quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Dirce "Tutu" Quadros (1943/2014)



Jânio e Tutu três dias depois da histórica
vitória do 22 de março de 1953
Mandei o primeiro volume a ela. Morrendo de medo. Sua opinião, sinceramente, era a única que me importava. Liguei dias depois. Perguntei o que ela achou.

"O livro é perfeito", disse ela.

Que bom que ela viveu para ler o volume no qual falo da juventude tão desconhecida de seu pai, e para saber que quem vai contar a história dele é alguém honesto, imparcial, isento, comprometido somente com a verdade, e não com o sensacionalismo.

Guardo só lembranças boas de Tutu. De seu saudoso marido Frank. Da semana que passei com eles na Califórnia. Dos passeios, dos jantares, das fotos, das gargalhadas, das conversas, das confidências, da intimidade fraterna, sobretudo da generosidade de Tutu. Falarei aos poucos. No momento peço licença à minha querida Ana Cláudia para transcrever sua linda mensagem de despedida.

É assim que lembrarei de Dona Dirce.

"Descanse em paz, nossa mãe, que amava a natureza, animais, alimentava pássaros, racoons, mimava o Amor, caprichava nos detalhes, e que acreditava que todos tinham direito à felicidade e a obrigação de procurá-la. Detestava os que se faziam de vítimas, os que julgavam os demais, e quem vivesse pra tentar agradar a todos menos a si mesmo.

Nossa mãe foi uma lutadora. Nessa madrugada venceu sua batalha final. Deixa saudade, exemplo de força, e memórias de momentos muito felizes".

Também transcrevo a mensagem de Ana Laura, citando com tanto acerto o poema "A Fond Kiss", do escocês Robert Burns:

"But to see her was to love her;
Love but her, and love forever."
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Muito obrigado, Dona Dirce, Por tudo!

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Jânio, Ben Gurion e as metamorfoses de Carlos Heitor Cony


Carlos Heitor Cony
Meus caros,não é exatamente uma raridade jornalistas requentarem suas melhores histórias, mas é curiosíssimo o processo pelo qual elas podem aumentar, criar pernas, braços, detalhes, adendos e se alterar completamente nas mãos de seu autor, ao longo dos anos. De vez em quando faz lembrar o proverbial "telefone sem fio", no qual uma história é contada tantas vezes que a última versão já não guarda qualquer semelhança com a primeira. Mesmo quando estamos falando de um dos nossos maiores jornalistas de todos os tempos: Carlos Heitor Cony. Na Manchete nº 1.271, de 28 de agosto de 1976, edição especial sobre os quinze anos da renúncia de Jânio, Cony escreveu um interessante artigo sobre o assunto, dizendo o seguinte:

Em 1962, em Telaviv, Adolpho Bloch foi visitar o seu amigo, o então premier Ben Gurion. O assunto da conversa passou a ser o Brasil, ainda traumatizado pela recente renúncia de Jânio Quadros. Ben Gurion quis saber de Adolpho Bloch os reais motivos do gesto, inesperado e dramático, do presidente que fora levado ao poder por mais de de cinco milhões de votos. As explicações de Adolpho, ao que parece, não satisfizeram Ben Gurion, que comentou: "Não, meu caro Bloch, o ato de Quadros não se justifica. Nunca poderei entender como pôde renunciar o presidente de um país com tanta água".

Em 1995, Cony requentou o artigo; Adolpho transformou-se em "amigo meu" e a impressão de Ben Gurion mudou, literalmente, da água para a terra:

Amigo meu estava em Israel quando Jânio Quadros renunciou. Foi chamado por Ben Gurion, que desejava entender o que estava se passando no Brasil. Recebeu a explicação óbvia: Jânio tinha problemas para governar e preferira ir embora. Ben Gurion arregalou os olhos: "Como ter problemas? O Brasil tem tanta terra!". Nada demais que Ben Gurion não entendesse as dificuldades de um presidente brasileiro. O problema de Israel era terra, terra que precisava ser disputada palmo a palmo contra o deserto, as pedras e os árabes em volta. Já o Brasil era o colosso verde no qual caberiam duas Europas e uns cem Estados de Israel.

Em 2007 Cony voltou ao assunto, só que desta vez a historinha ganhou corpo, cenário, o amigo virou um jornalista que estava em Israel mas não sabia da renúncia, e o grande problema de Israel volta, como por encanto, a ser a água:

Em 1961, um jornalista brasileiro estava em Israel fazendo reportagens quando recebeu, no hotel King David, onde se hospedava, o convite para um encontro com Ben Gurion, patriarca do novo Estado. A entrevista com o homem mais importante do país não estava no roteiro do profissional, mas não havia motivo para recusar o convite. Após os cumprimentos de praxe, cabia a Ben Gurion iniciar a palestra. Na realidade, ele queria entrevistar o jornalista. E começou com a pergunta: "Por que o senhor Jânio Quadros renunciou à Presidência da República?". Tendo saído do Brasil havia mais de 20 dias, o jornalista não sabia ainda que Jânio dera o fora em apenas sete meses de governo. Apelou para a generalidade: "Problemas, muitos problemas, o Brasil tem muitos problemas...". Ben Gurion interrompeu: "Como problemas?! O Brasil tem tanta água... os maiores rios do mundo...". Israel lutava, naquela época - e de certo modo luta até hoje - contra a escassez daquilo que os jornais antigamente chamavam de "precioso líquido", e o Antônio Houaiss, para evitar o lugar-comum, chamava de "ninfa potável".

Jânio e Ben Gurion em 1959

E por fim, em 2014, quase 40 anos depois de contada (até onde pude apurar) pela primeira vez, a história deixou de ser sobre um "amigo" ou "um jornalista" e Cony não apenas virou personagem da história, como ainda trouxe de volta o protagonista da primeira versão, Adolpho Bloch:

Na primeira vez que fui a Israel, em 1961, o grande assunto era a renúncia de Jânio Quadros. Fui com Adolpho Bloch. Ficamos hospedados no King David. A imprensa noticiou a presença de dois jornalistas brasileiros, Adolpho era bastante conhecido naquele país. Era nome de uma escola e do Observatório Nacional. O presidente de Israel era Ben Gurion, que proclamara a criação do Estado judeu em 1948. Ele nos convidou para uma conversa. Logo no início perguntou as razões da renúncia do nosso presidente que estava ainda no início de seu mandato. Com aquela voz inconfundível, Adolpho limitou-se a dizer que Jânio tinha muitos problemas. Ben Gurion ficou espantado, "como pode haver problemas para um país com tanta água". O problema de Israel era ainda - e por muito tempo foi - o do abastecimento da água para a população e para a agricultura - era então um deserto cheio de pedras - mas logo tornou-se uma potência na agricultura, vendendo seus produtos para vários países da Europa.

Fica a dúvida: O que terá dito, de fato, Ben Gurion, nesse encontro, e a quem?

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Guarnieri no SESC do Carmo, ou "Meu dia de Alberto Korda"


Meus caros,
no fim de 2004 a Companhia Teatral "Coisa Boa", fundada pela atriz Magali Biff e pela diretora Dedé Pacheco, firmou uma parceria com o SESC do Carmo para a realização de um evento semanal chamado "Dramáticos Paulistanos". O projeto consistia na leitura de obras famosas ou inéditas de grandes dramaturgos ligados a São Paulo de uma forma ou de outra, sendo que em determinado momento o público era convidado a participar. Segundo Magali, "a proposta é que todos os presentes interessados, sem uma divisão de papéis, leiam um pedaço da obra". Terminada a leitura, havia um bate-papo descontraído com o autor, sobre o texto.

Nas segundas-feiras de novembro e dezembro de 2004 estiveram presentes naquela unidade do SESC autores como Otávio Frias Filho, Fernando Bonassi e Luís Alberto de Abreu. Na segunda-feira, 13 de dezembro, a Folha anunciou que Gianfrancesco Guarnieri encerraria o evento, com a leitura de Eles Não Usam Black-Tie. A apresentação seria às 19 horas, horário complicado em se tratando de um SESC que fica ao lado da Praça da Sé, em pleno horário do rush. Mas o que mais me preocupou foi a lotação: trinta vagas. Cheguei ao SESC pouco depois das sete e a leitura já havia começado. Verifiquei que não se tratava de um teatro e sim de uma sala, e o pequeno público presente, que não excedeu a lotação, fez uma roda, encabeçada por Guarnieri, seu filho Fernando e o elenco da “Coisa Boa” que lia o texto.

O único que reconheci foi David Leroy, velho conhecido dos teatros da vida, interpretando Otávio. Sentei-me e acompanhei a leitura com o prazer inenarrável de ter o mestre ali na minha frente, reagindo com as expressões, ora de surpresa, prazer, tristeza e revolta, como se ouvisse ali, pela primeira vez, o texto que escrevera 50 anos antes.


Quando se aproximava o momento do acerto de contas entre Tião e seu pai, o famoso diálogo em que Otávio se refere a ele próprio em terceira pessoa, alguém da companhia rodou o público distribuindo um texto. Era essa cena, e ficou estipulado que as falas seriam dadas por cada um dos presentes, pela ordem em que estavam sentados. A mim — nunca esqueci — coube dizer: “E deixa ele acreditá nisso, senão ele vai sofrê muito mais! Vai achar que o filho dele caiu na merda sozinho. Vai achar que o filho dele é safado de nascença. Seu pai manda mais um recado. Diz que você não precisa aparecê mais. E deseja boa sorte pra você”.

Guarnieri
A idéia de fazer o público ler o texto é interessante, mas não teve qualquer efeito dramático. Alguns espectadores mal conseguiam ler, seja pela absoluta inexperiência, seja pelo nervosismo. Foi marcante porque lá estava o grande Guarnieri, brindando-nos com sua luminosa presença, infelizmente cada vez mais rara por conta de seus problemas de saúde.

O bate-papo começou morno. Perguntas genéricas sobre seu trabalho. Sentado em meu canto, lembrei-me de Zuza Homem de Melo na bancada do Roda-Viva que entrevistou Tom Jobim. Zuza fez uma declaração linda de admiração e carinho a Tom, falando sobre o privilégio de ser seu contemporâneo. Pedi a palavra. Não poderia reproduzir ipsis literis o que falei no momento, mas ressaltei o extraordinário mérito dele ter escrito a obra-prima que é o Black-Tie quando contava apenas 21 anos, e, inspirado em Zuza, disse a Guarnieri o quanto me sentia privilegiado e orgulhoso de viver na mesma época que ele. O público aplaudiu e estou vendo como se fosse hoje, dez anos depois, a expressão de desconserto de Guarnieri. O aceno de cabeça, em sinal de gratidão, com aquela humildade tão peculiar aos gênios.

Guarnieri, tendo à sua direita o filho Fernando e à esquerda a atriz Magali Biff

Guarnieri e David Leroy
Eu não via Guarnieri desde 1998, mais ou menos, e notei que ele envelhecera bastante. Parecia um pouco cansado mas respondeu todas as perguntas com perfeita lucidez e discorreu sobre os mais variados temas, inclusive comunismo, Brecht, dialética e demais assuntos jogados sobre ele a partir de então, pelo público compacto, mas altamente devotado a ele e a seu trabalho. Tempos depois, David Leroy me contou que não fazia parte da companhia: “Nesse dia eu fui apenas assistir porque vi na programação do SESC que o Guarnieri faria a leitura do seu texto”. O mestre estava escalado para ler o papel de Otávio, que já fizera na versão cinematográfica do Black-Tie, mas uma conversa de última hora com David mudou o elenco: “Ele estava fazendo hemodiálise e se sentiu sem condições físicas para fazer a leitura. Quando fui cumprimentá-lo ele me pediu que lesse por ele. Foi uma honra! Ler de primeira sem nenhum ensaio foi um risco para mim. Mas depois da leitura ele foi generoso e me disse uma frase que não vou esquecer nunca: O personagem está pronto. Vindo isso do Guarnieri, foi lindo! Eu ganhei o dia!”

Guarnieri e Magali Biff, idealizadora do "Dramáticos Paulistanos"

Lágrimas de emoção
ao abraçar o mestre
Com minha fiel câmera, que me acompanhava fazia quinze anos e já começava um processo irreversível de aposentadoria, fotografei a leitura e a interação de Guarnieri, sempre solícito e gentil, com o público. Consegui captar a emoção à flor da pele de uma menina que não segurou as lágrimas quando o abraçou. Tirei uma linda foto dele rindo e quando descobri a Wikipedia, na mesma época, resolvi ilustrar o verbete dedicado a ele com essa foto, deixando apenas o close de seu rosto. Os responsáveis pelo site entraram em contato comigo para perguntar se a foto tinha copyright. “A foto é minha, fui eu que tirei e autorizo reprodução” foi minha resposta. E qual não foi minha surpresa quando a foto passou a ser usada para ilustrar todo tipo de matéria sobre o autor. Divertindo-me horrores por ver minha foto por aí, me senti o próprio Alberto Korda, cuja foto histórica de Che Guevara, tirada em 1960, viralizou depois de publicada inadvertidamente pela Paris Match em 67. Até a Leica M2 usada por Korda era um modelo mais ou menos popular, como minha velha Canon. Só que ao contrário da imagem triste e grave de Che, captada no funeral de 136 pessoas mortas tragicamente na explosão criminosa de um navio que carregava armas para Havana, a imagem de Guarnieri eterniza seu sorriso franco e generoso. É um reflexo de sua bonomia e de seu prazer em estar com o público.


Em dezembro essa foto completará dez anos. Mas este post é minha singela contribuição aos 80 anos que o amado e saudoso Guarnieri completaria no dia 6 de agosto deste ano.

Saudade.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

"Nunca a vassoura foi tão necessária"...




Meus caros,
quando revejo propagandas como esta, da campanha de Jânio Quadros para a prefeitura, em 1985, lembro-me de Norma Desmond: We didn't need dialogue. We had faces! Eu adaptaria a frase para dizer que naquela época não precisávamos de horário eleitoral; nós tínhamos políticos!

Uma frase como "nunca a vassoura foi tão necessária" vale por uma campanha inteira. E embora traga como destaque a vassoura, símbolo utilizado por Jânio e até hoje associado a ele, é atemporal. Vale para 1985, quando a corrupção era localizada e estigmatizava o corrupto, e vale para hoje, quando a corrupção se tornou pedra angular do atual governo.

No mais, Jânio sempre personificou o combate à corrupção e uma autoridade draconiana no exercício do poder. Qualidades que podiam até assustar alguns, mas empolgavam a maioria, sedenta de um governo sério, honesto, disciplinado e disciplinador. Seu rosto grave, de semblante fechado, professoral e ranzinza não inspirava medo e sim confiança.

Sem qualquer estrutura, com as propagandas mais quadradas e antiquadas, e um programa de TV tosco e de baixa qualidade, Jânio venceu FHC, que vinha com marketeiros, consultores, produtores, diretores, o elenco inteiro da Rede Globo, toda a classe artística e intelectual. Um lição de política.
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