segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Bibi Ferreira, 70 anos de carreira de nossa maior atriz


Bibi como Mirandolina, na peça "La Locandiera"
de Carlo Goldoni, que Gastão Pereira da Silva
traduziu como "O Inimigo das Mulheres". Foi nesse
espetáculo, em 28 de fevereiro de 1941, que
Bibi fez sua estréia como atriz
Meus caros,
neste dia 28 de fevereiro de 2011, em que comemoramos os 70 magníficos anos de carreira de Bibi, trago a vocês duas entrevistas dela, uma à Folha da Manhã, de 1945, quando ela contava com apenas quatro anos de carreira, e outra à Folha da Noite, já em 1949, depois de largo sucesso de público e sua estréia no cinema.

São entrevistas notáveis, cheias de informações relevantes e de detalhes que nos mostram a importância dessa atriz na história de nosso teatro e na cultura de nosso país. Em 1945 Bibi fala de seu repertório, do sucesso de comédias sentimentais como A Carreira da Zuzu (L’Ecole des Cocottes), de Paul Armont e Marcel Gerbidon, e a ambição de montar a trilogia Mourning becomes Electra, de seu então ídolo Eugene O’Neill. No campo da curiosidade, Bibi dá voltas para explicar por que não se concretizara a estréia do espetáculo Angelus, de sua autoria, na temporada anterior. Alega falta de tempo, e etc., mas pessoalmente há dois anos, me disse ela que postergou a estréia “porque a peça era muito ruim”. Talvez, mas a crítica foi simpática ao esforço dramatúrgico de Bibi. Outra curiosidade é o fato de que a temporada 45/46 marcou a estréia de Henriette Morineau nos palcos brasileiros, através da Companhia de Bibi, acumulando as funções de diretora artística e de atriz. Juntas, entre outras peças, elas montaram Miguette et sa mère, de Gaston Caillavet, texto que em 1950 foi levado à telona tendo como protagonista Louis Jouvet, com quem Morineau trabalhou na França.

Procópio ficou tão orgulhoso das críticas unanimemente positivas à Bibi, que
mandou imprimir um livrinho com os comentários e artigos de jornal
Também interessante é o comentário de Bibi sobre a ausência de novos autores nacionais e a necessidade de se estabelecer um concurso remunerado para incentivá-los. De uma forma ou de outra, poucos anos depois, ganhando um concurso no programa televisivo de Cacilda Becker, surgiram ao mesmo tempo dois dos maiores dramaturgos brasileiros de todos os tempos: Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho, filho de Oduvaldo Vianna, que tantas vezes trabalhou com Procópio e Bibi.

Vale registrar que esta entrevista de 1945 foi concedida ao jornalista Ismar Pereira, que trabalhava sob o pseudônimo de "Ivo Peçanha". Para Ismar deve ter sido grato entrevistar Bibi e constatar-lhe o sucesso profissional porque ele estudou com Procópio na juventude e manteve com o ator uma amizade que durou a vida inteira de ambos. Procópio, por sinal, foi talvez o único amigo de Ismar que não o abandonou depois da terrível campanha empreendida pelo Estado Novo contra o jornalista, que se recusava a incensar Getúlio pelos jornais, diariamente.
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“Julgo o teatro nacional numa fase de crescente evolução”, declara a atriz Bibi Ferreira

Folha da Manhã – 30/11/1945
Entrevista a Ivo Peçanha (Ismar Pereira)

Dentre as figuras do teatro nacional, destaca-se Bibi Ferreira no primeiro plano. Filha do ator Procópio Ferreira, nada fica a dever ao apreciado intérprete de Deus lhe Pague. Bibi Ferreira encontra-se nesta Capital, tendo estreado na comédia A Carreira da Zuzu, de Armont e Gerbidon. Sobre diversos assuntos atinentes à sua pessoa e à arte que consagrou Shakespeare e Sarah Bernhardt, ouvimos ontem a intérprete de Pedacinho de Gente.

POR QUE “ANGELUS” NÃO FOI APRESENTADA NA ÚLTIMA TEMPORADA DE BIBI FERREIRA EM SÃO PAULO

No teatro da Rua Boa Vista fomos encontrar Bibi, terminando o ensaio da peça Angelus, escrita por Bibi para ser apresentada ao público paulistano quando da sua última temporada em São Paulo, mas que, apesar de muita propaganda que se fez, foi retirada do programa à última hora, o que surpreendeu a todos. Indagamos qual o motivo que obstara a apresentação de sua peça. Com sua proverbial amabilidade, Bibi Ferreira respondeu-nos o seguinte:

BIBI – De fato. Muita gente ficou surpresa por eu não ter levado à cena a peça Angelus. Isso foi motivado simplesmente por falta de tempo. Cheguei mesmo a ensaiá-la, mas, como as outras peças tomaram todo o tempo de minha temporada, à última hora tive que desistir de apresentar Angelus. Todavia, agora ela será a segunda peça que apresentarei ao público paulista, o que se dará dentro de alguns dias.

Bibi e Suzana Negri em
"Pedacinho de Gente"

Perguntada sobre o entrecho de sua peça, responde-nos:

BIBI – Ela versará sobre a hora do Angelus, a hora sublime da natureza que é também na vida de uma mulher a sua hora de prece. Versará a respeito de conflitos entre mãe e filha apaixonadas pelo mesmo homem e entre a velhice e a juventude. É uma peça sentimental e tenho a certeza de que será bem recebida pelo público e pela crítica bandeirantes.

FICARÁ ATÉ MARÇO NESTA CAPITAL

Respondendo a várias perguntas, disse-nos Bibi Ferreira:

BIBI – Pretendo permanecer em São Paulo até meados de março. Depois espero percorrer o Brasil, levando aos nossos patrícios momentos de alegria e de prazer aliados a bons espetáculos teatrais. Meu repertório para esta temporada é composto das seguintes peças: A Carreira da Zuzu, de Armont e Gerbidon, atualmente em cartaz; Angelus, de minha autoria; Mische, de Etienne Rey; Presa por amor, de Claude Socorri; Fanny et ses gens (ainda em tradução), de Jerome K. Jerome e A Professorinha (La Maestrina), de Dario Nicodemi. São peças ainda não representadas pela minha Companhia nesta Capital, sendo umas de fundo cômico e outras sentimentais.

Bibi em "A Carreira da Zuzu"

BIBI – Os artistas que me acompanham são quase todos conhecidos das platéias paulistanas, como Alma Castro, Branca Mauá, Ribeiro Martins, Alberto Perez, Nuripé Bittencourt. Dos novos, destacam-se Sadi Cabral (novo em minha Companhia, mas sobejamente conhecido dos apreciadores de teatro), Danilo Ramirez e Delfim Gomes. A sonografia e as máquinas estão a cargo de Ivan Neves e Alcides Vergonelli, sendo “regisseur” geral [o que na época seria o “encenador”, ou o diretor de contra-regra] Nuripé Bittencourt. É diretora artística geral Henriette Morineau, ex-integrante da Comédia Francesa e da Companhia de Louis Jouvet, e que fará sua estréia como atriz em minha Companhia na peça Angelus. Trabalhará também em Presa por amor.

GRANDE INTERESSE PÚBLICO PELO TEATRO NESTES ÚLTIMOS ANOS

Qual a pela mais apreciada pelo público em sua última temporada, indagamos, e Bibi Ferreira respondeu:

BIBI – Poderia dizer-lhe que todas foram bem recebidas, mas isso pareceria propaganda. Acho que as que mais agradaram, obtendo invulgar êxito, foram A Primeira da Classe, de Insausti e Malfati, e Pedacinho de Gente (Scampolo), de Dario Nicodemi. Aliás, a predileção do público por essas peças demonstra que ele não tem gosto especial por este ou aquele gênero de teatro e, sim, pelo bom teatro, pelas peças de valor, honestas.

Sobre os melhores autores nacionais e estrangeiros e os artistas brasileiros da sua preferência, adiantou-nos:

BIBI – Responderei somente em relação aos autores estrangeiros. Para mim, o maior deles é o norte-americano Eugene O’Neill. Acho-o inigualável, destacando de suas peças a trilogia Electra. Como artista, o meu sonho dourado é representar essa magnífica obra teatral, o que espero ainda fazer. Quanto aos nacionais, se a eles não me refiro, é porque não desejo magoar ninguém. Gosto muito de diversos autores e artistas, mas salientando uns e esquecendo outros, feriria suscetibilidades.

FALTA DE VALORES NOVOS NO TEATRO NACIONAL

Bibi e Morineau em
"Miguette et sa mère"

Em relação à evolução do nosso teatro e do índice cultural de nosso povo, disse-nos:

BIBI – Considero o teatro brasileiro em fase de crescente evolução. Para isso é bastante notar o interesse do público, dos próprios artistas e das empresas teatrais. Aliás, o próprio Governo Federal tem incentivado bastante o nosso teatro. Sem as subvenções concedidas por ele não poderiam ter sido montadas grandes peças, que acarretam despesas consideráveis. Também a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais tem incentivado muito o teatro brasileiro, protegendo os autores e concedendo-lhes um padrão de vida de acordo com a profissão. Atualmente o autor que tem peça aceita por uma empresa, consegue lucros compensadores, o que não se dava há anos atrás. Mas uma coisa que me tem deixado intrigada é a falta de autores novos. Basta ver os cartazes das Companhias teatrais de São Paulo e do Rio: as peças são quase todas de autores conhecidos e em sua maioria já exibida ao público.

Como insistíssemos para que apresentasse uma sugestão para solucionar essa falta de autores, Bibi Ferreira assim se expressou:

BIBI – Acredito que um concurso que tivesse uma doação, talvez revelasse valores novos. Todavia, nenhum empresário se aventuraria a patrociná-lo, porque não aparecendo boa peça, e sendo obrigado a apresentá-la, não lograria sucesso de bilheteria...

Indagada sobre os seus planos futuros, respondeu-nos:

BIBI – Estudar muito, para poder cada vez apresentar melhor teatro, e, como já disse, percorrer o nosso grande Brasil,  finalizou Bibi Ferreira.

1948 - Três anos depois de trabalhar com Bibi, Morineau formou sua própria companhia e uma das peças que encenou, ainda inédita no Brasil, foi A Streetcar Named Desire, de Tennessee Williams
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Em 1949, Bibi acabava de filmar End of the River com Sabu, estivera a trabalho e estudo na Europa e acabava de voltar ao Brasil, onde o sucesso lhe sorria amplamente com a temporada da peça Senhora. Bibi revela, entre outras coisas, ter assistido na Inglaterra a uma montagem de Crime e Castigo protagonizada por ninguém menos do que John Gielgud (convencionalmente considerado o melhor Hamlet do século XX) e o mestre Jean Louis Barrault na França, interpretando o príncipe dinamarquês, montagem essa que teve influência inclusive no filme de Olivier, lançado em 1948. No mais, ela já demonstrava a inteligência superior de sempre, expendendo os mais brilhantes conceitos sobre a criação teatral e cinematográfica, pormenorizando suas razões para preferir o cinema francês e italiano, ao inglês (uma delas seria “provavelmente por questões de afinidades espirituais”). Aproveita também para antecipar – ao público ávido por revê-la na telona – que voltaria talvez aquele ano ao cinema, o que de fato se concretizou, no filme Almas Adversas, de Leo Merten, onde ela trabalhou ao lado do então famosíssimo ator Fregolente.
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A BATALHA DO TEATRO

MUITO ATRASADO O NOSSO CINEMA EM RELAÇÃO AO TEATRO BRASILEIRO

Folha da Noite – 11/5/1949

Bibi Ferreira fala à Folha da Noite sobre sua temporada em São Paulo – O que viu na França e na Inglaterra – A importância da experiência adquirida – Teatro e cinema na opinião da atriz – Bibi e o cinema

Poucas atrizes, como Bibi Ferreira, podem gabar-se de haver, em tão curto espaço de tempo, firmado reputação artística e granjeado tanta simpatia popular. Senhora de inteligência viva e de cultura humanística realmente sólida, Bibi Ferreira possui todas as qualidades indispensáveis às grandes atrizes: plasticidade mímica, sensibilidade, intuição teatral e gosto pela profissão. Do pai, o grande Procópio Ferreira, herdou Bibi aquela segurança com que se move no palco, segurança de quem sente até no sangue a profissão que abraçou.

Como empresária, Bibi também possui qualidades de positivo valor, principalmente aquela capacidade de fazer-se cercar de bons elementos e de atores corretos e homogêneos, como no caso de seu atual conjunto, que tanto êxito está obtendo em Senhora, a adaptação de Hélio Ribeiro da Silva da famosa novela de José de Alencar, em exibição no Teatro Santana.

Depois de sua estada na Inglaterra, onde filmou Rio sem fim [o articulista refere-se a Fim do Rio, End of the River], película na qual aparece ao lado de Sabu, e que tanto êxito alcançou na Grã-Bretanha e entre nós, Bibi fez uma viagem à França, onde teve o ensejo de assistir aos melhores espetáculos teatrais. A expectativa adquirida, tanto na Inglaterra como na França, foi de grande utilidade nas suas funções de diretora e de empresária, e os resultados estão aí para que o público mesmo possa avaliar.

Atriz querida dos paulistas, não só pelo fato de ser filha de quem é, mas também porque soube impor-se à opinião pública por suas qualidades profissionais, Bibi Ferreira assiste à sua completa afirmação artística, com o êxito da atual temporada. Durante uma das sessões de Senhora, entre a mudança de um e outro ato, tivemos oportunidade de palestrar com a “estrela”.

TEMPORADA VITORIOSA

Inicialmente, à nossa pergunta sobre a situação da temporada em São Paulo, responde-nos Bibi:

BIBI - Magnífica. Acreditava, sinceramente, que a peça iria agradar o público paulista. Mas, francamente, não esperava que o êxito fosse tão completo. Sinto-me, em São Paulo, perfeitamente à vontade. A simpatia que o público desta terra me tributa, por certo, auxilia bastante a realização do meu trabalho. Depois de Senhora, pretendo levar à cena o original norte-americano, Diabinho de Saias, de Norman Krasna, ligeira e leve comédia de costumes. A seguir porei em cena Hóspede em Casa, também comédia, mas de gênero diferente. Faço questão de seguir esta diretriz, intercalando em minhas temporadas dramas e comédias para não sobrecarregar o público apenas com um gênero teatral. E parece que estou certa...

Há uma ligeira interrupção, que o repórter aproveita para fazer-lhe uma pergunta sobre o nosso teatro. Bibi prontamente responde:

BIBI - Em relação aos demais teatros acho que o nosso atingiu uma situação invejável. Devo explicar-me: teatro, como se sabe, é tradição de cultura, a cultura é processo de assimilação. Nesse sentido, somos pobres. Contudo, estamos no mesmo ponto em que se encontravam outros países, atualmente mais adiantados que nós, na nossa “idade”. Mas, sobre aqueles países, temos a vantagem de poder aproveitar a sua própria experiência. De qualquer maneira, e com todas as nossas falhas, acho que o teatro brasileiro nada fica a dever aos demais teatros.


NA FRANÇA E NA INGLATERRA

Prosseguindo, diz Bibi Ferreira:

O Raskolnikoff de John Gielgud
BIBI - Tive oportunidade de assistir, na França e na Inglaterra, aos melhores espetáculos de teatro que estavam sendo levados. O que me impressionou, por exemplo, nos ingleses, foi a simplicidade com que os atores se apresentam em cena e a preocupação, posso dizer de ordem secundária, que dão aos cenários. Para o inglês, o que importa é o texto da peça. A propósito, assisti ao grande ator John Gielgud, em Crime e Castigo, novela de Dostoiewsky, em teatralização de Gaston Baty, e posso afiançar-lhe que esse extraordinário intérprete de Shakespeare pouca importância dá ao cenário e aos “decórs”, preferindo ater-se ao conteúdo temático. Também no Old Vic, o espírito predominante é este. Quanto à França, assisti a Jean Louis Barrault em Hamlet, de Shakespeare, em “mis-em-scéne” do próprio ator, absolutamente revolucionária, sem ir de encontro ao texto, e Pantomimas, uma série de velhas pantomimas francesas, levadas à semelhança dos espetáculos da Commedia dell’Arte. Assisti, ainda, na França, a Águia de Duas Cabeças, de Jean Cocteau com Jean Marais e Edwige Feulliere, nos principais papéis. Confesso que foi de grande utilidade para mim assistir a esses espetáculos.

TEATRO E CINEMA

O Hamlet de Jean Louis Barrault e
a Ofélia de Simone Valere

A seguir, a palestra recaí sobre as dificuldades inerentes ao teatro e ao cinema. A esse respeito, diz Bibi:

BIBI - No teatro, as dificuldades para o ator são bem maiores do que no cinema, porque naquele o contato do protagonista com o público é mais direto: no cinema lança-se mão de vários truques para substituir o ator, a voz do ator e até a interpretação do ator, sem qualquer transtorno para os resultados da película; no teatro, esses recursos seriam impossíveis, sem despertar a atenção dos espectadores. No cinema, o ator tem a seu favor a direção, à qual está afeta grande parte da responsabilidade, sem contar, por exemplo, o olho científico que é a “câmera”, e que, ao contrário do que se poderia imaginar, simplifica sobremaneira o trabalho do ator; no teatro, ao contrário, a contribuição do ator é grande e de seu desempenho depende, sem dúvida, grande parte do êxito de um espetáculo.

BIBI E O CINEMA

Depois de nova interrupção, Bibi prossegue falando de cinema:

BIBI - Considero o cinema inglês muito frio, muito sem alma. Há qualquer coisa de glacial no cinema britânico que me deixa perplexa. Não posso negar o seu desenvolvimento técnico e artístico. Contudo, acho melhor, muito melhor, o cinema francês e o cinema italiano. Provavelmente por questões de afinidades espirituais. O cinema francês, por exemplo, com sua segurança e a objetividade de sua interpretação, merece um dos melhores lugares do mundo. Depois pode assinalar-se o cinema italiano, cujo realismo está subvertendo completamente o conceito que se tem de cinema. São cinemas que vão direto ao coração da gente. Daí, possivelmente, o seu grande êxito junto às massas e a sua crescente popularidade.

Bibi e Fregolente no então futuro
"Almas Adversas"

Bibi fala ainda de suas atividades cinematográficas e confirma uma pergunta ao repórter:

BIBI - Realmente estou fazendo um filme, sob a direção do Sr. Leo Merten. A história se passa em Congonhas do Campo e aborda assunto brasileiro. Tenho, na película, duplo papel. A filmagem está sendo feita com certa morosidade, em virtude dos meus afazeres teatrais. A empresa espera, porém, que o filme esteja terminado em três ou quatro meses. Depois dessa película, não sei se continuarei a fazer cinema. Naturalmente, isto dependerá da película que estou filmando.

E concluindo sua entrevista, acrescentou:

BIBI - Em relação ao teatro, o nosso cinema ainda está muito atrasado. Mas confio que, em breve, também o cinema terá lugar de importância dentro de nossas atividades artísticas, e poderá ser colocado sem qualquer desdouro, ao lado de outros cinemas do mundo. A nossa perspectiva é boa. Mas só o futuro poderá pronunciar-se a esse respeito.
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Parabéns, Bibi!
Obrigado por tudo e mais 70 anos de talento!
Bernardo
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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Documentário "Tardes com Seu Chico"


Meus caros,
Seu Chico, aos 98 anos, não era mais advogado, vereador ou executivo da prefeitura. Era um contador de histórias. Não foram poucas as vezes em que comecei nossa entrevista e ele me interrompeu: “Hoje não vamos falar da sua pesquisa [referia-se à minha pesquisa sobre Jânio, razão pela qual o procurei]. Vamos falar de outros assuntos”. Era São Paulo antigo, eram os velhos colegas de Chico, seus professores no Largo São Francisco, seus parentes célebres e aquilo que lhe viesse à mente fertilíssima a partir de uma única pergunta. Na terceira ou quarta visita que lhe fiz começou a delinear-se em minha mente a idéia de um filme sobre ele, um documentário que o mostrasse em sua intimidade, conversando, compartilhando de sua gigantesca experiência e vivendo serenamente a aproximação de seu centésimo aniversário. Pensei seriamente sobre o assunto, conversei com Mariana Costa, minha amiga cineasta, pedi-lhe conselhos, perguntei-lhe sobre lentes, câmeras, duração, obtemperei-lhe acerca de meus receios sobre aquilo que filmava, como minhas constantes gargalhadas no meio das histórias de Seu Chico, e assim por diante. Questões de trabalho e de saúde, entretanto, abortaram meu projeto, impedindo-me inclusive de estar próximo a Seu Chico por ocasião de seu centenário, em outubro passado.

Com a morte desse querido amigo, há pouco mais de um mês, voltei ao material filmado que possuo. Não é suficiente para um filme, mas seguramente o bastante para um despretensioso e devotado compêndio de melhores momentos. Quando comecei a edição das cenas tive a agradável surpresa de verificar que, longe de ser um amontoado desorganizado de conversas, meus encontros com Seu Chico foram uma bem amarrada seleção de depoimentos sobre assuntos que tiveram relevância em sua vida, como a faculdade, o trabalho na prefeitura, o mandato de vereador, a intensa vida social e a vida na lide jurídica. Valendo-me da estupenda e inigualável memória de Seu Chico, bem como da notável e involuntária organização mental que lhe permitia falar de dez assuntos ao mesmo tempo sem perder o fio da meada, dividi esse documentário em seis partes que totalizam pouco mais de duas horas. Não há mais o que dizer. As cenas falam por si. Só repito que esta é uma iniciativa despretensiosa, sentimental, que realizei em menos de uma semana, com o fito único de perpetuar a imagem de Francisco Assumpção Ladeira, deixando-a como saudosa lembrança àqueles que o conheceram, e como referência de uma época àqueles que estão chegando agora.

Os textos a seguir apresentam cada bloco e trarão aqui e ali algumas informações adicionais. Divirtam-se e deleitem-se com esse ser humano inigualável que foi Chico Ladeira.

Bernardo
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TARDES COM SEU CHICO


Parte 1 – Os professores do Largo

Janeiro de 1933 - Formado
Chico Ladeira nasceu em Campinas em 19 de outubro de 1910. Perdeu o pai – Atílio Barreto Ladeira – com três anos e ainda jovem veio para São Paulo com a mãe – Elisa Assumpção Ladeira – e a irmã. O primeiro e o segundo grau ele fez junto aos irmãos maristas no Ginásio Nossa Senhora do Carmo. Em 1928 começou o curso de Direito na célebre faculdade do Largo São Francisco. Época riquíssima em acontecimentos políticos e sociais. Aquele foi um ano conturbado, de eleições municipais na capital, das quais Pires do Rio saiu reeleito prefeito, derrotando Marrey Junior, em uma eleição eivada de corrupção perrepista. Chico era parente de Laerte Teixeira Assumpção, um dos membros-fundadores do Partido Democrático, de oposição ao PRP, e pertencia, como ele mesmo dizia, “veladamente ao PD”. Chico teve o inaudito privilégio de estar no Largo durante o golpe de 1930 e a Revolução de 32. Sobre seu envolvimento nesses episódios ele fala no quarto episódio. Aqui ele comenta alguns dos notáveis professores com quem teve aula. Nomes hoje lendários, como Spencer Vampré, Sampaio Dória, Cândido Mota Filho e Noé Azevedo foram todos professores de Chico. Sobre Mário Masagão ele fala com admiração e ainda explica o porquê da grande admiração que Jânio tinha por esse professor de Direito Administrativo. E anedotas absolutamente impagáveis não faltam quando ele se refere a Braz Arruda (filho do velho João Arruda, professor de Filosofia do Direito) e ao velho Francisco Antônio de Almeida Morato, hoje nome de rua e de município.

Clique para ampliar: A turma do Largo que se formou em 32 e recebeu o diploma em 33. Chico está em pé com o chapéu na mão, na extrema esquerda. No meio, entre seus pupilos, o velho
 Francisco Morato

Houve um episódio que Seu Chico me contou rapidamente e que acabei não filmando, mas é indicativo de seu prestígio no Largo. No fim de 1931 o tradicional Partido Acadêmico, do qual Seu Chico era um dos diretores, e que, segundo ele, congregava o pessoal “mais pó-de-arroz” da faculdade (alunos da capital, geralmente de uma classe média razoavelmente abastada), o lançou candidato à presidência do Centro Acadêmico XI de Agosto. Ele não falou com maior interesse sobre o assunto, e o panfleto de campanha que encontrei também não é dos mais empolgantes. Disse Chico, no longínquo novembro de 1931, véspera da eleição:

Não fôra a benevolência de um grupo de amigos indicando o meu nome para, disputar a colegas – cujos méritos superam em muito a boa vontade que é a minha única credencial – a honra de representar o Partido Acadêmico nas próximas eleições do Centro XI de Agosto e se não fôra o dever, muito grato, aliás, que me cumpre de não esquivar-me ao gesto amigo desses colegas bons, eu não concorreria às eleições senão como um simples eleitor, animado apenas do desejo de cooperar com o pouco de que sou capaz para o engrandecimento do nosso Centro – do Centro XI de Agosto.

Assim, candidato, depositário da confiança do meu partido, sinto-me no dever de aqui expor aos colegas as linhas gerais do meu programa. Não é ele grande e estou certo de que o realizaria – contando com a colaboração dos colegas.

Segue-se uma pequena lista de promessas, das quais podemos ressaltar uma, referente à chamada “ação externa” do Centro, e que mostra a patente decepção dos estudantes – sobretudo aqueles, como Chico, que se colocaram a favor do golpe de 1930 – com os rumos ditatoriais que já então tomava o governo de Vargas, não apenas preterindo Francisco Morato na interventoria paulista (aboletando nos Campos Elíseos um desclassificado como João Alberto), mas procrastinando a convocação de uma Constituinte e o retorno à democracia plena: “E, finalmente, como ponto básico da nossa ação externa; pelo dever que cumpre a todos os brasileiros, e com especial responsabilidade a nós – os estudantes de Direito – intensa será a campanha para que o Brasil dentro do mais breve prazo possível, seja entregue à soberania do seu povo voltando ao regime constitucional”. Seu Chico acabou derrotado pelo colega Arnaldo Barbosa, da Reação Nacionalista, que então presidiu o XI durante o ano da Revolução Constitucionalista. Mas ele não se amofinou. Coisas bem melhores o aguardavam no futuro próximo, quando deixasse o Largo, em janeiro de 1933.



Parte 2 – Fábio, Laerte e Marcondes

1935 - Trabalhando com o prefeito Fábio Prado
O golpe de 1930 e a Revolução de 1932 provocaram um atrito indelével entre o ditador Getúlio Vargas e o Estado de São Paulo. Sem qualquer traquejo, experiência ou tato, o ditador escolheu, durante os primeiros cinco anos da década de 30, as figuras menos indicadas para o cargo de interventor, e cada escolha era um arranhão nos brios do povo bandeirante. Em agosto de 1933 ele acertou, escolhendo Armando de Salles Oliveira, “paulista e civil”, como todos há tempos vinham exigindo. Na prefeitura a situação era ainda pior. Desde o golpe, nada menos do que 12 pessoas já haviam ocupado a prefeitura, entre figuras pouco indicadas, pouco dispostas ou flagrantes nulidades. Salles deu fim a essa ridícula dança das cadeiras, nomeando para o cargo, em setembro de 1934, o competente Fábio da Silva Prado, filho de Antônio da Silva Prado, prefeito durante 12 anos, entre 1899 e 1911. Em março do ano seguinte Seu Chico foi trabalhar com Fábio, e é sobre isso que ele fala no começo desta segunda parte. A experiência seria inesquecível, não apenas por ser Fábio um político competente e realizador, mas porque na prefeitura Chico se tornaria amigo de Mário de Andrade, que trabalhava no Departamento de Cultura com Francisco Patti, e de Manequinho Lopes, amizade essa que mais tarde – quando Seu Chico se tornou vereador – redundaria num Requerimento seu para que fosse criado o Parque do Ibirapuera.
Laerte Teixeira Assumpção

Na seqüência Chico fala de duas personalidades marcantes, embora por razões inteiramente opostas. Seu tio-avô Laerte Teixeira Assumpção nasceu no município de Tietê, no interior paulista, em 1880. Também se formou nas Arcadas, no início do século XX e era um homem refinado e culto. Riquíssimo, pôde se dedicar desinteressadamente à política e aos negócios e em 1926 estava no grupo de bacharéis que fundou o Partido Democrático. Anos depois foi também um dos fundadores do Partido Constitucionalista, que chegou a presidir. Sobre Laerte, eis o que diz um livreto do PC publicado na época das eleições estaduais paulistas de 1934 (da qual ele saiu vitorioso, tornando-se presidente da Assembléia Constituinte Paulista de 1935): “Capitalista, sua atuação na vida do alto comércio foi sempre norteada por um sólido conhecimento dos altos e importantes problemas econômicos e financeiros do mundo, que o recomenda como um técnico dos mais abalizados no assunto. Figura de larga projeção política e social, com o fundação do Partido Constitucionalista, foi o Dr. Laerte Assumpção naturalmente indicado para a sua presidência, cargo que ainda hoje ocupa, com raro descortino e não pequeno senso de equilíbrio que o tem norteado de maneira impecável na direção dessa pujante agremiação partidária”.

Vicente Rao, ministro da Justiça, Armando de
Salles Oliveira e Laerte, na posse de Salles
Certa vez Seu Chico me contou uma história que descreve bem o temperamento de seu tio-avô (que não está filmada, infelizmente). Presidente da Constituinte Paulista, coube a Laerte dar posse ao então interventor e agora “governador constitucional” Armando de Salles Oliveira, e ele assim o fez, em 11 de abril de 1935. Um ano e meio depois Salles deixou o governo para se candidatar à presidência. Considerando que ele não tinha vice, a conseqüência lógica seria de que Laerte ascendesse ao posto de governador. A bancada do Partido Constitucionalista, entretanto, preteriu Laerte e elegeu Henrique Smith Bayma, que ficou no cargo por exatos oito dias, até que foi substituído por Joaquim Cardozo de Mello Netto. Laerte culpou o parlamentar Ernesto Leme pela preterição. Ao sobrinho-neto comentou, referindo-se a Leme: “Esse é um torpe”. Amargurado com a traição de que se julgava vítima, nunca mais voltou à Assembléia. “E quando o Laerte morreu”, conta Seu Chico, “imagine você que foi o Ernesto Leme quem fez o elogio fúnebre!”

Seu Chico conta causos de Laerte mas não se estende sobre o trágico fim desse seu parente, que se suicidou em 1950, premido por problemas familiares.

A morte de Laerte - Diário de S. Paulo, 9 de abril de 1950

Alexandre Marcondes Machado Filho foi ministro de duas pastas durante a ditadura de Vargas, além de deputado federal. Mas não é sobre nenhum dos méritos profissionais do velho jurista que Chico fala, no vídeo. Pelo contrário. Ele conta anedotas divertidíssimas sobre o consumo alcoólico exagerado do ministro, e seus desdobramentos tanto no Automóvel Clube quanto no meio da rua, em inesperado exercício de guarda de trânsito. Chico também aproveita a menção de Marcondes para comentar algumas de suas idas com o ex-prefeito Prestes Maia à Pensão Humaitá, de Yan de Almeida Prado, onde o interesse era bem mais etílico do que bibliográfico.



Parte 3 – Câmara Municipal e Jânio

Tentativa frustrada de se reeleger em 51. Seu Chico foi primeiro suplente
e assim que um de seus colegas saiu da Câmara para ocupar uma secretaria municipal,
ele retornou ao Palacete Prates, na Líbero Badaró, onde funcionava o Legislativo Paulista
Clique para ampliar: propaganda na
Folha de Perdizes
É assim que Seu Chico descrevia a gênese de sua candidatura a vereador: “Eu fui procurador da prefeitura; procurador judicial, procurador fiscal e procurador administrativo, e fui presidente da Comissão Civil, na época do Abraão Ribeiro. Então, exercendo esses cargos todos, eu conhecia muito bem a política municipal, e nessas condições, gostando muito da cidade onde eu vivo, e querendo o bem da cidade, porque o que me interessa é a política municipal - pra mim não interessa nada Marselha, Paris, Lisboa, porque eu não vou viver lá. Nem conheço, nunca estive lá - eu quero saber da terra onde vivo e vou morrer. Transporte, água, esgoto, iluminação, todas as coisas que uma cidade deve ter, e eu podendo contribuir para isso, resolvi me candidatar a vereador. E não gastei dinheiro para minha campanha. Eu era advogado de uma companhia de seguros, um dos diretores dessa companhia teve um problema meio sério, que eu resolvi, e além de se dar bem comigo ele ficou grato e mandou imprimir propaganda, tudo que eu precisava, cartazes, folhetos, ele mandou fazer, e eu não precisei gastar nada”.

Padre Arnaldo
Com a morte de Nicolau Tuma em 2006, Seu Chico não se tornou apenas um dos últimos integrantes vivos da 1ª Legislatura da Câmara Municipal depois do Estado Novo, mas o único sobrevivente da bancada de sete vereadores da UDN. Nesta terceira parte ele dá um depoimento rico e esclarecedor a respeito de alguns dos notáveis vereadores daquela legislatura, e começa por seus próprios colegas udenistas. O humor, entretanto, está na lembrança de vereadores excêntricos e divertidos como o integralista João Carlos Fairbanks, advogado, engenheiro, geógrafo, matemático, astrônomo e mais uma penca de coisas, conhecido ao mesmo tempo como “o vereador dos sete instrumentos”, e como “inquieto corifeu do hitlerismo indígena”, dada sua ligação umbilical com Plínio Salgado. Também impagáveis são as recordações que Chico guarda do Padre Arnaldo de Moraes Arruda, que começou seu mandato rezando pela cartilha pessepista de Adhemar, mas com o tempo foi se decepcionando e se aproximando cada vez mais da oposição, e de vereadores como Seu Chico. Visitas ao sítio do Padre e idas esporádicas ao Jockey com direito a uma garrafa de whisky escondida sob a batina são algumas das histórias de Seu Chico sobre o velho Arnaldo Arruda.

Uma parte deste documentário não poderia deixar de ser dedicada a Jânio. Seu Chico era bissexto no que tange ao mato-grossense, foco primordial de minha pesquisa. Inicialmente sua abordagem foi bem-humorada – o episódio que conta sobre a visita deles a um quitandeiro logo antes da sessão na Câmara é divertido – mas com o tempo começou a ficar claro que as lembranças de Chico sobre Jânio não eram exatamente as melhores. Lembro-me que nossa conversa era tão ampla e diversificada que em dado momento ele se chocou ao ser informado que o trabalho era sobre Jânio, e não sobre a Câmara como um todo, naquela legislatura. Chico não negava as qualidades de Jânio, falava de algumas vezes em que saíram juntos, favores que fez ao jovem vereador, mas em geral, não havia entre eles intimidade ou amizade. Chico tinha uma vida social intensa e era assíduo freqüentador do Jockey; Jânio, por outro lado, encetou violenta batalha contra o Jockey durante seu mandato na Câmara Municipal. Seu Chico seguia a orientação da UDN para o bem ou para o mal; Jânio detestava partidos e não tinha qualquer afinidade com a confraria de bacharéis pequenos burgueses que formava a União Democrática Nacional. Por fim, a política não era pedra angular da existência de Chico, que colocava os amigos em primeiro lugar. Jânio era exatamente o contrário. E é curioso ouvir o que Chico tem a dizer sobre o ex-presidente, que ele conheceu logo no início de sua carreira política.



Parte 4 – 1930, 32 e assim por diante

1928 - Escola de Instrução Militar 52
Seu Chico não participou das grandes agitações no Largo São Francisco durante a eclosão do golpe de 30 porque, egresso do “Tiro” da faculdade – a Escola de Instrução Militar 52 – só foi convocado como reservista quando o golpe já se efetivara e Washington Luís não era mais presidente. Sua participação ocorreu antes e foi ainda mais importante: em 1929 trabalhava de vez em quando como speaker da Rádio Record quando esta ainda era uma modesta estação pertencente a Álvaro Liberato de Macedo, e pelos enormes microfones da rádio fez propaganda para Getúlio. Resultado: o delegado do DOPS fechou a rádio por três dias. Na Revolução de 32 sua participação também não foi no front de batalha: “Eu entrei num batalhão”, me disse Chico, “fizeram um batalhão de cavalaria, aqui, eu não quis seguir na frente com meus primos, mas entrei no batalhão de cavalaria, batalhão de polícia, etc., e tomei uma parte da revolução, uma parte a favor da revolução, defendendo a revolução, mas não de combatente”. Pode não ter ido para o front, mas estava no cruzamento do Viaduto do Chá com a Líbero Badaró na noite de 23 de maio, e viu quando um piano foi atirado da janela do Clube Português - empastelado naquela noite tenebrosa - espatifando-se no meio da rua.

Paulo Lauro

Na seqüência Seu Chico conta causos sobre Ernesto Nazareth e Paulo Setúbal, que conheceu pessoalmente, fala rapidamente sobre sua longa associação com o Jockey Clube (assunto de que infelizmente tratei pouquíssimo com Seu Chico) e volta à política, falando sobre o Parecer que redigiu na Comissão de Justiça da Câmara, rejeitando as contas do prefeito Paulo Lauro, em 48, ajudando a derrubar esse prefeito, que entrou para a história como um dos mais corruptos de todos os tempos. Há ensejo para que Chico rememore o elogio que recebeu de Oswaldo Chateaubriand – jornalista, irmão de Chatô e nem um pouco dado a elogiar políticos da esfera municipal – por esse Parecer. No fim Chico fala sobre a célebre campanha do “Tostão contra o Milhão”, a eleição para a prefeitura da capital em 1953, na qual Jânio aniquilou Francisco Antônio Cardoso, o candidato de Chico, da UDN, do governador Lucas Garcez e de uma coligação de 12 partidos que nada pôde fazer para deter a motoniveladora popular representada por Jânio naquela ocasião. Em 54 a UDN se rendeu a Jânio e o apoiou para o governo, na luta contra o inimigo comum, que era Adhemar de Barros. Seu Chico testemunhou em primeira mão a extraordinária popularidade de Jânio, inclusive no interior de São Paulo.



Parte 5 – Rádio Record e Grande Otelo

Seu Chico, retratado em 1950 pelo pintor
e amigo Gaetano de Gennaro
A história contada pelo Seu Chico nesta quinta parte, sobre a Rádio Record, era uma de suas preferidas. Falou-me desse caso em nossa primeira entrevista, em 99, e quando nos reencontramos em 2008 ele comentou, antes de eu ir embora: “Próxima vez te contarei minha história com a Record pormenorizadamente”, enfatizando o pormenoriza-damente. O relato se divide em três partes, sendo a primeira sobre o compositor Alberto Marino e o prefixo que compôs para a velha Rádio Educadora; a segunda é sobre a encrenca em que se meteu o fundador da Record, Álvaro Liberato de Macedo, incluindo aí o assassinato do afamado “desordeiro” Joaquim Jaguaribe Lacerda de Abreu, e a terceira, finalmente, é sobre a oferta que Seu Chico e o tio deixaram passar, de comprar a Record de Macedo, que acabou vendendo-a para Paulo Machado de Carvalho. A menção de Paulo dá a Seu Chico ensejo para falar de sua amizade com Marcelino de Carvalho, irmão de Paulo, e sobre algumas das notáveis atrações musicais que assistiu ao vivo na Record, no curto período em que lá trabalhou, no fim da década de 20.

Grande Otelo

Na segunda metade do vídeo, Seu Chico conta em detalhes outra das histórias que mais gostava: o encontro que teve em 1928, no grêmio estudantil que funcionava na residência de Flávio Torres, com o jovem Sebastião Bernardes de Sousa Prata, que na época tinha 13 anos e era apenas um mineirinho talentoso e precoce, agregado à família de Antônio Queirós Filho. Queirós, chamado então pelo apelido familiar de “baby”, mais tarde tornou-se político proeminente em São Paulo e Secretário Estadual de Justiça do governo de Jânio, em 54. Nada que se pudesse comparar, entretanto, ao que se tornou o mineirinho Sebastião: um dos atores e performers mais famosos do Brasil e do mundo, conhecido por todos pela alcunha de Grande Otelo. Seu Chico ressalta que o relato é um importante subsídio para a elaboração da biografia de Grande Otelo. O livro, por sinal, já existe, escrito por Sérgio Cabral. Ainda não li, para cotejar as informações impressas com os detalhes em primeira mão dados por Chico, mas assim que o fizer, voltarei a este post.



Parte 6 – Epílogo



A quinta e última parte mostra mais momentos inesquecíveis de Seu Chico, permeados por um pequeno comentário que fiz sobre nossas conversas, e os depoimentos de sua sobrinha, a consagrada professora e escritora Zélia de Almeida Cardoso, a quem Seu Chico tanto admirava, e sua fiel enfermeira Rose, a última pessoa com quem ele conversou, já no hospital, dias antes de falecer. Como disse no início, as palavras são desnecessárias. Cada imagem valerá por milhões delas.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Tardes com Fernando Jorge

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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Francisco Assumpção Ladeira (1910 - 2011)


Falei com Chico Ladeira pela primeira vez em 1999, logo no início de minha pesquisa sobre Jânio. Lembro-me que embora agradável, nossa conversa não foi inteiramente satisfatória para mim. Eu na época buscava quem me colocasse na trilha certa dos fatos acontecidos entre 1940 e 1960. Chico ajudou, mas sua conversa era tão rica e tão seivosa, que acabou sendo contra-producente para mim, naquele momento.

Saí tonto de seu apartamento, com a quantidade gigantesca de informações que ouvi na conversa de três ou quatro horas. Era como se eu buscasse aquele fascículo de História do Brasil vendido em bancas, com 30 páginas contando o período entre a era Getúlio e o golpe de 64, e me deparasse acidentalmente com os 30 volumes da Enciclopédia Britânica.

Pelos anos seguintes não voltei a Chico. Segui sozinho na pedreira que era esse assunto, e só quando comecei a escrever especificamente sobre Jânio na Câmara Municipal, senti a necessidade de voltar aos vereadores daquela legislatura, que eu já entrevistara anteriormente, mas que agora poderiam me ajudar ainda mais. Em 2008 fui atrás de Décio Grisi. O seguinte foi Chico. Liguei com medo, sabia que Chico já tinha 89 anos quando conversamos pela primeira vez, e, sem qualquer morbidez, a hipótese de que ele já tivesse nos deixado era a mais provável. Aliás, foi o que aconteceu com três vereadores, meus queridos amigos da fase inicial da pesquisa, Nicolau Tuma, Sebastião Gomes Caselli e Anis Aidar. Para minha suprema alegria, Chico estava vivo, bem, e aos 98 anos mostrava exatamente a mesma disposição para prosear. Durante o segundo semestre de 2008 e o primeiro de 2009 nos encontramos várias vezes. Sempre lá pelas três ou quatro da tarde. Terminando invariavelmente lá pelas oito ou nove da noite.

Em nosso reencontro eu já estava mais maduro e mais equipado de recursos intelectuais e culturais para compreender o privilégio de ouvir alguém que aos 98 anos esbanjava saúde e lucidez. Estava de bem com a vida, aguardando serenamente a morte, sem nenhum medo ou apreensão, apenas com a tranqüilidade da consciência limpa e o prazer de compartilhar uma pequena porção de sua frondosa experiência de vida com um rapaz que se lembrou que ele existia, e que tinha coisas lindas para contar. No dia 8 de janeiro de 2011 ele morreu, aos 100 anos. Ainda não quero escrever sobre Chico porque não digeri a perda desse meu amado amigo. Prefiro mostrá-lo, finalmente, a vocês. Sua imagem em movimento será infinitamente mais eloqüente.

No vídeo que vem a seguir, Chico recita uma poesia que compôs em 1931, quando estava no último ano de Direito no Largo São Francisco. Foi uma das poucas vezes, em nossos encontros, que ele efetivamente pediu para que se registrasse o que ele estava contando. Poesias sobre a garoenta São Paulo - seja a dos anos 20 e 30 ou a de antanho - eram numerosas entre os estudantes do Largo. O próprio Jânio escreveu a sua, em 1938, intitulada Evocação:

Jânio


Meu São Paulo, querido. Eu te revejo
pequenino, brumoso, frio, tristonho.
E humilde, São Paulo, e sertanejo,
eras grande no amor! Grande no sonho!

Eu me lembro, São Paulo... Uma janela
se ilumina na bruma, e de repente
abre-se, e à luz incerta de uma vela,
a moça escuta a serenata quente.

Há romances no ar! Baila no espaço
um cheiro de aventura e na taberna,
os boêmios recitam ao compasso,
eternos versos da poesia eterna.

Corre um rumor longínquo. E a bruma fria,
traz vozes de poesias e de oração...
- Um estudante canta a Academia;
outro estudante prega a Abolição!

Passam vultos sombrios e distante,
no silêncio da noite, alguém dedilha
uma canção de amor à linda amante
que se oculta, medrosa, na mantilha.

Meu São Paulo, querido... Eu te revejo,
pequenino, brumoso, frio, tristonho...
E humilde, São Paulo, e sertanejo,
eras grande no amor! Grande no sonho!

Algumas imagens são até semelhantes nas duas poesias, só que ao contrário de Jânio, que rimou decassílabos e batalhou por sua publicação na Arcádia, revista da Academia de Letras do Largo, esta aqui, composta pelo Seu Chico, é feita em prosa intimista e completa, em 2011, 80 anos de ineditismo. Ineditismo esse que termina agora. Obrigado, Seu Chico, amigo gentil e amado!



Noite nevoenta, cheia de abandono. O Viaduto do Chá deserto.
Do alto de um arranha-céu pálido e entediado, o anúncio espia o silêncio da cidade e de quando em quando a vassoura de luz de um farol indiscreto varre a neblina dentro da noite inquieta.
Meus passos na calçada têm ressonância de surdas marteladas distantes.

Rua Barão de Itapetininga. Praça da República.

Fina e impertinente, a garoa vai caindo.
Abriga-me a porta semi-cerrada de um botequim vazio.
Me ponho a olhar para a praça deserta, para as ruas molhadas, para a dança esquisita da garoa em volta dos lampiões.

Um varredor, à meia voz, passa cantando uma canção dolente, cheia de saudade de sua terra distante.
Um boêmio cambaleando assobia sem ritmo a música devassa de uma maxixe velho.
E num banco de pedra sob as árvores, um vulto encolhido, mal-coberto por um sobretudo esburacado e antigo, talvez sonhando coisas bonitas, dorme.

Agora vai passando a garoa.
O sino de São Bento soou duas longas badaladas, que foram pelo ar com o rumor soturno de um bonde retardatário.
Caminho novamente, e levo comigo na retina a visão ampla do aspecto noturno, ao frio de junho, ao sussurro amargurado daquelas velhas árvores da Praça da República, e no coração, alegria de ter sentido as coisas bonitas de uma paisagem triste.
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