não registra seu destino.

Teria muito mais a falar sobre o assunto, mas paro por aqui. Acredito que no cômputo geral ele acertou mais do que errou. Acredito também que o "late night" brasileiro perde um de seus melhores quadros. (16/12/2016)
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Veja mais:



terça-feira, 8 de novembro de 2016

Trump X Hillary


HILLARY X TRUMP


Não pretendia falar sobre a eleição norte-americana por aqui mas a quantidade de idiotices, e sua intensidade, ditas a esse respeito por páginas conservadoras ou reacionárias (e até por páginas coxinhas que eu imaginava terem algum estofo) são tão abismais que provocam uma reação mesmo no mais calmo dos leitores. Ver Hillary Clinton ser chamada de comunista e jogada no mesmo balaio de Dilma Rousseff é de uma imbecilidade somente comparável a "não vai ter golpe". Pior: é comparável ao mais cretino e soez dos expedientes petistas, ou seja, dizer que qualquer pessoa que não reza pela cartilha do PT é "de direita".

Como não falam inglês, nunca leram merda nenhuma na vida, não têm a menor idéia do que é a política brasileira e muito menos a de qualquer outro lugar do mundo, esses cretinos acham que o fla x flu americano é igual ao brasileiro: Trump é a direita do livre-mercado e Hillary é a comunista embolorada. Simples assim.

Seria necessário um texto gigante - e para escrevê-lo eu não tenho nem tempo e nem saco - para explicar a esse brasileiro burro e vitriólico ao menos os rudimentos da política norte-americana, o que é ser "republicano" ou "democrata", o que significa ser "socialista" nos Estados Unidos, e quem são Hillary e Trump.

Seria preciso explicar que o tão decantado e temido "socialismo" de Hillary se resume a medidas sociais que no Brasil já existem há décadas, como aumentar o salário mínimo ou dar Saúde e Universidade gratuitas para todos. Seria preciso explicar que ser "de esquerda" nos EUA não significa a mesma coisa que no Brasil; o "democrata" norte-americano, mutatis mutandi, é o tucano de boa cepa, e o "republicano" é um capitalista fanático religioso. Acabou. Não há comunistas nessa eleição. A única agenda progressista de Hillary não está no campo econômico, mas no social. Ela é favorável ao aborto, ao casamento gay e a uma série de reivindicações que o mundo todo vem adotando mas no Brasil ainda são tabu por culpa de nossa nefasta e arcaica formação pseudo-religiosa.

Em seguida seria preciso explicar que Hillary foi primeira-dama de 93 a 2001; foi senadora durante oito anos e chanceler do governo Obama durante quatro anos. É formada e pós-graduada em Direito. Tem defeitos como qualquer político, mas é uma mulher inteligente e preparada. Já Trump é um perfeito boçal que começou sua carreira de empresário com o dinheiro do pai, ganhou fortunas, perdeu fortunas, declarou falência, recuperou dinheiro, descobriu todas as gambiarras para poder se servir do Estado cada vez que se viu em apuros financeiros, e brilha em reality shows por ser uma figura excêntrica, barulhenta, imoral e fundamentalmente ridícula.

A campanha apenas amplificou o que quem o conhece de outros carnavais sempre soube: ele é racista, homofóbico, preconceituoso, xenófobo e misógino. Não tem um pingo de conhecimento sobre política interna ou externa. É um falastrão ignorante e grosseiro. Pesam contra ele inúmeras acusações de fraude financeira e de assédio sexual. Seu eleitorado é formado por uma espécie de entulho autoritário do século XX: o branco opressor que não se conforma com o fato de que seu país deu uma aula de civismo, elegendo um negro para dois mandatos, tendo como chanceler em um deles, uma mulher. Trump é o que de pior poderia haver na política.

Esse é, em poucas palavras, o painel da eleição norte-americana. US elections for dummies.

Não é direita contra esquerda. É José Serra contra Bolsonaro. Nenhum dos dois é perfeito, mas um deles é infinitamente mais imperfeito que o outro.

Para quem tem cérebro, é costuma usá-lo, a decisão é facílima.

Bernardo

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Eleições Paulistanas 2016

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MEU VOTO SERÁ PARA JOÃO DÓRIA


Domingo haverá eleições para prefeito. Vamos a uma pequena análise dos candidatos, que faço de cabeça, baseado apenas em minha experiência com todos, e a razão pela qual votarei em João Dória.

CELSO RUSSOMANO - É um reles oportunista. Começou com Maluf, aboletou um irmão na chapa de Orestes Quércia para o governo em 2006, e em 2010 apoiou Dilma para a presidência. Não tem qualquer estofo ideológico ou social e é inteiramente despreparado para um cargo como a prefeitura. Vai para onde lhe convém e não tem compromisso com pessoas ou programas. Suas campanhas são sempre iguais: ele começa muito bem e acaba se enrodilhando num emaranhado dos seus próprios erros e limitações. Não merece ser eleito de forma alguma. E o video no qual maltrata a funcionária de uma loja, querendo bancar um paladino de fancaria, é nódoa que o acompanhará eternamente.

MARTA - Desagradável e de maus-bofes, Marta tenta pela undécima vez voltar à prefeitura. Repito o que escrevi sobre ela por ocasião da votação do Impeachment: "Marta Suplicy passou 20 anos no PT, se banqueteou na orgia petralha, fez vista grossa para o mensalão e o petrolão, apoiou Lula, Dilma, Netinho, Haddad e Padilha, e só pulou fora do barco quando a água já estava pelo pescoço. Como se não bastasse foi para o partido de Eduardo Cunha e Renan Calheiros". Em termos administrativos, não cometeu apenas erros. Teve acertos. Mas seus erros foram tantos e tão palmares que é difícil lembrar dos acertos.

HADDAD - É daquelas figuras completamente medíocres que jamais teriam sequer existido se o Brasil não tivesse passado pelo temporal petralha. Depois de ser um péssimo ministro da Educação, ganhou a prefeitura de presente valendo-se do prestígio de Lula e da burrice do paulistano, que derrotou o experiente e abalizado José Serra para elegê-lo. Despreparado e desnorteado, Haddad não cumpriu nem metade do que prometeu em sua campanha, não tem uma única obra de vulto, fez um governo elitista, não conhece o conceito de "prioridades" e será lembrado para sempre como aquele que desfigurou a cidade mandando pintar centenas das mais ridículas, caras e inúteis ciclofaixas de todos os tempos.

ERUNDINA - Dói na alma ver Erundina finalizar sua carreira política de forma tão lamentável. Legítimo "azarão" em 1988, acabou sendo uma prefeita incompetente, ressentida e revanchista. Sua péssima administração destruiu o cacife de Lula em São Paulo e foi um dos principais fatores para a vitória de Fernando Collor em 89 e o retorno de Maluf em 92. Assim como Marta, tentou voltar inúmeras vezes e foi derrotada em todas. Pensava-se que vinha melhorando com o tempo, saiu do PT, foi para o PSB, não aceitou ser vice de Haddad quando este beijou a mão de Maluf em 2012, mas ao invés de seguir pelo bom caminho, andou para trás, como um curupira, e entrou no PSOL, a mais abjeta das linhas auxiliares do PT. Voltou 30 anos no tempo e tornou-se novamente massa de manobra de um partido corrupto. Chega.

DÓRIA - Conheço Dória como a maioria do povo: é empresário bem sucedido e apresenta há séculos um programa ruinzinho, runzinho, que vai do colunismo eletrônico ao informativo. Não é, evidentemente, em quem eu votaria se tivesse outra opção. Mas não tenho. Dória não tem experiência mas vem de família de políticos, está há décadas envolvido nesse meio e fará uma dobradinha produtiva e construtiva com o governador, uma vez eleito. Se representa o novo ou o velho, não me importa. O que sei é que não se trata de uma marionete como Haddad, conhece administração, conhece economia e finanças e saberá gerir o município. É do que precisamos. Não de um oportunista perigoso como Russomano, de duas ex-petistas ressentidas como Erundina e Marta ou de um poste como Haddad.

No domingo votarei em João Dória, e convido vocês a fazerem o mesmo.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Bibi Ferreira — JUBILEU DE DIAMANTE (3/4)

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AS ESTRÉIAS DE BIBI — 3/4

Revista da Semana, 11/9/37
As suas interpretações são invulgares e o seu talento é brilhantíssimo. A Ipanema vai ter a primazia da apresentação de Bibi Procópio Ferreira em recitais radiofônicos. (A Batalha, 30/6/37)

As últimas apresentações de Bibi Procópio Ferreira ao nosso público constituem um esboço vigoroso e evidente de uma gloriosa carreira artística. (A Batalha, 2/7/37)

Bibi Procópio Ferreira podia passar a ser, após a sua estréia, "a filha de Procópio", como é tão comum. Mas não foi o que se deu. Ela afirmou uma personalidade própria, mostrou ter recursos para vencer por si mesma e conquistar, tornar legitimamente seu, o nome que trouxe do berço. (Vida Doméstica, Set/37)

O livro Bibi Ferreira, Uma Vida no Palco, de 2003, diz, em determinado trecho (baseando-se em um artigo escrito por Brício de Abreu para a revista O Cruzeiro, na edição de 17 de novembro de 1956), sem mencionar qualquer data, mas referindo-se a período que corresponde à adolescência de Bibi: “A esta altura, já tocava violino e também dava aulas de violão, além de ser a rainha das festas familiares, onde dançava e cantava. César Ladeira a ouviu e levou-a para a Rádio Mayrink Veiga”.

Not quite. Vamos aos fatos:

Bibi teve sua estréia no cinema com Cidade-Mulher no dia 27 de julho de 1936. No dia seguinte o jornal Gazeta de Notícias informou que o famoso cantor de tangos Antônio Gomes, conhecido como "Milonguita", fora nomeado diretor artístico da PRH 8, Rádio Ipanema. Enquanto a Inglaterra já tinha televisão desde 1932, a rádio-difusão ainda engatinhava no Brasil, com seus pouco mais de treze anos, e Milonguita era considerado um veterano do meio. Trabalhara durante anos na Cruzeiro do Sul e na Rádio Club do Brasil, e se propunha a reorganizar o time de artistas da Ipanema. A promessa era alvissareira, considerando que entre os valores descobertos pelo cantor estavam figuras como Sílvio Caldas e a então jovem e novata Dalva de Oliveira.

Ary Barroso, por Augusto Rodrigues
(Carioca, 29/1/38)
Na imprensa da época não descobrimos nem quando e nem como, mas em dezembro de 1936 encontraremos Bibi participando do “Hora H”, programa musical e humorístico que Ary Barroso trouxe de São Paulo para a Cruzeiro do Sul. Propaganda tardia de Cidade-Mulher ou de outro projeto? Sambas, foxes, tangos? Pode ser qualquer um dessas alternativas. Ary já era então um dos mais respeitados compositores e revisteiros do país e no punhado de edições de que participou, Bibi se juntou a talentos precoces e promissores como o dela mesma, e a artistas no auge de suas carreiras. Estavam lá a cantora paranaense Cidinha Penteado, de apenas treze anos, apelidada de “a rainha do folclore brasileiro” ou “a garota que canta como gente grande”; as cantoras Neyde Barros e a irmã de Francisco Alves, Nair; o cantor e locutor Arnaldo Amaral, os estreantes Anjos do Inferno e o Regional da PRD 2, entre outros. (Gazeta de Notícias, 24-29/12/36) Teria Milonguita sintonizado sua antiga casa, a PRD 2, Cruzeiro do Sul, no fim daquele ano, e escutado a menina Bibi Ferreira cantando?

Quase estréia: com Ary Barroso na "Hora H"
(Gazeta de Notícias, 29/12/36)
O que se sabe, em caso concreto, é que em fevereiro do ano seguinte a PRH 8 anunciava para breve um recital de Bibi Procópio Ferreira, "indubitavelmente uma das mais notáveis e originais intérpretes de foxes americanos que possuímos" (A Batalha, 16/2/37), deixando claro que o fox Come on, Baby, de Roulien, cantado em Cidade-Mulher, não era o único pelo qual Bibi era conhecida. A impressão que fica é que o tangueiro teve, sim, acesso às suas performances, impressionou-se, assim como todos, com o talento e a versatilidade da menina de catorze anos e não perdeu tempo em convidá-la para uma apresentação exclusiva.

Cidinha Penteado
Seja lá por qual razão, o parto acabou sendo encruado. Bibi já havia completado quinze anos quando foi marcado, finalmente, o dia de seu recital na Rádio Ipanema: 30 de junho de 1937. A Batalha anunciou o recital com pompa:

É finalmente hoje que, às 20h30, a Rádio Ipanema vai apresentar Bibi Procópio Ferreira num lindo recital de canções típicas norte-americanas. Bibi Procópio Ferreira, herdeira legítima da notável personalidade de seu papai, é uma artista impressionante (não fosse ela filha de Procópio). As suas interpretações são invulgares e o seu talento é brilhantíssimo. A Ipanema vai ter a primazia da apresentação de Bibi Procópio Ferreira em recitais radiofônicos. Ouçam, pois, hoje às 20h30. (30/6/37)

Infelizmente não foi possível encontrar o set list da estréia radiofônica de Bibi, mas A Batalha do dia 2 de julho rasga elogios: "O estupendo recital de ontem [referindo-se a 30 de junho], na Ipanema, serviu para demonstrar mais uma vez o valor indiscutível dos seus predicados e a originalidade absoluta de suas interpretações ao microfone". O crítico daquele jornal foi mais um a vaticinar um futuro de sucesso à pequena Bibi: "As últimas apresentações de Bibi Procópio Ferreira ao nosso público constituem um esboço vigoroso e evidente de uma gloriosa carreira artística". (2/7/37)

Bibi e sua mãe, Aída
A revista mensal Vida Doméstica não só comentou como deu à posteridade o presente de fotografar a estréia de Bibi:

A sensação do mês radiofônico, aliás movimentado com a passagem de vários astros de renome internacional, foi, sem dúvida, a estréia de Bibi Procópio Ferreira, essa interessantíssima cantora que a Ipanema lançou vitoriosamente com um belíssimo repertório de músicas americanas. Era grande a responsabilidade dessa menina quando se apresentou ao público. Pelo nome que trazia. Os nomes que não são feitos pelos que os portam, constituem às vezes uma carga penosa, para quem os herdou. Podem auxiliar na carreira. O mais freqüente, porém, é serem um empecilho. Bibi Procópio Ferreira podia passar a ser, após a sua estréia, "a filha de Procópio", como é tão comum. Mas não foi o que se deu. Ela afirmou uma personalidade própria, mostrou ter recursos para vencer por si mesma e conquistar, tornar legitimamente seu, o nome que trouxe do berço. A sua estréia foi a mais auspiciosa, estando de parabéns os dirigentes da Rádio Ipanema por terem trazido ao "broadcasting" um elemento tão promissor. (Set/37)


Bibi em sua estréia, no trabalho impecável de restauração e colorização de Reinaldo Elias

A Batalha, 2/7/37
A Gazeta de Notícias também marcou presença: “Ontem, a PRH 8 apresentou um magnífico recital de Bibi Procópio Ferreira, a garota que canta foxs com um it todo especial. O nosso confrade Júlio de Oliveira fez os acompanhamentos”. (01/7/37)

Diante de tantos encômios e o que foi, de fato, uma recepção calorosa e entusiástica de parte do público ouvinte, Milonguita tratou de contratar Bibi não apenas para o quadro de artistas da emissora, mas para apresentar seu próprio programa na Ipanema. O mês de julho foi inteiro passado entre discussões e preparativos, e no início de agosto o jornal A Batalha mais uma vez deu o furo: Bibi estava contratada para um programa semanal e estrearia no dia 10 daquele mês. O release foi bombástico:

Pouco depois do vitorioso recital de Bibi Procópio Ferreira na Rádio Ipanema, A BATALHA foi o primeiro jornal que noticiou o início das démarches da PRH 8 no sentido de obter o concurso exclusivo da surpreendente artista que, não obstante sua pouca idade, pode ser classificada como uma das mais notáveis intérpretes da música internacional no nosso broadcasting. Removido agora um pequeno número de dificuldades de ordem secundária, Bibi Procópio Ferreira aceitou o vantajoso contrato que lhe ofereceu Milonguita, devendo estrear como exclusiva da elegante emissora do Posto 6, na próxima terça-feira, 10 de agosto, com um sensacional programa de músicas americanas. (3/8/37)

A Batalha, 3/8/37

Bibi, com quinze anos recém-completos,
concorrendo com Chico Alves e Sílvio
Caldas na Mayrink, e Dircinha
Baptista e Dalva de Oliveira
na Nacional (A Batalha, 30/9/37)
O cast da Ipanema, a emissora de Xavier Filho que procurava enfrentar sua concorrência de igual para igual, era de notáveis, mas são artistas que ficaram nos anos 30; não romperam a barreira do tempo. Estavam lá Elisinha Pierrotti, "cantora de músicas finas", o tenor Hugo Guidi, Alayde Briani, "artista lírica completa", o cantor Potyguar Paranhos, o tangueiro argentino Tito Sosa (que trabalhara com Milonguita na Cruzeiro), Sylvinha Torres, “um ornamento gracioso da PRH 8”, Jayme Britto, o “cantor carnavalesco 100%”, o arranjador Barros Figueiredo, a cantora lírica Gilda Farnése, entre outros, e Bibi, “a formidável artista das canções internacionais”. Deve ter sido difícil encarar a temida PRA 9, Rádio Mayrink Veiga, que trazia nomes como Francisco Alves, Sílvio Caldas, Alvarenga e Ranchinho, Luperce Miranda e Pixinguinha; a PRD 2, Rádio Cruzeiro do Sul que além de Ary Barroso contava com a maranhense Dilu Melo e os Anjos do Inferno; a PRG 3, Rádio Tupy, que contava com Carlos Galhardo e Alzirinha Camargo; e até mesmo a hoje antológica PRE 8, Rádio Nacional, que surgira apenas um ano antes e já elencava artistas do naipe de Orlando Silva, Dircinha Baptista, Nuno Roland e Mesquitinha. Bibi, como sempre, estreava roçando ombros com gigantes.

Alguns colegas de Bibi na Ipanema. Em sentido horário, Jayme Britto (Fon Fon, 6/1/40),
Elisinha Pierotti (Fon Fon, 24/6/39), 
Gilda Farnése (Fon Fon, 17/4/37)
Alayde Briani (Fon Fon, 20/9/41) 

Jeanette MacDonald e Nelson Eddy
em "Maytime"
O programa de Bibi estreou na Rádio Ipanema em 10 de agosto de 1937, às 20h30. Graças à propaganda em A Batalha, no dia seguinte, sabemos que Bibi cantou três músicas norte-americanas: a bem humorada I’d love to take orders from you (Al Dubin/Harry Warren), do musical da Warner, Shipmates Forever (“Viva a Marinha”, no Brasil), lançado em 1935, com Dick Powell — que interpretou a canção — e Ruby Keeler, direção de Frank Borzage. A segunda foi a magnífica Will You Remember (Sweetheart)? (Sigmund Romberg/Rida Young), sucesso do novo musical da Metro, Maytime, que estreara em março nos Estados Unidos, dirigido por Robert Z. Leonard, e no Brasil recebera o nome de "Primavera". No filme a canção é um inspiradíssimo dueto dos protagonistas Jeanette MacDonald e Nelson Eddy, dois dos maiores cartazes de seu tempo, mas podia ser interpretado individualmente. Ressalte-se que Maytime foi a maior bilheteria do ano de 1937 e Will You Remember tornou-se um dos pièce de résistance da carreira de Jeanette e Nelson.

A Batalha, 10/8/37

A última foi Rainbow on the River (Louis Alter/Paul Webster), canção-título do filme com o mesmo nome, dirigido por Kurt Neumann e produzido pela RKO em 1936, como veículo para o menino prodígio Bobby Breen. No Brasil virou “Cantando Saudades”. Breen é quem cantou a música e como tinha apenas 9 anos, a interpretação deve ter sido um passeio para Bibi.

Milonguita, o cantor, compositor e radialista que
lançou Sílvio Caldas, Dalva de Oliveira e deu
à Bibi sua estréia na rádio (Fon Fon, 26/3/38)
Foi certamente uma consagração para a filha de Procópio. Em muitos aspectos é sua estréia mais importante até aquele momento; ela era headliner pela primeira vez, e não apenas a iniciante entre os famosos. E como se isso não fosse suficiente, ela ainda o fazia interpretando as canções dos famosíssimos e cultuados musicais dos anos 30, que embalaram a juventude, os relacionamentos e a vida daquela e de todas as gerações que vieram depois.

A Batalha, como sempre, incensou: "Bibi Procópio Ferreira estreou ontem na Rádio Ipanema. Estréia, sem dúvida, auspiciosíssima. Bibi Procópio Ferreira comprovou, com desassombro, a soberba personalidade de que é dotada. (...) Não podia ter sido melhor a impressão que Bibi Procópio Ferreira deixou no espírito de todos. É, realmente, uma artista notável". (11/8/37) No mesmo texto acabamos descobrindo o porquê do eterno interesse da Batalha nas atividades de Milonguita, da Rádio Ipanema e de Bibi; o músico que a acompanhou ao piano era Júlio de Oliveira, o mesmo que tocou enquanto ela dançava na “Noite Farroupilha” de setembro de 1935, e que além de professor de piano e pianista ocasional dos artistas da Ipanema, era o crítico musical de A Batalha.


A Revista da Semana também festejou, dias depois:  “A estréia auspiciosa de Bibi Procópio Ferreira na PRH 8 veio abrir novos horizontes à estação de Copacabana. Realmente, Bibi constitui uma atração que Milonguita conseguiu apresentar ao nosso público rádio-ouvinte”. (21/8/37)

Divertida mesmo foi a nota dada pelo A Nação, no próprio dia 10, classificando Bibi, sabe Deus por quê, de cantora de “blues”: “Bibi Procópio Ferreira, que é admirável nos blues, ingressou no cast da Ipanema, que como dissemos, promete muitas novidades nesta temporada”. (10/8/37) Dias depois veio novo comentário: “Bibi Procópio Ferreira é uma cantora de blues das mais interessantes da rádio, atualmente”. (18/8/37) 

Gastão Lamounier
(Fon Fon, 26/10/35)
Fosse Bibi uma “blueseira”, cantora de foxes ou intérprete de canções populares norte-americanas, o programa seguiu com sucesso nas semanas seguintes, alternando-se entre terça, quinta e ocasionalmente no sábado. No fim de setembro, o compositor e também veterano do rádio, Gastão Lamounier — apresentador do “Programa Lamounier” na PRB 7, Rádio Educadora — anunciou o grupo de artistas que o acompanharia em uma caravana artística a Minas Gerais, a exemplo do que já fizera no ano anterior. Bibi foi escalada para fazer parte da “garbosa embaixada composta dos nomes mais representativos do broadcasting carioca, que seguirão em dez automóveis”. Bibi estaria junto à cantora de músicas regionais Uyara de Goyaz, Elisinha Pierotti, o cantor francês radicado no Brasil, Albenzio Perrone, o locutor Saint-Clair Lopes "e muitos outros que farão parte da comitiva que atuará durante uma semana na PRI 3, PRC 7 e na Rádio Guarany". (A Batalha, 30/9/37)

A Batalha, 30/9/37
O Brasil, porém, passava por um período politicamente ainda mais convulsivo do que em 30, quando Bibi cantou e dançou na festa artística de Nascimento Fernandes. Desta vez Vargas viu tremelicar seu troninho de usurpador, no Catete, pela perspectiva de eleições diretas em 1938. A solução foi inventar aquilo que Goffredo Telles Jr. chamou de “a velhacaria do Plano Cohen”, instilando o terror comunista na população mais incauta e abrindo caminho para a decretação do Estado Novo, no dia 10 de novembro. Coincidentemente (ou não), o programa de Bibi some dos jornais em meados de outubro, quando parece ter sido substituído por outro estrelado pela jovem cantora Cynara Rios. Não faço idéia da razão para a Ipanema interromper o programa de Bibi. E também não sei se ela chegou a participar ou não da caravana artística de Gastão Lamounier. Mas com sua estréia radiofônica, Bibi deixou definitivamente de ser um simples side show por ser filha de Procópio, para tornar-se uma atração in her own right, por méritos próprios.

Alma Cunha de Miranda
(Blog De Óperas e Concertos)
Depois da tormenta institucional de 10 de novembro, que desembocou no putsch integralista de 10 de maio do ano seguinte, Bibi só foi reaparecer nos jornais em agosto de 1938, quando juntou-se a um grupo de artistas para celebrar o nono aniversário de fundação da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Niterói. A celebração teve uma reunião formal na qual médicos discursaram e assistiram a uma conferência sobre saúde pública.

Nada disso deixaria qualquer recordação, a bem da verdade, não fosse pela presença do sócio honorário e convidado de honra da sociedade, que não era ninguém menos do que o venerando médico e cientista Vital Brasil. Terminada essa parte passou-se para o programa artístico, que teve números individuais com a soprano Alma Cunha de Miranda, "o novo uirapuru brasileiro"; a pianista Maria das Mercês Calazans; a cantora lírica Venilia Martins da Veiga; a declamadora Marietta Lopes de Souza; o cantor Roberto Miranda, e Bibi, como sempre encarregada das "canções típicas", todos acompanhados pelo maestro José Botelho. (O Jornal, 14/8/38)

Naruna Korder (Beira-Mar, 29/10/38)
No fim de outubro Bibi volta à dança, que andava meio parada por suas múltiplas atividades voltadas ao canto: a renomada professora de balé Naruna Korder anunciou na imprensa a “temporada de bailados” anual, sob o patrocínio da Associação Brasileira de Imprensa, com suas alunas no Teatro Municipal e Bibi estava entre elas. “Mme. Naruna”, como era chamada, conhecera a “filhinha de Procópio” na Feira de Amostras, em 1928, e agora era sua professora. A primeira de três apresentações foi marcada para o dia 28 de outubro e o programa começava com árias da ópera Hänsel und Gretel — conhecida no Brasil como “História de João e Maria” — do alemão Engelbert Humperdinck, baseada no conto dos Irmãos Grimm. Os papéis principais foram divididos entre Elsa Maria da Silveira (João), Mary Frisbee (Maria), Yvonne Gama e Silva (pai), Enid Calaza (mãe) e Bibi interpretando a malévola feiticeira que atrai crianças com doces e as transforma em biscoitos de gengibre. Não há indicação precisa das cenas que tiveram participação de Bibi, na imprensa, mas supõe-se que ela certamente protagonizou números como “Na Casa da Feiticeira” e “Dança da Feiticeira”.

Diário de Notícias, 19/10/38
A parte cantada "foi desempenhada com eficiência pelos festejados artistas patrícios: contralto Marietta Lopes de Souza”, que acabava de participar da festa dos médicos, junto a Bibi, “soprano Chiquinha Jacobina, barítono João Faini, mezzo-soprano Dyla Cruz, soprano Noêmia de Sá Periraz" e — suprema ironia — "pelo excelente Coro Russo-Brasileiro, sob direção de Luiza César, e pela orquestra, sob a regência ativa e seguríssima do maestro Santiago Guerra".

Na seqüência veio uma coreografia feita sobre a Rhapsody in Blue, de George Gershwin (cuja morte prematura, no ano anterior, ainda entristecia o mundo), “outro quadro encantador, verdadeira Sinfonia Azul”, com Nilcéa Roma, Enid Calaza, Yvonne Gama e Silva, Yedda Mello, Thais Sá Pires, Elsa Maria da Silveira, Vera Sant’Anna, Maria Victoria Lessa, Therezinha Muniz Freire, Mary Frisbee, Daisy Davies, Annita Wright, Yolanda Silva Santos de Souza, e Bibi, todas acompanhadas da orquestra e do maestro Martinez Grau ao piano.

Diário de Notícias, 25/12/38
Para terminar, os divertissements, “variados e luxuosos, no qual mais caprichosamente puderam as jovens artistas coreográficas exibir o seu talento e aptidões estéticas”. Bibi participou no número “Baile Militar” com um solo de sapateado. Houve um segundo espetáculo no dia 30 de outubro e a matinê para a apresentação das alunas até nove anos no dia 6 de novembro. (Correio da Manhã, 30/10/28)

Ainda sobrou tempo, naquele ano, para que Bibi participasse do “Salão de Natal”, uma interessantíssima mistura de sarau com vernissage promovida pela Associação dos Artistas Brasileiros desde 1933, que durava alguns dias no mês de dezembro e acontecia no Palace Hotel. Os organizadores eram em sua maioria artistas plásticos e se dividiam no agendamento dos artistas em cada uma das tardes do evento, que envolvia música, literatura, teatro e pintura. A tarde na qual Bibi compareceu foi organizada pelo pintor russo radicado no Brasil, Dimitri Ismailovitch, e por sua aluna, a pintora açoriana também radicada por aqui, Maria Margarida Soutello. Segundo o Diário de Notícias, no dia cujo agendamento de artistas esteve a cargo dos dois pintores, “o número de grande sensação foi a apresentação de Bibi Procópio Ferreira, que cantou com raro talento”. (25/12/38) Infelizmente não sabemos o quê. Mas provavelmente, as tais “canções típicas”, ou canções norte-americanas com as quais ela tanto se notabilizou na Ipanema.

Bibi e Procópio, 1939

O Malho, 15/6/39
A apresentação seguinte de Bibi também foi amena. “Mme. Emile Xima” — cujo nome creio que era Juliette, mas levava sempre o nome do marido, um adido do governo francês no Brasil — era professora de um conservatório artístico de elite onde, além de lecionar francês, formava pianistas, dançarinas, declamadoras, cantoras e atrizes. Há quase dez anos ela fazia, mais de uma vez por ano, apresentações de suas alunas, geralmente em um estúdio ou em um teatro. Em junho de 1939 o local escolhido para a vigésima “audição” de suas alunas foi o Teatro Casino, velho conhecido de Bibi. No dia 3 de junho, às 14h45, o espetáculo começou, diante de um público seleto e numeroso, que ia dos pais até toda a nata da sociedade franco-brasileira, incluindo o cônsul e sua família, membros da Missão Militar Francesa e Americana, o encarregado de negócios da França, a esposa do conselheiro comercial e etc. A Vida Doméstica estava lá:

Mme. Xima, seríissima (à esq.), e Jenny Pimentel
 Barbosa (à dir.), sobraçando uma estola, entre
convidados e alunas (O Malho, 15/6/39)
Houve números de piano, declamação e canto, e a imprensa elogiou particularmente “o sketch opereta Le Grill Room de l’Olympe, fantasia mitológica em versos, na qual as jovens intérpretes, umas 40, todas pertencentes às melhores famílias da nossa sociedade, rivalizaram pelo seu ardor, suas maravilhosas toilettes, sua atuação inteligente e suas vozes impecáveis”. (jul/39)

Presente, emprestando prestígio ao evento, estava também a escritora e feminista Jenny Pimentel de Borba. Os jornais anunciaram bastante a "audição", mas só a Vida Doméstica registrou a presença de Bibi, que provavelmente foi ou ainda era aluna do conservatório: “A Srta. Bibi Ferreira, acompanhando-se ao violão, encantou os assistentes com uma canção em inglês, e duas outras em castelhano e vernáculo, estas últimas da autoria da inteligente e simpaticíssima menina. Foi alvo de estrondosos aplausos”. (id.)

Vida Doméstica, jul/39

Quais seriam essas músicas? Há uns dez anos, quando o IMS disponibilizou na internet o acervo de José Ramos Tinhorão, encontrei duas músicas de Bibi no meio, gravadas em 1941: “Lá Longe na Minha Terra”, e “Fitinha Encarnada”. Perguntei a Bibi se eram músicas de alguma produção teatral ou cinematográfica, e me disse ela serem composições suas, da época. Imagino, portanto, que ela tenha cantado uma dessas músicas, que dois anos depois gravou com Dilermando Reis e Jayme Florence.

Dulcina de Moraes
(O Malho, 26/7/34)
Bibi trabalhou com Odilon Azevedo quando tinha 6 anos; ele tinha 24, era solteiro e galã da companhia de Abigail Maia e Oduvaldo Vianna, em Folha Caída. Em setembro de 1939, eles se reencontraram. Bibi era agora uma mulher linda de 17 anos. Odilon estava com 35 anos e formara um das mais prestigiosas companhias teatrais do país com sua esposa, Dulcina de Moraes, considerada a maior atriz brasileira do momento, e que recebera da famosa atriz italiana Luisa Satanella o título de "a Duse morena dos trópicos".

O elenco incluía os pais de Dulcina, Átila e Conchita de Moraes, sua irmã Edith de Moraes, a colega de Bibi em Cidade-Mulher, Sarah Nobre, além de novos talentos que iam despontando no rádio e no teatro, como Aristóteles Penna, Zilka Salaberry (que também fez uma ponta em Cidade-Mulher, protagonizado por seu marido Mário Sallaberry) e Paulo Gracindo. Eles estavam em temporada no Teatro Alhambra, no centro do Rio, e ironicamente, uma das peças de seu repertório, Uma Mulher Livre, da argentina Malena Sandor com tradução de Christovam de Camargo, era sobre o divórcio, assim como Folha Caída. Também de autores argentinos — Carlos Goicoechea e Rogelio Cordone — a trupe apresentou Noites de Carnaval no início de setembro, com tradução de Odilon.

Dulcina e Odilon
(O Malho, fev/40)
Para o dia 6 daquele mês foi anunciada a festa artística de Dulcina, que consistia em um programa triplo: na primeira parte seria encenada Uma Experiência de Amor (“Trois... Six... Neuf...”, creio), de Michel Duran, com tradução de Brício de Abreu; a segunda parte teria Dulcina sozinha, no palco, brilhando com o monólogo A Voz Humana (“La Voix Humaine”, de Jean Cocteau, sem indicação do tradutor, na imprensa), e na seqüência “Bibi Procópio Ferreira homenageará Dulcina cantando canções brasileiras e mexicanas”. Havia, como sempre, três performances diárias: o vesperal às 15h e as apresentações regulares às 20h e às 22h. Bibi cantaria no vesperal e na sessão das 22h.

A Gazeta de Notícias se mostrou desatualizadíssima em sua informação, quando diz, em 31 de agosto, que Bibi prestaria sua homenagem a Dulcina “cantando, pela primeira vez, em público”. Sem sequer mencionar seu programa de rádio, essa era provavelmente a vigésima vez que ela cantava para uma platéia. O Diário de Notícias de 1º de setembro foi mais acurado: “Em homenagem a Dulcina, Bibi Ferreira cantará canções brasileiras e mexicanas, acompanhada ao violão por Tito Sosa e Mário Silva”, deixando entrever que o acompanhamento de Bibi, não por coincidência, era de dois de seus colegas da Rádio Ipanema.

Correio da Manhã, 5/9/39

Mais do que a peça de Michel Duran, hoje esquecida, salta aos olhos A Voz Humana, no que imagino ser sua primeira encenação no Brasil. O texto é de 1930, então a menos que alguma atriz tenha se arriscado no perigoso terreno do monólogo, no meio tempo, foi Dulcina que abriu a picada. A imprensa fez questão de registrar:

Correio da Manhã, 6/9/39
Em “A Voz Humana”, a deliciosa peça de um ato, de Jean Cocteau, (...) a nossa grande comediante será admirada pela platéia através de todos os seus maravilhosos recursos interpretativos. Os variados momentos desse lindo poema de amor e de desespero, que é “A Voz Humana”, serão vividos com todo o expressivo colorido de que se revestem, da mais infantil meiguice à mais violenta revolta, do tumulto da paixão à serenidade da renúncia. (O Imparcial, 6/9/39)

Não há comentários sobre a performance de Bibi nas duas sessões, mas deve ter sido uma noite extraordinária para Dulcina, “a nossa maior comediante, valor autêntico e insofismável do teatro nacional. “A sua festa (...) revestiu-se do maior brilho, assinalando notável acontecimento que repercutiu com simpatia nos meios teatrais da cidade. Segundo a imprensa, ela recebeu, “ao pisar em cena, uma prolongada e significativa salva de palmas. Também no intervalo entre as duas peças do programa da festa, a homenageada foi novamente alvo de expressivas ovações, ao tempo que eram levadas para o palco lindas corbeilles de flores naturais”. (Diário de Notícias, 8/9/39) Vale dizer também que foi o primeiro encontro artístico de Bibi e a grande Dulcina, que cerca de quinze anos depois se tornaria madrinha da filha única de Bibi, Tina.

Martha Eggerth e Jan Kiepura
Cinco dias antes dessa homenagem, a Alemanha invadiu a Polônia e começou a Segunda Guerra. O tenor Jan Kiepura, um dos maiores artistas poloneses, casara-se em 1936 com a igualmente famosa soprano húngara Martha Eggerth e por conta da ascensão do nazismo, ambos deixaram seus respectivos países no ano seguinte e emigraram para os Estados Unidos. Continuaram lá uma carreira que já dava frutos na Europa, tanto no teatro quanto no cinema. Em 1940 Jan terá dois acontecimentos decisivos em sua vida: seu nome será incluído no dantesco Lexikon der Juden in der Musik – espécie de lista negra de músicos judeus ou “meio-judeus” elaborada pelo partido nazista alemão — e fará uma turnê na América do Sul, onde o destaque é sua participação na grande Temporada Lírica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, patrocinada pela prefeitura e organizada pelo maestro Sílvio Piergili. De quebra, Martha foi contratada no mesmo período para uma série de shows no Grill Room do Cassino da Urca, o que significava uma turnê brasileira concomitante para o célebre power couple da música clássica.

Maestro Silvio Piergili
(Site Ópera Sempre)
A Temporada Lírica de 1940 foi algo de espetacular. No primeiro semestre, não fazendo sequer parte do evento, estiveram no Brasil o jovem Jascha Heifetz — já considerado um dos maiores violinistas do mundo — o pianista polonês (também emigrado aos Estados Unidos) Arthur Rubinstein e as pianistas brasileiras Guiomar Novaes e Magdalena Tagliaferro, que alcançaram consagração no exterior e voltavam de vez em quando ao Brasil. A temporada, propriamente, só começava em agosto. Prometia catorze óperas e além de Jan Kiepura, trazia tenores como Bruno Landi e Tito Schipa, e sopranos como a brasileira Bidu Sayão — outra que há tempos era mais cultuada nos Estados Unidos do que no Brasil, e estava acostumada a se apresentar com Kiepura no Metropolitan de Nova York — a japonesa Toshiko Hasegawa, do Scala de Milão, e a franco-italiana Gina Cigna, velha conhecida de nosso público, entre muitos outros. Orquestra com 75 “professores”, coro de 70 vozes e corpo de baile com 45 figuras, estas sob a direção da bailarina russa Maria Olenewa, que morava no Brasil desde 1926, quando criou com Mário Nunes uma escola de dança no Municipal, oficializada em 1931.O corpo de baile foi criado em 1936.

Mas a cereja do bolo dessa temporada não era nem Kiepura, nem Bidu e nem Schipa. Silvio Piergili vinha se desdobrando em negociações desde fevereiro para trazer Leopold Stokowsky ou ninguém menos do que o venerando Arturo Toscanini para abrir a temporada. Ou os dois, se fosse possível. Vencidos os intermináveis óbices financeiros — o cachê de Toscanini era astronômico — a prefeitura do Rio, em parceria com o governo de São Paulo, conseguiu contratar o velho Toscanini para quatro concertos no Rio e dois no Municipal de São Paulo.

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César Ladeira (O Malho, jul/41)
Fernanda Montenegro, ao entregar a Bibi o Prêmio Sharp por sua carreira, em 1996, disse: “Bibi, você sempre foi parte do meu Olimpo teatral. Desde quando eu ouvia você cantar na Rádio Mayrink Veiga, desde sua estréia no teatro como Mirandolina, eu sonhei ser como você”. Atualmente, quando se fala da antiga associação de Bibi com o rádio, a única referência é sua passagem pela Mayrink Veiga, graças ao convite de seu diretor artístico, César Ladeira. Ignora-se tudo o que veio antes e fixa-se em um período que, assim como a passagem de Bibi pela Rádio Ipanema, não durou nem seis meses. Justiça seja feita, a própria Bibi nunca sequer citou a Ipanema. E sobre a Mayrink ela não chegou a ser, digamos, caudalosa nos detalhes. Mas consignou com bastante clareza pelo menos o período onde lá trabalhou: “Como toda garota carioca, já cantei no rádio, aliás, estive até contratada, de julho de 1940 a janeiro de 41, na Mayrink Veiga”. (Jornal das Moças, 29/5/41) Poucos anos depois de sua estréia com Procópio lhe perguntaram: “Você cantou na Mayrink Veiga no Programa do Almoço?” “Cantei”, respondeu ela, “e compus também algumas músicas”. (Ilustração Brasileira, dez/47)

Embora relativamente recente, e Bibi estivesse na ordem do dia por toda a década de 40, o assunto parecia distante e de difícil acesso. Eis um comentário de abril de 1948: “Bibi Ferreira já cantou muito tempo num Programa do Almoço que havia na Mayrink Veiga, interpretando foxes”. (Revista do Rádio, abr/48) O “muito tempo” fica por conta do articulista.

Revista do Rádio, abr/48
Se apenas oito anos depois de Bibi trabalhar na Mayrink as informações já começavam a ganhar braços e pernas, hoje em dia não é diferente. Carla Siqueira, por exemplo, foi responsável pelo verbete da Mayrink Veiga no DHBB, Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, editado pela FGV. Diz ela, escorada em sólida documentação: “Nesse período de maior evidência da Mayrink Veiga, Almirante ali lançou o seu programa Caixinha de Perguntas e mais Programa do Almoço, com Bibi Ferreira, Lenita Bruno, Alvarenga e Ranchinho e Jararaca e Ratinho”. (Abreu & outros, 2001)

Almirante, na caricatura de Augusto
Rodrigues (Revista do Rádio, abr/48)
Pois é, mas há um problema: no prefácio de sua biografia de Noel, o próprio Almirante cita as sete estações por onde passou durante sua vida no rádio, e lá não está a Mayrink. No mesmo prefácio ele lista nada menos do que vinte programas criados por ele, e não há qualquer menção ao Programa do Almoço. E se levarmos em conta a imprensa da época, as duas duplas citadas nunca estiveram no programa.

O erro — repetido por Roberto Salvador em seu livro A era do radioteatro, de 2011 — está no fato de que havia outros “Programas do Almoço” na mesma época, em emissoras como Rádio Transmissora PRE 3, ou a Rádio Clube do Brasil PRA 3, ambas estações onde Almirante efetivamente trabalhou, em uma época ou outra. Se criou o programa, não faço idéia. Bibi certamente não tem a nada a ver com nenhum desses dois. Considerando que criar um programa musical para a hora do almoço e batizá-lo de “Programa do Almoço” não é exatamente a invenção da roda, o mais provável é que César Ladeira limitou-se a incorporar o conceito na Mayrink Veiga. A abalizada Norma Hauer, em belo trabalho sobre a emissora, elimina Almirante, que entrou para essa história como Pilatos no Credo, e diz o seguinte:

Cynara Rios (O Malho, jul/40)
Outra figura, esta ainda em atividade em pleno século XXI e que estreou na PRA 9 em 1940, foi Bibi Ferreira. Ladeira logo intitulou Bibi assim: “Um nome tão pequeno para uma artista tão grande”. (...) Começou no “Programa do Almoço”, transferindo-se logo para o horário noturno, onde cantava em inglês, espanhol e, naturalmente, português. (Hauer, 2011)

A informação vem da revista Pranóve (da própria emissora) de agosto de 1940: “Aparecendo no programa do Almoço da PRA-9, logo se transferiu para os programas noturnos, onde César Ladeira, com aquela visão das coisas que lhe conhecemos, disse, de uma feita, e isso ficou como um slogan: Bibi Ferreira, um nome tão pequeno, para uma artista tão grande!” E está correta, exceto pelo fato de que a estréia de Bibi, como já se viu, foi na Ipanema, em 1937. Quanto à transferência para o horário noturno, não é inteiramente exata. Há registro de que ela participou algumas vezes do programa Balangandans, mas além dele ser transmitido às 18h, o que não qualifica como um “programa noturno” (que era a partir das 21h, depois da intragável “Hora do Brasil”, e reservava-se para grandes cartazes como Carmen Miranda, quando ela estava no Brasil, o próprio Ladeira, a atriz e cantora Cordélia Ferreira, Jararaca e Ratinho e poucos outros), Bibi não era headliner e estava no meio de diversos outros artistas, como o radialista Paulo Serrano, o compositor Fernando Barreto, a imitadora Lydia Campos, a cantora — e sua substituta na Rádio Ipanema — Cynara Rios, etc.

Segundo que a informação é dada um mês depois de sua contratação, quando ela mal começara no Programa do Almoço. É mais um release do que qualquer coisa. É possível, entretanto, que tenha sido convidada em uma ou outra ocasião e apresentada ao público por Ladeira, como já o fora anteriormente por Ary Barroso. Vamos aos fatos:

Bibi, 1940
Durante seus primeiros anos a rádio brasileira teve programação apenas em horário nobre, quando as famílias se reuniam e ouviam as notícias e os sucessos do momento. Em 1940, portanto, programas matinais eram uma novidade e ainda não atraíam o grosso do público ouvinte. Talvez por isso César Ladeira recheava o Programa do Almoço — transmitido de segunda a sábado às onze da manhã — com artistas amadores, tendo aqui e ali a ajuda de veteranos. O programa servia como uma espécie de oficina para criação e teste de novos talentos e consagração definitiva daqueles que já estavam no meio há um pouco mais de tempo. Se o artista fosse competente, era promovido. Se não empolgasse, era simplesmente retirado sem qualquer prejuízo à Mayrink. E nisso não estavam só os cantores, mas também os comediantes: "Muitos e muitos astros e estrelas têm nele surgido. Alguns dos nosso melhores humoristas radiofônicos adquiriram público, fama e situações iniciando-se no Programa do Almoço da sua PRA 9". (Revista da Semana, 29/11/41)

Manuel Vilar, o "Branca de Neve"
(Revista da Semana, 29/11/41)
Não encontrei a data exata de criação do programa, que deve ter ocorrido no início de 1940, mas por volta de abril e maio veremos, graças ao Diário de Notícias, um dos únicos jornais a fornecer a programação diária das rádios, o programa sendo comandado por jovens como o cantor Hedel Luiz, recém-premiado em um concurso de cantores, Manuel Vilar — ou "Manoel Villar", músico negro sobre quem encontrei apenas uma reportagem (Revista da Semana, 29/11/41), contando de nova reformulação do Programa do Almoço, na qual se diz que Manuel era "popularíssimo" e tinha a alcunha nada lisonjeira de "Branca de Neve"  a cantora Odaléia Sodré, de apenas 16 anos, a cantora Nena Robledo, irmã de Emilinha Borba, de vez em quando Marília Batista, João Petra de Barros ou o fadista português Joaquim Pimentel, entre outros, e um quadro para puxar público chamado “Canção da Fan”, no qual Carlos Galhardo provavelmente cantava músicas requisitadas por suas fãs. Galhardo é daqueles que estavam no horário nobre, mas dava uma palinha permanente no Programa do Almoço.

Os colegas de Bibi na Mayrink. Acima, da esq. para dir., Sebastião Pinto (O Malho, 3/10/35), Nena Robledo (Fon Fon, 7/12/40), Hedel Luiz (Fon Fon, 2//40). Abaixo, Ernani de Barros (Fon Fon, 22/6/40), Lenita Bruno (A Scena Muda, 5/1/43) e Ernani Filho (A Scena Muda, 26/10/48)

Diário de Notícias, 6/7/40
Até o fim de junho, quando o programa foi reformulado. Saíram alguns artistas, foi limado o quadro de Galhardo, entrou o cantor Sebastião Pinto como elemento mais experiente, e tornaram-se praticamente fixos artistas como Hedel Luiz, Manuel Vilar, a Orquestra Passos, o cantor Ernani Filho, que vinha do Teatro de Revista, o jovem Ernani de Barros, a quem Ladeira deu o apelido de “o intérprete dolente da nossa canção”, uma bonequinha linda chamada Lenita Bruno — de apenas 14 anos, e que rivalizava com Bibi na interpretação de canções norte-americanas — Nena Robledo e Bibi. Sua estréia na Mayrink ocorre no dia 3 de julho de 1940, junto a Hedel Luiz, Ernani de Barros e Manuel Vilar. Ao contrário da estréia na Ipanema, amplamente divulgada e hoje esquecida, mesmo sendo um programa que tinha Bibi como estrela, não encontrei uma única linha ou foto sobre sua estréia na Mayrink, onde era parte de um elenco. E é, paradoxalmente, a única incursão radiofônica associada a ela. Talvez porque César Ladeira e a Mayrink são lembrados até hoje, enquanto Milonguita e a Ipanema infelizmente desapareceram nos desvãos do tempo.

Foi dito que o elenco era “praticamente fixo” porque raramente eram os mesmos todos os dias. No máximo dia sim, dia não, ou alguns dias seguidos. Sebastião Pinto era razoavelmente constante, mas os outros se alternavam, seja por compromissos ou por shows fora do Rio, então veremos Ernani Filho e Hedel com Nena Robledo em um dia, no outro estarão Ernani de Barros, Bibi e a Orquestra Passos, no outro estarão Hedel, Manuel Villar e Lenita Bruno, e assim por diante. O programa, que era despretensioso e focado no público feminino que ouvia rádio a essa hora, continuou agradando, como quase tudo que a Mayrink produziu naquela época.

Anúncio da participação de Bibi no programa "Balangandans", da Mayrink, em agosto de 40.
No repertório, músicas em diferentes idiomas, o que desde sempre fora marca registrada de Bibi.
A famosa toada "Luar do Sertão", de Catulo e João Pernambuco; "Zuni! Zuni!", bobagem em espanhol composta por Tito Guizar dois anos antes e interpretada por ele no filme "The Big Broadcast of 1938", com W. C. Fields e Bob Hope; e duas composições da própria Bibi: o samba "O Figurino" e o fox "Don't drink, don't smoke, don't love". (Gazeta de Notícias, 8/8/40)

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Diário de Notícias, 19/6/40
O clima era da mais ansiosa expectativa para a volta de Toscanini ao Brasil, onde estivera 54 anos antes, em 1886, apresentando-se com a orquestra de Leopoldo Miguez, cuja demissão por desentendimentos múltiplos com seus colegas acabou levando Toscanini, violoncelista de apenas 19 anos, a empunhar uma batuta e reger uma orquestra pela primeira vez em sua vida. Os shows ocorreram em meados de junho e início de julho, dando a largada para a temporada lírica, e foram um acontecimento.

Na Europa o clima era bem diferente. No dia do último show de Toscanini no Rio, 10 de julho, teve início a chamada “Batalha da Inglaterra”, duelo entre a RAF, Força Aérea Britânica, e a Luftwaffe, Força Aérea Alemã. Semanas depois, já em agosto, e inaugurada a temporada de óperas no Municipal, dois artistas amadores de ascendência inglesa, Cyril Corder e Francis Hallawell, tiveram a idéia de montar um espetáculo em nome do Comitê Britânico de Socorros às Vítimas de Guerra, com renda revertida para a Cruz Vermelha brasileira, britânica e polonesa. Ambos eram praticamente desconhecidos, então o Correio da Manhã exagera quando se refere a Corder como "nome este já bastante conhecido no meio de teatro-amadores do Rio de Janeiro, pelas suas numerosas produções apresentadas com grande sucesso em diversos teatros do Rio de Janeiro". (5/9/40)

Correio da Manhã, 24/8/40
Para bancar o espetáculo Corder teve a ajuda das esposas de grandes empresários como Francis Walter Hime (avô do compositor Francis Hime), Carlos Guinle (pai de Jorginho Guinle), Ernesto Gomes Fontes (do conglomerado EG Fontes), Carl Alden Sylvester (presidente da Light do Rio de Janeiro), a empresária francesa radicada no Brasil, Blandine Sloper e a princesa polonesa Anna Yolanta Czartoryska, esposa do príncipe austríaco Ladislaus Radziwill.

Resolvida a questão financeira, ele saiu contratando todos os artistas amadores brasileiros e ingleses que pôde encontrar no Rio. Conjuntos vocais, comediantes, sketches dirigidas por Jean Maxwell e Doreen Woodward, o jovem pintor Roberto Burle Marx para desenhar um dos cenários, as alunas de Peggy Morser e Klara Korte, figurinos de Louise Malpas, músicos, instrumentistas, cantores e assim por diante. A orquestra de 25 figuras viria do Grill Room do Cassino Copacabana, sob a regência de Carlos Noll, com arranjos do maestro Victor Nisticó. E, claro, a mais célebre artista jovem do momento, capaz de cantar, dançar e interpretar com igual talento, e em vias de se profissionalizar: a filha de Procópio, Bibi Ferreira, que continuava se apresentando no Programa do Almoço, da Mayrink e acabara de entrar na lista de nomes do rádio nacional que mais se destacaram em setembro. (Cinearte, 15/9/40)

Kiepura e Eggerth cantam no benefício
pela "Cidade das Meninas" (Revista
da Semana, 31/8/40)
A prefeitura ofereceu o Municipal para uma noite e o espetáculo, batizado de “Carioca Cocktail” — simbolizando o cosmopolitismo da produção — tomou forma. Os ensaios, para um elenco que ultrapassava as cem pessoas, ocuparam os meses de agosto e setembro. Seria “uma revista em dois atos, tipicamente londrina”, permeada de elementos brasileiros. Da maneira que vinha sendo ensaiada já estaria ótimo. Mas Corder acabou conseguindo o que parecia impossível: Jan Kiepura e Martha Eggerth foram convidados e aceitaram participar de um dos números. Os dois artistas eram encantadores, generosos, estavam adorando o Brasil e haviam participado de eventos beneficentes que iam da arrecadação de fundos para “as obras da Matriz de Sta. Therezinha” até o chá dançante em benefício da “Cidade das Meninas”, obra assistencial de Darcy Vargas. Mesmo encerrada a Temporada Lírica e a temporada no Grill Room, os dois fariam parte do Carioca Cocktail, cuja apresentação estava marcada para 30 de setembro. (Correio da Manhã, 23/7, 21/8, 5/9, 22/9 e 25/9/40, Diário Carioca, 15/9/40, Diário da Noite, 17/9/1940)

A imprensa fez seu papel, anunciando constantemente:

"Carioca Cocktail" é na realidade uma mistura especial de uma infinidade de ingredientes, formulada para satisfazer a todos os sabores, que será servida ininterruptamente, sendo cada ingrediente anunciado de forma bastante original por ‘compéres’  brasileiros e ingleses. (...) Do elenco convém ressaltar o nome da Srta. Bibi Ferreira, filha de Procópio. (Correio da Manhã, 22/9/40)

Correio da Manhã, 15/9/40
Correio da Manhã, 28/9/40
No dia 23 de setembro a colônia britânica ofereceu um chá, no Palace Hotel, a todos os artistas envolvidos no Caroca Cocktail. O Diário Carioca atiçou ainda mais a curiosidade do público:

Nessa festa (...) tomarão parte, além de outros artistas brasileiros e britânicos, Jan Kiepura e Martha Eggerth, que pela primeira vez aparecerão juntos à platéia carioca; Quartetto in Blue, com Margaret Quick no piano; The Treble Clef Club e, finalmente, Bibi Ferreira, a famosa e talentosa filha do querido Procópio, cantando e dançando como nunca. (Diário Carioca, 24/9/40)

Vale registro, neste caso, de que os “Treble Clef Clubs” eram grupos vocais femininos de inspiração judaica, e surgiram na cidade norte-americana de Norfolk, na Virginia, no início do século XX, na YWHA, Young Women's Hebrew Association, Associação Hebréia de Jovens Mulheres.

O Chá para o elenco do Carioca Cocktail. Bibi parece ser a quarta sentada,
da esquerda para a direita. (Diário Carioca, 24/9/40)

Na terça-feira, dia 24, parte do elenco se reuniu para participar do programa de rádio "Ondas Musicais", "dedicadas a todos os rádio-ouvintes que preferem as obras de compositores clássicos e dos modernos já consagrados pelo bom gosto musical". O programa — que possuía beneplácito estatal e patrocínio da Liga Brasileira de Eletricidade — era transmitido ao vivo por seis estações e aquela edição seria quase toda dedicada ao Carioca Cocktail. Bibi esteve entre os participantes:

O Programa "Ondas Musicais apresentou ontem belos números de estúdio, a cargo dos artistas que tomarão parte na revista "Carioca Cocktail". Gostamos de ouvir o Quarteto Azul, esplêndido no gênero. Bibi Ferreira, a talentosa filhinha de Procópio, esteve também muito segura no número "Mammie", de sua autoria. (O Imparcial, 25/9/40)

O Imparcial, 25/9/40
Mammie, composta por Bibi, é música que desconheço completamente. Provável influência de Al Jolson, a quem Bibi deve ter escutado muito quando criança.

Em meio aos ensaios ainda houve tempo para Bibi participar de outro evento, este no então prestigiosíssimo Fluminense Futebol Club. O centro recreativo, pertencente ao time de futebol, era na época uma casa noturna das mais bem-freqüentadas do Rio e possuidora de uma eclética agenda cultural, com bailes e festas para todos os públicos, dividida pelos dias da semana. Martha Eggerth e Jan Kiepura lá estiveram no fim de agosto e na quinta-feira, dia 26 de setembro, uma chá dançante ocorreu para homenagear os integrantes do Bando da Lua, tendo como convidados especiais Dulcina e Odilon. Participaram da homenagem Bibi, a cantora e ex-miss Ipanema Laura Suarez, Linda Baptista, Grande Otelo, Carlos Galhardo, o intérprete de canções internacionais Edgar Lafourcade, o Quarteto de Bronze, novíssimo conjunto musical feminino, o radialista e comediante Silvino Neto (pai do comediante Paulo Silvino), o compositor Arthur Costa, parceiro de Noel, e o brilhante gaitista Eduardo Nadruz, cujo número era referido por "Edú e suas gaitas", estando ele em início de carreira mas já reconhecido por seu imenso talento, entre outros. Infelizmente não encontrei nos jornais quaisquer comentários sobre o decorrer da festa, e os números apresentados. Foi o primeiro encontro artístico, de muitos que viriam no futuro, entre Bibi e Grande Otelo.

Correio da Manhã, 24/9/40
Os ingressos para o dia 30 se esgotaram e a Rádio Cruzeiro do Sul, PRD 2, anunciou sua transmissão ao vivo. Entre os presentes estavam Darcy Vargas e alguns de seus familiares, o prefeito Henrique Dodsworth, Geoffrey Knox, embaixador da Inglaterra, Jefferson Caffery, embaixador dos Estados Unidos e mais uma série de figuras proeminentes do corpo diplomático. (O Jornal, 4/10/40) A "Batalha da Inglaterra" e seus terríveis embates estavam na ordem do dia e as colônias de todos os países que vinham contabilizando feridos e vítimas nos ataques alemães estiveram em peso no Municipal. Foi um grande sucesso. “Trata-se de uma revista que é um conjunto de arte e beleza”, disse o Jornal do Brasil, que fez bom apanhado do espetáculo. A posteridade agradece:

O primeiro número, verdadeiro triunfo, representa um bar em que está sendo "misturado" o Carioca Cocktail. A "theme colour", em homenagem ao Brasil, foi verde e amarelo e tanto os cenários como os vestidos realçam a beleza e a mocidade das bailarinas. Segue-se com pleno êxito o Quarteto em Azul, com Margaret Quick ao piano — já muito conhecido no programa de rádio “Variedades Britânicas”, que dentro em breve voltará ao ar, e o recital de acordeon por Miss Brooker, que muito agrada.

Na seqüência, “a encantadora Bibi Ferreira canta e dança um número de sua própria composição, Mammie, que será bastante ovacionado”. Era a primeira de várias entradas de Bibi durante o espetáculo. Segue o Jornal do Brasil:

Correio da Manhã, 28/9/40
Serão aplaudidos, após, The Clef Club, com uma ótima seleção de canções em que suas belas vozes foram muito apreciadas: Margaret Quick sempre tão contente em uma dança espanhola, tocando suas castanholas como se estivesse em Sevilha; o sketch "Illusions & Confusions", que muito fez rir à platéia e o final do primeiro ato: "Song Memories", que reúne todas as canções dos tempos passados, onde todas as artistas tomaram parte. O cenário é uma linda vista das "Houses of Parliament" com o rio Tâmisa e o maior boulevard de Londres — o "embankment" — no "foreground".

O segundo ato se iniciou “com as já queridas Cocktail Girls. Enquanto algumas dançam e cantam, outras descem às poltronas e distribuem à platéia copos com um cocktail em homenagem à revista”. Depois delas entraram em cena, para o delírio do público, Martha Eggerth e Jan Kiepura. Infelizmente a imprensa não dá detalhes sobre a participação de ambos. Mas assim que saíram do palco entraram Bibi e Frank Zezza “num número encantador: Scatter Brain”. A canção de Johnny Burke, Keene Bean e Frankie Masters foi celebrizada pelo último, que era um famoso band leader e cantor. Masters gravou "Scatter Brain" em 1939 e a canção se tornou não apenas o maior sucesso daquele ano, mas da carreira dele.

À direita, Bibi e Frank Zezza (Correio da Manhã, 3/10/40)

Voltemos ao Jornal do Brasil e à entrada de Bibi vestida de baiana, o que provavelmente não fazia desde Cidade-Mulher:

Segue-se um sketch: "The Restaurant", que receberá o aplauso merecido, e novamente as "girls", festa vez divididas entre si - a moderna contra a antiga - num lindo "ballet-valsa". Depois o Quarteto em Azul canta "Umbrella Man" em costume muito original acompanhado por Miss Brooker ao acordeon; "Deep Purple", um ballet moderno originado por Mme. Klara Korte e dançado por suas alunas. E assim chega o "Brazilian Shake" — o grande final do Carioca Cocktail, dedicado ao Brasil. Em pequenos grupos e aos poucos, todos os artistas enchem o palco — tendo cada grupo um número especial. Abre com Bibi Ferreira, uma verdadeira baiana, numa dança cheia de cor e bem brasileira.

A baiana Bibi, segunda, da esquerda para a direita (Revista da Semana, 5/10/40)

Número musical "Figurinos do Momento". Bibi é a primeira à direita e a seu lado está
a instrumentista Lydia Brooker (Revista da Semana, 5/10/40)

O encerramento, com a tal vista das "houses of parliament"

Correio da Manhã, 2/10/40
Seguindo-se Mrs. F. W. Whittle e Mr. Lynch num maxixe do "outro mundo", depois um rancheiro, depois o Maracatú  dança nortista de coroação do Rei Negro  com Margaret Quick e F. Hallawell e música especial de arranjo de José Burle. Por fim o carnaval carioca com toda a sua folia e o palco torna-se um mar de beleza e loucura e o remate com o Hino Nacional, cantado pelos artistas. (Jornal do Brasil, 5/10/40, Diário de Notícias, 5/10/40)

No dia 1º de outubro, Jan Kiepura e Martha Eggerth voltaram para os Estados Unidos. Mas o sucesso do Carioca Cocktail permitiu mais uma apresentação, mesmo sem eles, no teatro João Caetano, no dia 5 de outubro. Sem os dois astros internacionais, porém, foi preciso apelar para outras estratégias de marketing. Os produtores então fizeram um acordo com a fabricante de aviões Thornycroft do Brasil S. A., e sortearam dez passeios aéreos sobre o Rio a quem comparecesse à segunda noite do Carioca Cocktail(Diário de Notícias, 5/10/40) Se a promoção foi levada a cabo, não sei, mas em janeiro do ano seguinte Cyril Corder e Francis Hallawell prestaram contas das duas apresentações do espetáculo. Em carta à Revista da Semana, comunicaram que a arrecadação chegou a quase 114 contos — uma bela quantia — e o valor já havia sido entregue ao Comitê Britânico de Socorros às Vítimas de Guerra, que se encarregou de dividir o dinheiro entre a Cruz Vermelha brasileira, inglesa e polonesa. (Revista da Semana, 4/1/41)

A essa altura da vida Bibi já participara de festas artísticas, de celebrações, de efemérides e de homenagens, com números de música, canto e dança. Mas o Carioca Cocktail, com seu enredo, início, meio e fim, e suas duas apresentações, são a estréia efetiva de Bibi no Teatro de Revista. 30 de setembro de 1940.

Naquele dia 16 de outubro, a presença ocasional de
João Petra de Barros, que oito anos depois se
suicidou, premido pela tristeza de ter uma perna
amputada, após um acidente
Nos meses finais de 1940 Bibi seguiu trabalhando na Mayrink, sempre com grande brilho e acolhimento por parte de público e imprensa. Em outubro, citando "alguns nomes que se puseram em evidência nos últimos trinta dias", a Cinearte citou Lydia Campos, colega de Bibi na emissora. "Outro nome: Bibi Ferreira que além de cantora, interpretando deliciosamente o samba, o tango, o fox, se revela compositora de mérito. Bibi Ferreira é, no momento, um dos grandes cartazes do rádio carioca". (15/10/40)

No fim de novembro esteve no Brasil, em lua de mel com a atriz francesa Marcelle Rogez, o veterano diretor Wesley Ruggles, responsável por inúmeros filmes de grande sucesso no mundo inteiro, como o faroeste Cimarron, a comédia I’m no Angel, com Mae West e Cary Grant, No man of her own, com Clark Gable e Carole Lombard, e dezenas de outros, em uma carreira que remontava aos primeiros anos do cinema mudo. A jornalista Zenaide Andrea, amiga de Bibi desde Cidade-Mulher, era a diretora do departamento de publicidade da Columbia Pictures no Brasil, e a convidou para um encontro com o diretor no Copacabana Palace, que foi registrado pela revista A Scena Muda.

Wesley Ruggles, entre Bibi e Zenaide Andrea. Em pé, intelectuais e artistas
presentes ao encontro. (A Scena Muda, 3/12/40)

Ruggles adorou o país e falou "do seu encantamento por estar recebendo do Brasil e dos brasileiros uma impressão real, confessando-se mesmo surpreendido com tudo o que estava apreciando". (A Scena Muda, 3/12/40)

A última participação de Bibi na Mayrink
(Diário de Notícias, 14/12/40)
O Programa do Almoço continuava, acrescido do locutor Souza Filho e das cantoras Simone Moraes, que pouco depois dublaria Cinderella e se tornaria pioneira nas gravações infantis da célebre coleção “Disquinho”, e Carmen Dolores, mineira que abandonaria o canto para mergulhar de cabeça no rádio-teatro. Mas estava na reta final. Já havia, a essa altura, uns três ou quatro “programas do almoço” em diferentes emissoras, o formato dava sinais de desgaste e era preciso reformulá-lo. Sendo um piloto de prova para novos talentos, nada mais natural que houvesse uma saudável rotatividade no quadro de artistas. No início de dezembro vemos o programa sendo substituído de vez em quando pelo programa de Ademar Casé. O último registro de Bibi no Programa do Almoço e na Mayrink é do sábado, 14 de dezembro, junto a Joaquim Pimentel, Ernani Filho e Lenita Bruno. 

Olavo de Barros (Fon Fon, 18/3/39)
A performance de Bibi que precedeu sua estréia com Procópio também foi uma revista. O curitibano Olavo de Barros — uma das maiores e mais injustamente esquecidas figuras do nosso meio artístico — era um consagrado veterano em todas as áreas das artes cênicas. Escreveu, dirigiu e interpretou para teatro, cinema e rádio. No fim de 1940 ele se juntou a Cordélia Ferreira e os dois decidiram preparar um pequeno caça-níqueis em cima do interesse popular pelas músicas que seriam lançadas no carnaval de 1941. Era normal surgirem revistas todos os anos, em janeiro, utilizando o carnaval como tema; Olavo escreveu um texto com o compositor Saint-Clair Senna, cujas canções estavam na ordem do dia pelas vozes de Francisco Alves, Gastão Formenti e Orlando Silva, incluiu paródias de imprensa, anedotas e assim surgiu o “Chuva de Estrelas”, que reuniria grandes cartazes da Mayrink, com o devido espaço para alguns artistas de emissoras adversárias. Foi marcado para o dia 25 de janeiro, no Teatro Carlos Gomes, “luxuoso teatro da Empresa de Pascoal Segreto”. Como se verá adiante, ele podia até ser luxuoso, o que não impedia que o verão carioca castigasse os espectadores com sua canícula noturna.

Carlos Galhardo, presente por grande
parte desse período da vida de Bibi
(Fon Fon, 17/6/39)
Os apresentadores — ou “compéres”, como se dizia então — foram Paulo Gracindo, no papel de “Autor” e a cantora Zezé Fonseca, no papel de “Graça”. Embora feito às pressas, não se pode negar que o nome da revista de Barros e Senna fosse adequado. Entre estrelas que brilhavam naquele momento, outras que seguiriam brilhando e outras que brilham até hoje estavam lá os cantores Carlos Galhardo, Gilberto Alves, Fernando Barreto, Mário Moraes, Sebastião Pinto, o trio “Os Pinguins” e Moreira da Silva, então referido como “o tal”. As cantoras eram todas jovens e igualmente promissoras: Bibi, Cynara Rios, Inezita Falcão, Yvonette Miranda, Janyr Martins, Simone Moraes e Léa Coutinho. Nos sketches humorísticos e nas “cortinas”, ou entreatos, estavam os também muito populares e respeitados Armando Louzada, o casal Cordélia e Plácido Ferreira, o casal Déa Selva — a linda atriz de Ganga Bruta — e Darcy Cazarré (mais tarde pais dos atores Olney e Older Cazarré), Jararaca e Ratinho, Silvino Neto e Jorge Murad. Todos com acompanhamento da orquestra do maestro Bernardo Bontempo. (A Batalha, 15 e 16/1/41)

Gilberto Alves (O Malho, mai/40), Janyr Martins (Fon Fon, 15/6/40) e Silvino Neto (O Malho)
Jararaca e Ratinho (Fon Fon, 24/2/45)

A Batalha, 22/1/41
A principal prova de que Chuva de Estrelas não teve qualquer preparo e não passava de um mal-costurado recital de grandes artistas foi a ausência de propagandas. Enquanto Walter Pinto inundava os jornais diariamente com anúncios de Disso que eu gosto, revista escrita por Oscarito, em cartaz no Teatro Recreio, havia apenas o release protocolar de Chuva de Estrelas, sempre com as mesmas informações. Também ao contrário de Carioca Cocktail, documentado e fotografado, não encontrei uma única foto, seja dos ensaios ou da apresentação de Chuva. E o resultado não poderia ter sido outro: a lotação se esgotou, o espetáculo foi caótico e conquanto chovessem estrelas, a impressão que ficou não foi das melhores. O jornalista Josué de Souza, do Diário da Noite, não deixou barato, e começou falando da falta de um programa impresso, importantíssimo em revistas, pois o público fazia questão de identificar metodicamente pelos folhetos distribuídos, quem estava cantando, e o quê:

Mesmo sendo uma revista mal-engendrada
e mal-acabada, "Chuva de Estrelas" foi o
 primeiro encontro de Bibi com o imenso
Paulo Gracindo (Fon Fon, 15/6/40)
O espetáculo (...) terminou, mesmo, abruptamente, sem que tivesse sido dada uma satisfação ao público, numerosíssimo, aliás, já que não havia um único programa impresso. Aos poucos, porém, os espectadores, compreendendo que o Sr. Olavo de Barros se tinha esquecido daquele detalhe, sem medir a irreverência do seu efeito, foram desocupando o casarão da Praça Tiradentes.

Infelizmente o jornalista não descreve o espetáculo discriminando os números de cada artista. Mas dá sopapos neste ou naquele, e elogia outros, destacando Bibi:

A noitada, contudo, satisfez e compensou o sacrifício imposto pelas duas horas e meia de calor a que ficamos sujeitos. Gilberto Alves, Janyr Martins, Jararaca e Ratinho e Silvino Neto foram os heróis do palco. Arrancaram fartos e prolongados aplausos, sendo obrigado a bisar os seus magníficos números. (...) Não podemos, no entanto, dizer o mesmo dos sketches apresentados. Velhos, velhíssimos, tiveram apenas a missão de encher o tempo. E o fizeram muito mal. Jorge Murad, com as suas piadas do tempo da onça, não chegou a desagradar. O Sebastião Pinto, Bibi Ferreira, Fernando Barreto, Yvonette Miranda, cantaram de modo bastante satisfatório, destacando-se Bibi Ferreira. Os demais não comprometeram. (28/1/41)

Exatamente um mês depois desse artigo, cumpriu-se uma profecia feita absolutamente sem querer pelo O Jornal, de Assis Chateaubriand, três anos antes. Na verdade não era tanto uma profecia quanto um boato sem maior embasamento, mas que acabou se tornando realidade em 28 de fevereiro de 1941.

O Jornal, 16/7/37

FIM DA TERCEIRA PARTE
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VEJA TAMBÉM:

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BIBLIOGRAFIA
  • A Batalha
  • A Nação
  • Correio da Manhã
  • Diário Carioca
  • Diário da Noite
  • Diário de Notícias
  • Gazeta de Notícias
  • Jornal do Brasil
  • O Imparcial
  • O Jornal
  • A Scena Muda
  • Beira-Mar
  • Carioca
  • Cinearte
  • Fon Fon
  • Ilustração Brasileira
  • Jornal das Moças
  • O Malho
  • O Cruzeiro
  • Pranóve
  • Revista da Semana
  • Revista do Rádio
  • Vida Doméstica
  • "Bibi Ferreira, Uma Vida no Palco"
  • ABREU & outros. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, FGV, 2001.
  • ALMIRANTE. No tempo de Noel. Rio de Janeiro, Sonora, 2013.
  • HAUER, Norma. Pelas ondas da Mayrink. Rio de Janeiro, Quártica Premium, 2011.
      Agradecimento a Milton Baungartner
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