segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O dia em que conheci Jânio


Já não lembro mais quem me disse, certa vez, que embora morasse em uma mansão no Morumbi, Jânio era extremamente simples e apreciava o contato direto com o povo, razão pela qual não eram raros os relatos de pessoas que apareciam, tranqüilamente, na rua Acutiranha, sem qualquer apresentação, e eram recebidos pelo ex-presidente. Fascinado com Jânio desde a infância, comecei a fazer visitas esporádicas à sua residência, ao lado do clube Paineiras, no finzinho da década de 80. Pode-se dizer, entretanto, que cheguei tarde demais. Os seguranças – aqueles que pertenciam à casa e outros mandados pela PF, dentro da lei que obriga o governo a proteger os ex-presidentes – foram sempre muito simpáticos e me confirmaram a informação: se acordava de bom humor, Jânio recebia quem o procurasse, mesmo não tendo idéia de quem se tratava. Só que naquela época ele já estava às voltas com os derrames que minaram sua resistência, e receber quem quer que fosse não dependia mais de seu humor, mas do estado de saúde em que se encontrava. Anos depois vim a saber que em junho de 90 o poeta amparense Marcelo Henrique, munido de uma carta de apresentação do prefeito de Amparo, foi uma das pessoas que conseguiu o que eu tantas vezes tentei.

Não tive sucesso em minhas tentativas. Conheci Dona Eva, a devotada empregada de Jânio e Eloá, que em uma dessas visitas foi até a porta para ver quem queria falar com Jânio. Foi docílima e praticamente se desculpou por não poder me atender. Num outro dia um enfermeiro de nome Sílvio foi até o portão. “O Dr. Jânio não está bem hoje. Tente semana que vem”. Em outra ocasião, enquanto proseava com um dos seguranças, estacionou um carro na porta e dele desceu uma velhotinha. O segurança me cutucou: “Olha, essa aí é a Dona Kalime, secretária do Jânio. Veio visitar o velho”. Já ouvira falar de Kalime Gadia e a cumprimentei polidamente, sem ter, ainda, idéia da importância daquela mulher nas vidas de Jânio e Quintanilha Ribeiro. Ela morreu semanas depois. Terá sido essa a última vez em que os dois se viram?

Jânio e Kalime despachando no Ibirapuera

Sem poder entrar, eu me contentava em conversar com os seguranças, que também gostavam de um bom papo, na pasmaceira que era fazer a segurança da casa durante o dia. Só tinham elogios para Jânio e Eloá. Alguns já trabalhavam com o casal há mais tempo e rememoravam, melancólicos, os bons momentos. Os mais chegados a Jânio sofriam, mesmo. O ex-presidente não estava inválido mas sua têmpera ativa e agitada era agora lembrança, por conta dos problemas de visão e locomoção. O golpe de misericórdia veio em julho: Jânio teve seu segundo AVC e ficou preso a uma cadeira de rodas. Com Eloá a situação era bem pior. O câncer, detectado em 1984, vinha piorando a cada dia e a mansão da Acutiranha se transformara em um entra e sai constante de médicos.

Com Tutu, em agosto de 1990
Em agosto de 1990 encontrei Tutu acidentalmente na Bienal do Livro. Ela estava lançando seu livro de receitas, Delícias de Tutu (Paz e Terra, 1990), e comparecera ao stand da editora para dar autógrafos. Abordei-a e falei-lhe de meu desejo de conhecer seu pai. Ao invés de dispensar-me com uma resposta padronizada no estilo “ele não pode”, “ele não tem tempo”, “me deixa seu telefone”, percebi que a filha de Jânio ficou satisfeita. Não só por ver um moleque de 18 anos perguntando com tanto interesse por seu pai, já considerado, então, um dinossauro da política, mas porque ela, de fato, incentivava esse tipo de visita. Sabia o quanto Jânio gostava desse contato epidérmico com seus correligionários (embora eu não me enquadrasse exatamente nesse molde) e era contra mantê-lo escondido do povo, fechado, egoisticamente. Ela foi gentil, mas eu já sabia o que ia me responder: “É uma questão de dignidade. Quanto mais a saúde dele e de minha mãe pioram, mais difícil se torna, para ele, receber gente com o humor e com a elegância com que sempre recebeu”. Concluiu com a frase que me aterrorizava e ainda me aterroriza: “Espera um pouquinho e tenta de novo”.

Eloá, Jânio e Tutu em 1960

A espera não ajudou em nada. Em novembro Dona Eloá morreu e em menos de um mês, Tutu tirou Jânio da mansão na Acutiranha e o levou para um flat na rua Haddock Lobo. A Folha de S. Paulo noticiou a mudança, no início de 1991 e colocou uma foto do flat na capa do jornal. Guardei-o comigo. Aproximava-se o 74º aniversário de Jânio. Ciente de que Tutu estava, agora, morando com o pai no flat, escrevi duas cartas, uma para ela e uma para ele, dizendo basicamente a mesma coisa: queria conhecê-lo, conversar com ele, ter o privilégio de apertar sua mão. Na manhã do dia 25 de janeiro, não tive dúvidas: munido da edição da Folha que mostrava o flat, fui até a Haddock Lobo e percorri a rua, começando na Estados Unidos, até encontrar o referido prédio. Não demorou, ele ficava na segunda ou terceira quadra. Na portaria, tive a sorte de encontrar o enfermeiro Sílvio, com quem já conversara na Acutiranha. Ele sorriu, como se lesse minha mente: “Ah, conseguiu encontrar?” Depois perguntou, à queima-roupa: “Você vem na festa, hoje?” Respondi-lhe timidamente que nem sabia que haveria uma festa. No mais, não tinha qualquer intimidade nem com Jânio nem com a família e não me atreveria a aparecer sem ser convidado. Ele descera até a portaria justamente para recolher flores e cartões deixados para o ex-presidente e eu aproveitei e lhe entreguei minhas cartas.

Outubro de 1990, posando para a Folha
de S. Paulo no dia da eleição estadual. Talvez
a última foto de Jânio e Eloá juntos

Fui embora feliz. Entregar as cartas a Sílvio era a certeza de que pelo menos Jânio leria – ou alguém leria para ele – a carta que lhe escrevi. Já não importava mais que eu o conhecesse ou não. A bem da verdade, eu não estava sequer preparado para um encontro daquela magnitude. Não tinha a cultura política e histórica necessária para me defrontar com alguém como Jânio. Pensava nisso, totalmente distraído, quando cheguei em casa e meu irmão logo disparou: “Escuta, o assessor da Tutu Quadros ligou aqui”. Referia-se ele a Rivaldo Chinem, na época assessor de Tutu na Câmara dos Deputados. Eu evidentemente deixara telefone e endereço nas cartas que escrevi. “Disse que a Tutu lembrou do encontro com você na Bienal, que ela e o Jânio adoraram o que você escreveu e te convidaram para a recepção que ocorrerá hoje no restaurante do flat onde ele mora”. Fiquei chocado. Convivia com política desde os 13 anos e já conhecera dezenas de políticos, inclusive prefeitos e governadores, mas conhecer Jânio era algo inimaginável. Comecei a me dar conta do quanto haviam sido absurdas minhas visitas à Acutiranha. Só as encarava com aquela calma toda porque no fundo nunca acreditei que conseguiria entrar. E agora era uma questão de tempo até estar na presença do velho Jânio.

Em sentido horário: Robertão, Brasil Vita,
Farabulini Jr. e José Aparecido de Olivieira
À noite fui para lá com a mente enevoada. Sérgio Viotti descreveu seu encontro com Dulcina como um encontro com “a história do teatro”. Encontrar-me com Jânio era mais do que me encontrar com a história do Brasil. Era como ser teleportado para a São Paulo de 1950. Era surrealista, completamente. Quando cheguei, o restaurante se via iluminado, de fora. Nenhuma aglomeração, nenhum curioso, nada. Apenas dois seguranças, que sequer me olharam quando entrei. A agitação, se houve alguma, ocorreu antes. A reunião já tinha começado há pelo menos uma hora. Lá dentro, dou de cara com Robertão, Roberto Cardoso Alves, amigo de Jânio desde sempre. Mais à frente Brasil Vita, amigo de infância, vizinho do ex-presidente no Cambuci, sendo Jânio cinco anos mais velho. José Aparecido de Oliveira também estava lá, mas não o vi. Havia provavelmente muitos outros velhos janistas, mas naquele tempo eu não os reconheceria. Farabulini Jr. eu fiz questão de abraçar. Sua fidelidade a Jânio é lendária e os olhos marejados desse querido pelejador mostravam claramente sua emoção. Cumprimentei todos e segui andando até que fiquei, finalmente, de frente para Jânio. Ele estava no meio do salão, em uma cadeira de rodas, de tênis e um conjunto esporte azul-claro. Havia uma fila esperando para falar-lhe e uma roda de gente em torno dele. Percebi, com alegria, que ele sorria. Estava com a cabeça baixa, mas segurava a mão da pessoa com quem conversava e respondia qualquer coisa de quando em quando. Com alguns secretários de seu último mandato como prefeito chegou a fazer gracejos.

A festa era na verdade um jantar, só que os pratos quentes sumiam diante das maravilhas de sobremesas. O ramo da culinária que atraía (e ainda atrai) Tutu era dos doces, e havia, ali, uma profusão de tortas, bolos, pudins, guloseimas e demais maravilhas que fariam a Holandesa corar de vergonha. Abracei Tutu e lhe agradeci do fundo do coração o privilégio de poder estar ali. Ela me agradeceu por comparecer, estava de ótimo humor e vez por outra levava seu cigarro à boca de Jânio. Quando via a brasa arder, Tutu tirava o cigarro e pouco depois Jânio expirava a fumaça. O poeta amparense Marcelo Henrique, presente à recepção antes de minha chegada, contou anos depois que Jânio também bebeu champagne e comeu um pedaço de bolo que tinha conhaque no recheio. “Não jogue fora, papai, fui eu mesma que fiz”, foi a divertida recomendação da filha de Jânio. Ao agradecer a presença dos convidados, Tutu afirmou: “Papai está bem, está forte, e só precisa descansar”.

Por uma dessas leis de Murphy que nos levam ao suicídio, eu não pude levar uma câmera fotográfica à festa. Desesperado, cutuquei o fotógrafo da Manchete, único representante da mídia presente ao aniversário. Implorei-lhe que tirasse uma foto minha com o ex-presidente. O sujeito não se comoveu nem um pouco: “Isso aqui é cromo. Não tenho como tirar uma foto e te mandar”. Sem ter idéia do que era um “filme de cromo”, sentei-me resignado, em uma das mesas e aguardei minha vez de falar com Jânio.

À esq., assessores e enfermeiros levando Jânio para o salão de festas; e José Aparecido, Jânio (erguendo sabe-se lá por quê um pequeno busto que parece ser de Caxias) e Tutu. São fotos do sujeito que não quis tirar minha foto com Jânio, e estão na Manchete de 8/2/91.

Do meu lado, uma velha assessora do ex-presidente. Simpática, falou-me da amizade que tinha há anos com Jânio e mostrou-me um pequeno álbum de fotos. Pareciam ser da década de 70. Em todas elas, Jânio, sozinho, com ela, com amigos. Ao lado do álbum, uma pequena câmera. Tomei coragem e perguntei se ela não se importaria de me fotografar com Jânio. Fui dramático e suplicante, relatando inclusive meu malfadado diálogo com o sujeito da Manchete. Ela riu de minha desgraça e concordou em tirar a foto.

A foto com Jânio, 25/01/1991
Pouco depois chegou minha vez. Agachei-me, tomei a mão direita de Jânio e identifiquei-me como a pessoa que mandara as duas cartas, pela manhã. As conversas e as gargalhadas corriam soltas, portanto disse-lhe ao pé do ouvido, para que ouvisse bem, que era um privilégio conhecê-lo, que por muito tempo eu havia desejado expressar-lhe pessoalmente minha admiração, que estávamos todos rezando para que ele se recuperasse e retornasse ao seio do povo que sempre o amou e o prestigiou. Jânio, de cabeça baixa, ouvia, somente, sem responder. Segui dizendo-lhe coisas que lhe aquecessem a alma, quando senti que ele puxou lentamente minha mão em direção à sua boca e começou a beijá-la. Fiquei sem ação por um instante. Como poderia eu, aos 18 anos, compreender a carência abismal em que se encontrava o velho ex-presidente, e o quanto a demonstração sincera de carinho, vinda de um jovem que não lhe pedia emprego ou dinheiro, poderia tocar seu coração combalido? Tentei puxar minha mão e lhe disse: “Presidente, eu é que devo beijar sua mão”, o que, então, fiz, diversas vezes. Disse-lhe outras palavras de admiração e me despedi. Jânio recebeu os cumprimentos de mais algumas pessoas e se retirou, acompanhado de um enfermeiro.

Paulo de Tarso Santos
Em 2001 conversei extensamente com Paulo de Tarso Santos. Contei a esse janista da velha guarda sobre meu encontro com Jânio e ele arregalou os olhos. Respondeu-me então que estava rompido com o ex-presidente há mais de 20 anos quando recebeu o convite de Tutu para essa mesma festa de 1991. Sabendo que Eloá estava morta e que Jânio estava entrevado, deixou de lado as mágoas e compareceu ao flat da Haddock Lobo (quando eu cheguei ele já tinha ido embora). A mesma coisa se repetiu. Paulo sentou-se ao lado de Jânio e falou com a amizade de antigamente, “Jânio, vim te dar um abraço, estamos aqui, juntos como sempre”, etc., e qual não foi a surpresa de Paulo quando Jânio lhe beijou a mão. No caso do ex-governador de Brasília, não era só a carência, mas também a alegria de estar rodeado de alguns de seus velhos amigos, os amigos de uma época em que Jânio era o rei.

Para coroar aquela noite, a velha assessora disse que tirara uma ótima foto do momento em que falei com Jânio. Não vi mais razão para permanecer na festa. Despedi-me de Tutu e fui embora. Era tamanho o meu choque que peguei o ônibus errado e tive que andar por quase 40 minutos. Tanto melhor, porque me ajudou a digerir a enormidade do que acabara de acontecer.

Estava nos Estados Unidos quando soube que Jânio tinha morrido, no dia 16 de fevereiro de 1992. De certa forma respirei aliviado. Sua morte foi lenta e cruel. Seis anos depois, no vazio de nossa bibliografia histórica, tomei para mim a tarefa de biografá-lo. Prometi a mim mesmo que me desvestiria de quaisquer sentimentos pessoais ou subjetivos por Jânio na hora de esquadrinhar sua personalidade e sua obra política e administrativa. Não precisei; a pesquisa, ao longo dos anos, se encarregou de fazê-lo por mim. Tenho atualmente a mais perfeita noção de sua humanidade, ou seja, a equivalência de suas grandes qualidades e de seus defeitos múltiplos.

Hoje, 25 de janeiro de 2011, meu encontro com Jânio completa 20 anos. No tempo que me separa daquele longínquo 25 de janeiro de 1991, conheci centenas e centenas de políticos, atores, cientistas, escritores, esportistas, compositores, juristas, músicos, professores e etc. Nenhum deles me provocou a emoção de estar frente à frente com Jânio Quadros.
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Jânio - Vida e Morte do Homem da Renúncia
Vol I: "Um Moço Bem Velhinho"
Bernardo Schmidt
Editora O Patativa
350 pgs ilustradas
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Ver também:


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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Charlie Chaplin, Um Rei nos Estados Unidos - Parte 2/2


Uma torneira aberta de idéias, Chaplin passou o ano de 53 acostumando-se ao idioma francês – com o qual tinha grande dificuldade, embora parecesse dominá-lo em Monsieur Verdoux – e à nova vida, na Suíça. Pensou brevemente em ressuscitar o Vagabundo, agora como um homem mais velho, mas abandonou rapidamente o plano, considerando que as acrobacias utilizadas pelo Vagabundo para fugir de seus percalços eram essenciais, e já impossíveis de realizar, embora a forma física do cineasta, aos 64 anos, fosse absolutamente impressionante. Depois pensou em um personagem mais sombrio, na linha de Verdoux. Desta vez quem obstou a iniciativa foi a própria Oona. Quase acidentalmente, em ocasiões sociais, Chaplin acabou roçando ombros com alguns monarcas depostos, que escolhiam a bucólica e tranqüila Suíça para morar. O personagem se materializou em sua mente: um rei. Imaginou imediatamente toda a seqüência inicial, em que o povo invade o palácio atrás do monarca, apenas para descobrir que ele já fugiu, e levou todo o dinheiro do tesouro. Só que ao invés de um país onde pudesse viver discretamente seu exílio, o monarca escolhe os Estados Unidos. Inteligente como sempre foi, Chaplin privou-se de declarações, artigos ou entrevistas desancando os norte-americanos e resolveu desaguar suas mágoas e ressentimentos com o país através de uma comédia.

Bob Hope

Na busca constante por idéias originais, ele encontrou em sua própria experiência norte-americana os subsídios para encher um roteiro de duas horas. Elementos para ridicularizar, dentro do cotidiano norte-americano, em todas as áreas, não faltavam. Faria troça com a imprensa e com o poder alienador da televisão, veículo ainda relativamente novo; brincaria com os incômodos causados pela imensa tela do Cinemascope, o barulho intolerável nas ruas e nos restaurantes, a febre do rock and roll e a mercantilização do indivíduo. Jerry Epstein, um dos assessores de Chaplin, observa em suas Memórias que a cada novo trejeito, gag ou cena que inventava para o rei, Chaplin comentava: “Bob Hope seria perfeito neste papel!”, uma pequena janela para o cérebro de Chaplin, por onde vemos um comediante que ele admirava, embora fossem totalmente diferentes.

Chaplin e o filho Michael
Certo dia seu filho Michael imitou um professor da escola, em Corsier, que costumava iniciar suas broncas calma e pausadamente, e seguia num crescendo até ralhar com as crianças aos berros. A família toda desatou a rir com a imitação e Chaplin viu ali não apenas uma criança com talento para atuar, mas o embrião do personagem Rupert, o menino anarquista, falastrão e sangüíneo, filho de dois comunistas perseguidos pelo Comitê de Atividades Anti-Americanas (CAA). Estava delineada a trama política e dramática do filme. A cereja do bolo veio com a “Escola Progressiva” onde Rupert estuda. A Pedagogia Progressiva, surgida no século XIX, pretendia ensinar as crianças a pensar por si próprias, e não absorver como esponjas qualquer coisa que se lhes dissesse na escola. A filha de Chaplin, Geraldine, estudou durante um tempo em uma dessas escolas, em Los Angeles, e Chaplin considerou o resultado menos do que satisfatório. A escola e o método progressivo, portanto, também seriam ironizadas no filme. Restava agora inventar uma história que encadeasse cenas e personagens, e o cineasta passou os anos de 54 e 55 nessa tarefa. Em 1956 começou a produção de seu novo filme, já com o título de Um Rei em Nova York. O estúdio escolhido foi Shepperton, em Londres.

Vista aérea dos estúdios Shepperton

Foi uma filmagem difícil. Era o primeiro filme que o cineasta realizava em um estúdio que não fosse seu, com o seu próprio staff em 40 anos. Os ingleses não tinham a mesma eficiência que os norte-americanos e não estavam acostumados ao ritmo ou às manias de Chaplin. Ele mudava seus roteiros constantemente e sempre tinha idéias de última hora, o que obrigava os funcionários a trazer cenários e objetos de cena com extrema rapidez nos horários mais inoportunos. Já na Inglaterra, tudo era mais lento e burocrático. Jerry Epstein conta a história de quando Chaplin, na hora de filmar, mudou a posição de uma cadeira e quase provocou uma greve dos encarregados pelo cenário. As regras sindicais beiravam o ridículo, de tão severas, e Chaplin teria que ter pedido para alguém fazer aquilo, ou estaria invadindo a atribuição profissional de outros. O trabalho se arrastou, tudo era moroso, demoradíssimo, e Chaplin teve brigas terríveis com o câmera, por conta de sua lerdeza. Para piorar, Shepperton era um lugar frio e pouco acolhedor. A cantina do estúdio era uma pocilga com um cardápio pobre e sem graça. Aos domingos não havia quem servisse um café a Chaplin. E como se não bastasse, o hotel para onde ele ia, no fim do dia, era o Great Fosters Hotel, em Egham, que mais parecia uma casa mal-assombrada.

Kay Kendall
Chaplin era o rei da Estróvia, Igor Shadov. A escolha do elenco teve um único problema: a linda atriz inglesa Kay Kendall, ex-namorada de Sidney, filho de Chaplin, estava cotada para interpretar a publicitária Ann Kay. Só que quando a viu no teatro, o cineasta a considerou “inglesa demais”. Kay acabou descartada e o papel foi para a também inglesa Dawn Addams, que não era tão talentosa quanto Kay mas de fato tinha uma brejeirice norte-americana mais adequada para a personagem. Idiossincrasias de Chaplin. Dawn era filha de um capitão da Força Aérea Britânica e tivera uma vida bastante rica, para seus curtos 26 anos. Passou a infância na Índia e já adolescente, quando anunciou para a família que desejava se tornar atriz, os pais a despacharam para o Rio de Janeiro. Conformados, a trouxeram de volta à Inglaterra e ela cursou a RADA, Royal Academy of Dramatic Arts. Em 1952, foi uma das jovens que participou dos testes para o papel de Terry, em Luzes da Ribalta. Perdeu o papel para Claire Bloom, mas ficou conhecendo Chaplin e Oona. Em 1954 Dawn se casou com o italiano Vittorio Emanuele Massimo, 19 anos mais velho do que ela, e príncipe do vilarejo de Roccasecca Del Volsci, no Lácio. Chaplin e Oona compareceram e dois anos depois, quando escalava o elenco de Um Rei em Nova York, o cineasta lembrou-se dela.

Dawn Addams em 1954, "starlet and bride"

Uma história deliciosa desse processo é contada por Jerry Epstein. O papel da rainha Irene é pequeno. Ela e Shadov se casaram por um acordo político entre a Estróvia e (aparentemente) a França, e quando o rei é deposto, não vê mais razão para que a rainha permaneça presa a ele pelos laços matrimoniais. Só que se os dois não se amavam quando se casaram, os anos de convivência fizeram surgir uma estima profunda, uma grande amizade, e quando chega o momento de terminar o casamento, a rainha se mostra triste. Quando volta a Paris, depois de um rápido encontro com Shadov em Nova York, a despedida dos dois no aeroporto deixa claro que o fim da necessidade diplomática do casamento deles pode ser, paradoxalmente, o início de um verdadeiro romance. Chaplin tinha a atriz australiana Margaret Johnston em mente para o papel, mas ela estava fazendo Lady Macbeth no teatro. Começaram os testes com inúmeras atrizes na faixa dos 35 a 40 anos. Depois de dias testando uma atriz atrás da outra, Chaplin mandou um aviso a Jerry Epstein pela recepção do hotel Savoy, em Londres: não queria mais ver rainhas. Em uma ironia do destino que poderia tranqüilamente figurar numa das comédias do cineasta, a rainha Elizabeth foi visitá-lo no Savoy e a mensagem, mal-interpretada pelos recepcionistas do hotel, fez com que a rainha desse meia-volta, desconsolada, e se dirigisse à saída. Por sorte algum executivo do hotel se deu conta que havia um engano e correu a tempo de trazer a rainha antes que ela fosse embora, ou seria o fim das boas relações de Chaplin com seu próprio país. No fim o papel foi para a apagada Maxine Audley.

Michael Chaplin
Outra curiosidade é que o pequeno papel de Johnson, o produtor de comerciais que contrata o rei para uma campanha publicitária de whisky, chegou a ser filmado com Sam Wanamaker, um dos muitos norte-americanos que se transferiu para Londres após ver sua carreira sucumbir nos Estados Unidos graças ao macartismo. A cena foi filmada, tudo parecia bem, mas quando assistiu o copião, Chaplin não gostou do resultado e dispensou Wanamaker, convocando o ator Sid James para refazê-la. O resto do elenco é de extrema competência. Jaume, embaixador e braço direito do rei Shadov, é o ótimo veterano Oliver Johnston. Jerry Desmonde, famoso straight man da comédia inglesa, faz o acanalhado Primeiro Ministro Voudel. Até mesmo a atriz Joan Ingram, a socialite Mona Cromwell, brilha intensamente nas poucas cenas em que aparece. Rupert foi um papel que veio a calhar para Michael Chaplin. O menino, que tinha apenas seis anos quando a família chegou à Suíça era quem estava sentindo de maneira mais cruel a saudade dos Estados Unidos. Nascera lá, falava como um norte-americano e não tinha idade suficiente para compreender por que haviam se mudado. Sua relação com o pai, que já não era das melhores, andava ainda mais tensa e interpretar Rupert foi uma boa oportunidade para os dois acertarem os ponteiros de pai e filho. Estava com 10 anos quando Um Rei em Nova York foi rodado.

Com todos os problemas de Shepperton, Chaplin fez uma excelente comédia. E uma comédia como não fazia há muito tempo. Todos os filmes de Chaplin, desde O Garoto, tinham algum tipo de história de amor. Seja de Chaplin pelo garoto, pela bailarina em A Corrida do Ouro, a artista circense em O Circo, a florista cega em Luzes da Cidade, Paulette Goddard em Tempos Modernos e O Grande Ditador, Verdoux e sua esposa paralítica, chegando a Calvero e Terry. Um Rei em Nova York pode ser definido como uma comédia que trata única e exclusivamente das encrencas que o rei Shadov se mete nos Estados Unidos. Seu flerte com Ann Kay não é amor, e sim safadeza; seu romance outonal com a rainha está subentendido e não chega a ocorrer, e sua relação com Rupert é comovente, mas engloba também o elemento político do filme e ambos são assessórios, e não o principal. A sátira já está no momento em que começa o filme e ouvimos as primeiras notas da trilha sonora, que não é nada menos do que uma brincadeira primorosa com o Star Spangled Banner, hino nacional norte-americano. (A seqüência do artigo é um comentário em detalhes sobre o filme inteiro, do início ao fim, portanto há spoilers de todos os tipos. Quem não viu o filme e pretende vê-lo, deve parar aqui)

Chaplin (entre o advogado Jerry Giesler e o oficial de justiça George Rossini) sendo "fingerprinted" em fevereiro de 1944, no processo de paternidade, e o mesmo ocorrendo a Igor Shadov, em sua chegada aos Estados Unidos

Olivier Johnston, Chaplin e Jerry Desmonde
Passada a cena inicial em que o povo vai ao palácio de Shadov e descobre que ele fugiu o dinheiro público, o rei chega aos Estados Unidos em um avião da Pan-American e logo no aeroporto é vítima da agressividade da imprensa, que tanto maltratou Chaplin nos lançamentos de O Grande Ditador, Verdoux e Luzes da Ribalta. Os repórteres o acusam imediatamente de ter fugido com o dinheiro de seu país. Em seguida Shadov é obrigado a deixar suas impressões digitais como se fosse um criminoso comum, fato idêntico ao que lhe aconteceu durante o processo de Joan Barry, e ao qual a imprensa propositalmente teve acesso e fez questão de registrar em múltiplas fotos.

Caviar e sopa de tartaruga, para a compreensão do garçom, que não ouve nada com a barulheira

Chegando ao hotel, ele diz a Jaume que está ansioso para desfrutar da noite jovial e frenética de Nova York. Começam novamente as patadas. Na rua, Shadov e seu embaixador andam espremidos em uma rua movimentada e barulhenta, onde se escutam sirenes, automóveis e uma música hilária de fundo que diz “when I think of a million dollars, tears come to my eyes”, cantada pelo próprio Chaplin. A fim de sair do tumulto os dois entram num cinema onde uma banda de rock toca ao vivo antes do filme começar. É talvez o único momento realmente datado em todo filme, primeiro porque o costume da música ao vivo em cinemas caiu em desuso tempos depois, e segundo porque a intenção era mostrar uma banda de rock e o efeito deletério que o então novo estilo musical tinha sobre os jovens. Só que longe de ser uma banda de rock, o que se vê é uma orquestra, uma big band, e a pergunta de Shadov a Jaume, “do you think this sort of thing is healthy?”, hoje não tem mais qualquer sentido.

Terminada a apresentação da orquestra os dois se sentam e começam a assistir os trailers que precedem o filme. Vem uma divertida crítica à produção cinematográfica norte-americana: os filmes anunciados são todos cretinos ou violentos demais. Assistindo a um tiroteio na imensa tela do Cinemascope, acompanhando os tiros com a cabeça, de um lado para outro, Shadov acaba ficando com torcicolo e os dois saem antes do filme começar. No restaurante em que vão jantar as coisas parecem mais calmas até que o pianista se retira e uma big band começa a tocar ao lado da mesa de Shadov e Jaume. A barulheira da música impede que o velho garçom escute o pedido do rei e Chaplin dá um show de comédia mostrando ao garçom através de mímica que eles querem caviar e sopa de tartaruga. No dia seguinte, logo pela manhã, Jaume avisa ao rei que Voudel sacou o dinheiro deles e fugiu para a América do Sul. Ambos estão falidos, e só o que têm são projetos nucleares para a utilização doméstica de energia atômica, nos quais o rei vinha trabalhando antes de sua deposição. Shadov tem um rápido encontro com a rainha Irene, que vem da França só para vê-lo e volta para lá em seguida.

Chaplin e Dawn Addams

Enquanto isso o rei recebe diversos telefonemas da socialite Mona Cromwell, convidando-o para um jantar, convite sempre declinado por Shadov, que não tem qualquer interesse em entreter a esnobe e ignorante sociedade de Nova York (a qual, por sinal, Chaplin freqüentava). Nas palavras do próprio rei, “The answer is no. I’m not accessible to strangers for the price of a free dinner”. É o fim da primeira parte do filme.

Melancólico com a partida rainha, a quem deu a liberdade para pedir o divórcio, se assim desejasse, Shadov prepara-se para tomar banho. Pela porta que conecta seu banheiro ao do quarto ao lado, ele escuta uma moça cantarolando a ária de uma ópera e pede a Jaume que olhe pelo buraco da fechadura. O obediente Jaume assente e vê a bela Ann Kay. Shadov também olha e se encanta com a moça. Ela finge uma torção no tornozelo e grita por socorro. Chaplin abre a porta, que está destrancada e se oferece para massagear o tornozelo da moça. Ela se apresenta e quando o rei diz seu nome, ela comenta, coquete, que os dois se encontrarão naquela noite, na festa de Mona Cromwell. Shadov inicialmente diz que não pretendia comparecer, mas poderia mudar de idéia se a moça estiver presente. Ela vai se vestir e ele volta para seu banheiro, exultante, e dá um salto com pirueta para dentro de sua banheira (cena que - segundo Jerry Epstein - repetiu dezenas de vezes, sendo que em uma delas bateu a cabeça com força e quase teve que interromper as filmagens). Logo se descobre que Ann Kay se hospedou no quarto ao lado de Shadov com o intuito específico de atraí-lo para a festa da socialite. Kay é publicitária e apresentadora de um programa de televisão chamado “Real Life Surprise Party”, espécie de mistura entre o Big Brother e o programa de Amaury Jr., em que festas com celebridades são mostradas em tempo real e a inserção de comerciais é ao vivo.

Na festa, as referências à ignorância dos americanos são várias. Logo na entrada Shadov olha para um quadro e pergunta ao anfitrião, marido de Cromwell: “Is that an El Greco?”, ao que o outro responde, pensando que o rei se refere a alguém que estava por ali: “No, sir, he’s a filipino”. Shadov explica que está falando do quadro, e a tréplica é ainda pior: “Well, I’m not sure, my wife bought it in an auction sale”. A cena do jantar é maravilhosa. Chaplin senta-se com Cromwell à direita e Ann Kay à esquerda. Brinda polidamente à saúde da anfitriã e não pára mais de flertar com a publicitária. Ela, porém, é obrigada a seguir secretamente o script de seu programa de TV, então cada vez que escuta uma campainha, muda completamente de assunto e começa a fazer um comercial decorado, seja de desodorante ou de pasta de dentes, deixando o rei totalmente perdido. As reações de vergonha e basbaque de Shadov, cada vez que ela pula do flerte descarado entre os dois para o problema de “transpirar em salões abafados” ou a necessidade de conversar com as pessoas “sem o medo de ser repelente” são impagáveis. O clímax da cena está no momento em que ela comenta o propalado talento teatral de Shadov, que teria feito um Hamlet em sua juventude. Cheia de charme, ela convence o rei a recitar o monólogo de To be or not to be para os comensais, tendo, evidentemente, a câmera escondida rolando e preparada para transmitir a performance ao vivo.

"The mad bombastic prince..."

Aqui cabe um parêntese. Chaplin sempre falou de Shakespeare e da poesia shakespeariana com uma indiferença que tocava as raias do desdém. Em sua autobiografia se esmera em acrobacias argumentativas para explicar o porquê de se manter à distância de algo tão cultural, humana e sentimentalmente superlativo. “Eu não finjo que gosto de assistir a peças de Shakespeare no palco”, diz o cineasta, entre outras coisas. “Meu sentimento é eminentemente contemporâneo. Tais representações exigem um tipo especial de panache que não me agrada e pelo qual não tenho o menor interesse. Sinto-me como se estivesse ouvindo um discurso escolar”. Desdém puro. Chaplin poderia ter mudado a frase inicial de seu comentário para “eu finjo que não gosto”. Na minha concepção, Chaplin nada mais era do que um shakespeariano frustrado. Enfronhado com a comédia muda, seja no palco ou na telona, e associado umbilicalmente a ela desde os primeiros passos na vida artística, acabou fechando a porta para o teatro da palavra, o teatro dramático e outras de suas formas. Dramas como Casamento ou Luxo (mesmo não participando como ator) e idéias que não vingaram, como interpretar Napoleão, nos anos 20, me parecem o artista expiando sua vontade frustrada de atingir os píncaros de Herbert Beerbhom Tree (que Chaplin conheceu, admirava profundamente e chegou até a imitar em sketches cômicos na companhia de Fred Karno) e outros grandes atores shakespearianos do início do século XX. Na área da composição de texto também são muitas as vezes em que vemos o tal pathos e o sentimentalismo do bardo em Chaplin.

Jaume assiste o Hamlet de Shadov na televisão
Mas ele não dava o braço a torcer. Teria sido um Hamlet excelente em sua juventude, um Ricardo III brilhante na maturidade e quiçá um Lear perfeito em sua velhice. Mas agora era tarde demais, sua imagem estava indelevelmente ligada à comédia sentimental e isso devia doer. Por isso, em Um Rei em Nova York, Shadov se levanta e diz: “There are many ways of playing the soliloquy of Hamlet. There’s the pale, thoughtful, anemic prince, and there’s the mad bombastic one”, patada clara em Olivier, a epítome do príncipe pálido e pensativo. Alguém na mesa responde “Anything, but anemic”. Shadov então recita o monólogo de maneira furiosa. Na cena, de poucos minutos, se observa o prazer do comediante e o empenho com que interpreta o monólogo. A razão da cena está no fato de que Jaume, que não fôra à festa, acaba assistindo, com absoluta estupefação, Shadov interpretando Hamlet pela televisão do hotel. O humor está todo lá, a cena é divertidíssima, mas também está lá o shakespeariano frustrado – o artista superior que não se contentava em ser um gênio exclusivamente da comédia – utilizando a sátira para dar vazão a seu desejo oculto de figurar no rol dos atores trágicos que encantam a Inglaterra desde o século XVII. Quando volta ao hotel, Jaume revela, indignado, que vira Shadov na televisão e ele se dá conta da tramóia de Ann Kay. Agitado, vai a uma casa noturna com o embaixador, é reconhecido por todos que acabavam de vê-lo na TV e dá dezenas de autógrafos, mostrando já naquela época o poder televisivo de criar celebridades instantâneas. Fim da segunda parte.




A fama conseguida involuntariamente no programa de Ann Kay faz com que Shadov seja perseguido durante uma semana por agentes de publicidade, interessados em contratá-lo para comerciais de TV. Ann Kay vai ao hotel e é tratada com frieza por Shadov. Não obstante ela lhe entrega um cheque de 25 mil dólares mandado por Mona Cromwell, por sua participação no jantar. Ele rasga o envelope, mas quando se dá conta de que o dinheiro dele e de Jaume acabou, pega os pedaços no cesto de lixo e ordena ao embaixador que telefone à Mona Cromwell e agradeça pelo cheque. A fim de melhorar um pouco sua imagem pública depois de aparecer na festa de Cromwell, Shadov faz uma visita de cortesia a uma Escola Progressiva. Ao invés de garotos exercitando sua sensibilidade e seus talentos, o rei vê um bando de moleques mal-criados e indisciplinados. O menino desenhista o presenteia com um desenho obsceno. O escultor tem maus-bofes e ignora o rei, e o cozinheiro faz doces e mete a mão na massa tranqüilamente, mesmo depois de ter enfiado o dedo no nariz. Shadov assiste a tudo isso horrorizado e por todo caminho é azucrinado pelas crianças, que lhe atiram bolinhas de papel com zarabatanas. É apresentado ao menino Rupert, que está sozinho lendo um livro de Karl Marx.

Pai e filho: o maravilhoso embate entre
 Shadov (Chaplin) e Rupert (seu filho Michael)
Shadov fica intrigado e pergunta se o menino é comunista. O garoto responde, seco: “Do I have to be a communist to read Karl Marx?” O rei a princípio gosta da irreverência do menino e os dois começam a conversar sobre formas de governo, só que o assunto empolga Rupert e ele despeja uma verdadeira cantilena anarquista sobre o rei, impedindo-o de falar. Era uma cena importante, porque Chaplin desejava transmitir a um tempo 1) o ridículo de toda esse debate entre capitalismo e comunismo, e 2) a premência de se permitir o debate sobre o assunto e a liberdade ideológica, justamente para que a juventude não se perdesse no radicalismo de Rupert. Michael Chaplin foi brilhante em seu papel e sua esgrima verbal com o pai é antológica. Infelizmente há um problema: Michael decorou os dois papéis, o dele e o de Shadov, para não se perder entre as deixas, já que o diálogo é muito rápido. Conseqüentemente, há takes em que vemos Rupert murmurar as réplicas de Shadov, defeito que não retira o brilho da cena, mas teria sido facilmente evitado na edição ou no enquadramento individual de ambos, em algumas partes do diálogo. Enquanto os dois discutem, os outros garotos roubam o chapéu de Shadov e o transformam em um bolo, no qual o rei se senta, quando desiste de tentar falar com Rupert. O rei vai embora com a pior das impressões tanto da escola quanto dos alunos.

"Thank you, Melrose, Royal Crown Whisky I always enjoy"...

Às voltas com a falta de dinheiro, o rei reata sua amizade com Ann Kay e seus métodos pouco sutis de publicidade. Ele acaba aceitando o contrato para fazer um comercial do “Royal Crown Whisky”. É outra das cenas memoráveis do filme. Durante o ensaio tudo corre às mil maravilhas, Shadov dá facilmente as falas idiotas de seu texto, mas quando a transmissão – ao vivo – começa, ele engasga com a bebida e começa a estrebuchar em frente às câmeras. Ao contrário do que se podia imaginar, o comercial se torna um sucesso absoluto, o público acredita que aquele havia sido um sketch cômico para vender whisky e Shadov se torna um disputado garoto-propaganda.

Lágrimas de riso: Shadov e sua
tenebrosa plástica rejuvenescedora
Outro de seus contratos é para anunciar hormônios, o que dá ensejo para uma das melhores idéias do filme. Ann Kay se queixa de que Shadov não tem o rosto suficientemente jovem para anunciar hormônios, e sugere que ele faça uma plástica para eliminar papadas, bolsas debaixo dos olhos, e coisas assim. A idéia veio de uma situação enfrentada por Jerry Epstein. O assessor de Chaplin era horrendo, tinha um nariz enorme mas caiu na conversa de um ator que prometia colocá-lo em seu próximo filme se ele fizesse uma plástica no nariz. Jerry quase aceitou, mas quando o cirurgião começou a fazer o molde pré-operatório do nariz com gesso, ele teve um ataque de pânico e fugiu do consultório.

Chaplin levou sátira e mensagem à perfeição. No plano cômico, sua plástica é das coisas mais maravilhosamente ridículas e hilárias já vistas no cinema. Seu nariz é empinado e seu lábio posterior fica erguido, o que o faz parecer um rato. Ann Kay dá um berro e quase desmaia quando o vê pela primeira vez, assim como Jaume, que sai correndo, aterrado, com o braço cobrindo o rosto. Além disso, ele é proibido de rir pois a operação é recente e há o perigo dele soltar os pontos e desgrudar todo o tenebroso processo cirúrgico que escondeu suas imperfeições. Só que Shadov fica deprimidíssimo com sua aparência e Ann Kay tem a desastrada idéia de levá-lo a uma casa noturna onde há performances de cantores e comediantes, para animá-lo. O sketch cômico na casa noturna é Chaplin em seu elemento. Um operário apalermado e atrevido precisa colar alguns papéis de parede e acaba infernizando a vida de um casal que está por perto. A cena é muda, o operário é um Carlitos contemporâneo e todos se divertem. Shadov assiste sério, a princípio, mas aos poucos vai se rendendo ao humor. Só que não pode rir, então toma o máximo cuidado para não gargalhar, o que se torna impossível, com o desenrolar do sketch. Ele acaba perdendo o controle e gargalha, soltando todos os pontos da operação plástica. De volta ao cirurgião, readquire seu rosto antigo e enrugado, com o maior prazer. Fim da terceira parte.


A operação plástica de Shadov – até onde sei – foi a primeira vez em que um cineasta ridicularizou abertamente a necessidade de permanecer jovem e ter um rosto perfeito, no cinema. Correções de nariz e de dentes eram comuns já naquela época (estrelas como Marilyn Monroe só se tornaram verdadeiramente bancáveis depois de passar pelo bisturi) mas ninguém nunca se atrevera a apontar o holofote para isso. Chaplin, como sempre, foi o primeiro.

A quarta e última parte do filme mostra o reencontro de Shadov e Rupert. O rei vê o menino em frente a seu hotel, em meio a uma nevasca, ensopado e tremendo de frio. Ele diz, inicialmente, que “se formou”, mas Shadov percebe a mentira e leva o menino para seu quarto, no hotel. O menino então confessa que fugiu da escola porque queriam interrogá-lo sobre seus pais. Perguntado se é comunista, Rupert afirma que é. Shadov recorda que o menino dissera no encontro anterior de ambos que não gostava de nenhuma forma de governo, considerando-as “an official form of antagonizing the people”. O garoto então dá uma resposta lapidar, perfeitamente coerente com o espírito de caça às bruxas que contaminava o país: “I do, but I’m so sick and tired of people asking me if I’m this, if I’m that, so then if it pleases everybody, I’m a comunist!” Para não despertar suspeitas sobre sua presença no quarto de Shadov, o menino diz aos funcionários do hotel que é sobrinho do rei. E é nesse ínterim que a comissão atômica faz uma visita ao monarca, para conhecer seus planos de utilização da energia nuclear. Shadov e Jaume vão ao banco buscar os planos e os três velhos da comissão entram no quarto de hotel e ficam sozinhos com Rupert, exatamente o que o rei e seu embaixador queriam evitar, conhecendo o pavio curto do menino para discussões políticas.

Acontece o que se imagina. Um dos velhos pergunta inocentemente sobre a educação do menino, que ele acredita ser sobrinho do rei, e Rupert inventa uma história hilária sobre a briga do rei e de seu pai, e as circunstâncias que o levaram a ficar nos EUA, “the land of the free and the home of the brave”. Como sempre, se empolga em meio à sua retórica inflamada e faz um verdadeiro libelo contra o Comitê de Atividades Anti-americanas: “But today that freedom is threatened. Commitees are searching men’s minds, are controlling their thoughts, and those who have the courage to stand up for their rights are boicoted, lose their jobs and are left to starve!” Falas que poderiam ser de Chaplin, todas elas, e Michael dá um show de interpretação: “They’re condemned without trials! Such procedure debases the legality of our courts which says that no state may deprive any person of life, liberty, freedom of speech without due process of law!” Quando Shadov e Jaume finalmente voltam com os planos, Rupert está de pé, como um prisioneiro, entre os velhos, sendo sabatinado. Um deles joga-lhe a deixa perfeita, dizendo que o acusaria perante as autoridades, se ele não fosse um garoto. Chaplin lava sua alma e a alma de todos os perseguidos pelo macartismo e pelo CAA através de Michael, que se supera na réplica, sensacional: “All right, report me! Make me give names! Make a snivelling stool pigeon out of me! Brain wash me! But you can’t! They couldn’t brain wash the signers of the declaration of independence, and you can’t brain wash me!

Por essas últimas duas cenas – na casa noturna e no quarto de hotel de Shadov – Um Rei em Nova York já mereceria figurar não só entre as melhores comédias de todos os tempos, mas entre os grandes filmes políticos feitos até então. Assim como foi em O Grande Ditador, Chaplin teve a coragem de espicaçar o CAA enquanto ele ainda existia e continuava fazendo vítimas nos Estados Unidos.

Audiência da Comissão de
Atividades Anti-Americanas

Quando os velhos da comissão atômica vão embora (sem fechar qualquer negócio com Shadov, pois já tinham planos semelhantes), o rei e Rupert vêem pela televisão que os pais do garoto foram presos por não revelar nomes no CAA. Ao mesmo tempo um funcionário da escola localiza Rupert no hotel do rei e vai buscá-lo. Shadov promete ir visitar o menino no dia seguinte. No meio tempo, a mídia descobre que o filho do casal recentemente preso estava escondido no hotel do rei e, sem notícias interessantes para veicular, inventam que Shadov tem ligações com os comunistas. O rei é imediatamente intimado a comparecer à CAA.

Pequeno equívoco: nos jornais o nome do rei é
grafado com H depois do A, ao contrário dos
 créditos finais do filme, que trazem
 simplesmente o nome "Shadov"
É a última patada de Chaplin nos norte-americanos: a caminho do tribunal, Shadov prende o dedo sem querer em uma mangueira e é obrigado a levá-la consigo até lá, para não se atrasar. Os guardas na ante-sala vêem a mangueira solta e pensam que há um incêndio no tribunal. Conectam a mangueira a uma torneira e Shadov dá um banho nos inquiridores, transformando o CAA naquilo que de fato era: um circo.

O mal-entendido é desfeito e Shadov é inocentado. De qualquer forma, ele resolve ir embora do país antes que mais alguma maluquice aconteça. Em seu último encontro com Ann Kay, a publicitária pede que ele fique. Shadov responde: “It’s too crazy here”. Kay replica por todos os norte-americanos que não compactuavam com a nojeira do CAA: “Don’t judge by what’s going on today, it’s just a passing fase, very soon it will all be over”. Ele decide ir para Paris encontrar-se com a rainha, que não pediu o divórcio, no fim das contas. Mas antes cumpre sua promessa de visitar Rupert na escola progressiva. É a cena mais marcante e dolorosa do filme.

Um dos diretores conversa com Shadov antes do garoto entrar e comenta que Rupert está bem melhor, agora que os pais foram libertados, o que significa que o menino cooperou com as autoridades e deu os nomes que os pais se recusavam a dar. Rupert entra silencioso e abúlico. As autoridades não conseguiram fazer uma lavagem cerebral, mas quebraram seu espírito. Ele abraça Shadov aos prantos, e o rei promete que mandará buscar a ele e a seus pais assim que aquele clima horrendo de perseguição terminar. A cena final mostra Shadov e Jaume dentro do avião, indo embora. Chaplin pretendia fazer um take da Estátua da Liberdade, vista de dentro do avião, se distanciando cada vez mais, até desaparecer. Uma idéia boa, que Chaplin preferiu descartar. O filme inteiro era um grito pela liberdade ideológica e de expressão; não era necessário repisar a coisa, no fim.


Um Rei em Nova York foi lançado em setembro de 1957 na Inglaterra e mais um punhado de países na Europa. O sucesso foi relativo. Executivos da United Artists se recusaram sumariamente a distribuí-lo nos Estados Unidos. Na Inglaterra a crítica foi favorável, mas infelizmente o público inglês não tinha uma noção tão profunda do que era o CAA. Não queriam saber. Eram questiúnculas norte-americanas às quais os britânicos davam de ombros. À imprensa, Chaplin fez questão de declarar: “Meu filme não é político. É uma sátira. Um palhaço satiriza”. O renomadíssimo dramaturgo J. B. Priestley não regateou elogios ao cineasta: “Me parece que Chaplin conseguiu algo muito difícil, como já fizera em Tempos Modernos e O Grande Ditador. Ele transformou palhaçadas em sátira social e crítica, sem perder sua extraordinária habilidade de nos fazer rir”. O poeta C. Day Lewis foi outro a tecer belíssimos elogios ao filme. Um Rei em Nova York, porém, só gozou da fama que merecia, mesmo, quando foi relançado, já na década de 70, inclusive nos Estados Unidos. Jerry Epstein foi quem descreveu melhor a situação: “Os jovens [na época do relançamento] ficaram surpresos com a audácia do filme. Não o acharam controverso, só engraçado. Chaplin simplesmente estava 20 anos à frente de seu tempo”.

Dawn Addams, anos depois

Seja pela controvérsia, pela dificuldade de encontrar um outlet adequado para suas novas idéias, ou porque já estava com 68 anos e uma penca de filhos pequenos, Chaplin passou os anos seguintes relançando seus filmes mudos com uma nova trilha sonora composta por ele, e só voltaria a escrever e dirigir dez anos depois, em A Condessa de Hong Kong.

Dawn Adams se separou do príncipe Vittorio Massimo em 1958. Teve uma carreira apagada e morreu de câncer em 1985. Oliver Johnston, o embaixador Jaume, morreu em 1966 e um de seus últimos papéis foi na Condessa de Hong Kong. Jerry Desmonde se suicidou em 1967. Maxine Audley trabalhou até o fim da vida, em 1992.

Michael, hoje em dia
Michael Chaplin viveu, em Um Rei em Nova York, seu flerte com a fama cinematográfica. “O momento mais feliz de minha infância”, disse ele recentemente, “foi quando tive a chance de trabalhar com meu pai no filme Um Rei em Nova York nos estúdios Shepperton. Eu tinha apenas dez anos mas foi a primeira vez que senti ter compartilhado algo com meu pai. Ele trabalhou comigo, ensaiou minhas falas e me dirigiu. Fomos próximos, um do outro, por um breve momento”. As relações com o pai degringolaram poucos anos depois. É preciso manter em perspectiva que quando Michael estava com 15 anos, em plena adolescência, Chaplin tinha 72. Como o próprio Michael comentou, sobre uma pescaria dos dois, “era tarde demais para fingir que éramos melhores amigos”. Aos 16 anos ele fugiu de casa e se casou, sem a benção paterna. Em 1966, aos 20 anos, sem um puto no bolso, vivendo como um hippie, em meio a nuvens de maconha, o psicodelismo, uma carreira musical estéril e toda a maluquice da época, escreveu um livrinho chamado Não podia fumar maconha no gramado do meu pai, dando alguns detalhes sobre crescer na família Chaplin. O livro era um reles caça-níqueis e não marcou época. Hoje, aos 64 anos, casado pela segunda vez e pai de sete filhos, Michael cuida do espólio paterno e tem uma visão bem mais madura sobre Chaplin: “Todos os ressentimentos e arrependimentos que tive já passaram. Por muitos anos tive raiva dele mas hoje sei que realmente o amo. Não era fácil viver com ele mas ele era meu pai e é só o que importa. Eu deveria tê-lo amado mais”.

Um país pede desculpas: Chaplin recebe oscar honorário em 1972

No fim dos anos 50, Eisenhower chegou a sondar amigos e assessores de Chaplin sobre a possibilidade dele voltar aos EUA. Ciente do fato, o cineasta declinou quaisquer convites. Uma década mais tarde os convites reapareceram. O macartismo era página virada, uma vergonha para os norte-americanos e Chaplin, octogenário, começava a assumir foros de lenda viva. Seus filmes antigos, restaurados e relançados com as trilhas sonoras que ele compunha, vinham conquistando toda uma nova geração de admiradores. Era hora dos EUA darem o braço a torcer e pedir desculpas ao mestre pioneiro. Ele aceitou receber uma homenagem no Lincoln Center, em Nova York. Era a primeira vez que pisava em NY em 20 anos. Foi uma gritaria. Chaplin foi recebido como um semi-Deus. Aos gritos de “Charlie, we love you!!”, ele respondeu, hilário, “They loved Kennedy too...”. Na última hora aceitou o convite para receber um Oscar, na cerimônia daquele ano. Em abril de 1972, a academia lhe deu um prêmio honorário, “pelo efeito incalculável que ele tem alcançado em transformar os filmes na forma de arte deste século”. Em suas memórias, Claire Bloom conta ter ouvido de Oona O’Neill a história de que enquanto recebia o Oscar e a inaudita ovação de vários minutos, Chaplin dizia para si mesmo: “Fuck you, and fuck you, and fuck you”.

Curioso que os ingleses também foram, de certa forma, omissos em relação a Chaplin. Seu título de sir – pouquíssimo, considerando sua contribuição para a humanidade – só veio em 1975, quando ele já estava numa cadeira de rodas. Não veio antes porque a coroa britânica teve medo de premiar Chaplin nos anos 30 ou 40, quando ele esteve às voltas com escândalos de paternidade e envolvimento com mulheres menores de idade.

Chaplin morreu em 25 de dezembro de 1977, aos 88 anos. Oona morreu apenas 14 anos depois, em 27 de setembro de 1991, aos 66 anos.
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BIBLIOGRAFIA:

PARTE 1 deste artigo
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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Charlie Chaplin, Um Rei nos Estados Unidos - Parte 1/2


Amigos têm-me perguntado como cheguei a despertar contra mim toda essa aversão dos americanos. Meu enorme pecado foi, e ainda é, o de ser um independente. Embora não pertença ao rol dos comunistas, recuso-me a entrar na trilha dos que os odeiam. Isso, decerto, chocou a muitos, inclusive o pessoal da Legião Americana. Não sou contra essa instituição em seus verdadeiros propósitos construtivos, (...) mas, quando os legionários abusam dos seus legítimos privilégios e, sob a capa do patriotismo, utilizam a influência que têm para oprimir outras pessoas, então desrespeitam os próprios fundamentos do governo americano. Tais super-patriotas poderiam construir células capazes de transformar os Estados Unidos numa nação fascista. (Chaplin, 1964)

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Desde a época em que era primordialmente um romancista, Carlos Heitor Cony não negava sua intensa admiração por Charlie Chaplin. Escreveu textos sobre o cineasta, críticas, análises e até um pequeno ensaio, em 1967, que juntou a uma série de artigos de outros autores, brasileiros e estrangeiros, lançando-o com o nome de Charles Chaplin, pela Civilização Brasileira. A parte mais importante do ensaio é a filmografia comentada, cujo mérito está no fato de que o acesso aos filmes de Chaplin, na época, era limitado e as cópias geralmente estavam deterioradas. Cony oferece a ficha técnica de cada um deles, uma sinopse e, dependendo da importância do filme, um comentário. Sobre Um Rei em Nova York, por exemplo, logo após a ficha técnica, eis o que diz o escritor:

Comentário: O argumento do filme é de fácil exposição: o rei da Estróvia é deposto por uma revolução e emigra para os Estados Unidos. Na hora da fuga, o ex-ministro da Fazenda foge com os dinheiros públicos e o rei desembarca pobre em Nova York. Para se sustentar, termina aceitando o único trabalho que lhe é oferecido: servir de moço de propaganda. Há um menino que prega idéias socialistas e o rei acaba afeiçoando-se ao garoto e o levando, quando regressa à Europa.

De uma forma geral, podemos dizer que o filme decepcionou a muitos. Como construção, tem o mesmo plano elementar das obras de Chaplin. Os “gags” são bons, sem serem brilhantes. É um filme sem emoção, mas com aquilo que se convencionou chamar de mensagem. Chaplin já estava, há anos, fora dos Estados Unidos. Levara suas chagas e não esquecia seus ressentimentos. Como Arthur Miller em “The Crucible”, ele procurou denunciar a opressão macartista que dominou um largo período da vida norte-americana. Nesse ponto, o seu filme se explica e, ao mesmo tempo, se justifica. (págs. 118/19)

Carlos Heitor Cony
“De uma forma geral” quem decepcionou mesmo foi Cony, porque seu comentário não é apenas superficial, mas apresenta erros absurdos que nos fazem perguntar se ele de fato viu o filme, ou se fez como Paulo Francis, que costumava julgar filmes sem tê-los visto: de onde foi que ele tirou a idéia de que o rei Shadov leva o menino Rupert com ele quando regressa à Europa? Toda a última seqüência do filme é para mostrar a despedida dos dois, em que o rei diz, especificamente: “When all this histeria is over, I’ll have you and your family come and visit me”, ao que o garoto pergunta “you promise?”, e o rei responde, “I promise”. Como se isso não bastasse, Cony diz que “na hora da fuga, o ex-ministro da Fazenda foge com os dinheiros públicos”, o que também está flagrantemente errado; Voudel é o Primeiro Ministro de Shadov, e não ministro da Fazenda, e ele não foge “na hora da fuga”, redundância triste, e sim no dia da chegada do rei deposto aos Estados Unidos, durante a noite. A comparação com The Crucible é válida na medida em que ambas as obras denunciam o macartismo, mas Chaplin não usa – a exemplo de Miller – um episódio histórico para denunciar algo atual; ele vai na jugular do nefasto Comitê de Atividades Anti-Americanas, ridicularizando-o diretamente, sem subterfúgios, como já fizera com Hitler e Mussolini em O Grande Ditador, revelando sua extraordinária e inigualável coragem.

No mais, dizer que “os gags são bons, sem serem brilhantes”, ou que “é um filme sem emoção” são opiniões pessoais de Cony e acredito serem conseqüência do fato de que Um Rei em Nova York prioriza a sátira sobre a tônica abertamente sentimental dos outros filmes de Chaplin. Com exceção dos dramas Casamento ou Luxo e Luzes da Ribalta, e da comédia de humor negro Monsieur Verdoux, as comédias do gênio do cinema são sempre de superação das adversidades e equilibram a comédia com a melancolia, a pobreza, a injustiça, a compaixão ou a tristeza natural da condição humana. Já em Um Rei em Nova York, a sátira está em primeiro lugar, e em segundo vem o drama de Rupert, o que não quer dizer, em absoluto, que o filme seja desprovido de emoção. Esse desconhecimento sobre Um Rei em Nova York, entretanto, pode também ser debitado ao próprio Chaplin, que não dedicou ao filme, de 1957, uma linha sequer de sua autobiografia, lançada em 1964. Com isso, cristalizou-se a noção de que se trata de um filme “menor” de Chaplin, epíteto que pode ser jogado sobre A Condessa de Hong Kong, mas não no filme em questão.

A simples verdade é que me parece haver um problema de timing sobre os últimos filmes de Chaplin, em que fatores externos acabaram atrapalhando o lançamento de todos eles, empanando-lhes o brilho por esta ou aquela razão. Este modesto artigo em duas partes faz uma gênese das circunstâncias que levaram Chaplin a ser expulso dos Estados Unidos e os primeiros anos de sua vida Europa, durante o processo de criação e lançamento de Um Rei em Nova York.

*       *       *

Chaplin não tinha como evitar de ser uma das figuras mais polêmicas de todos os tempos. Seu personagem, o “Vagabundo” (“Carlitos”, no Brasil), representava a vingança dos fracos e oprimidos contra um sistema que os mantinha há séculos no subsolo da pirâmide social, e os Estados Unidos eram o país perfeito para satirizar, já que foram sempre um exemplo da aplicação do capitalismo no último volume. O país escolhido por Charlie para montar seu império cinematográfico, por sua vez, estava disposto a agüentar a ocasional alfinetada do cineasta, desde que ele pagasse seus gordos impostos em dia. Filmes como Ombro, Armas! eram vistos muito mais como comédias inocentes do que como declarações de cunho anti-bélico, e em última análise, ninguém imaginaria que um indivíduo tão rico e famoso perderia tempo intrometendo-se em assuntos políticos. Ele era apenas um estrangeiro que produzia riqueza nos Estados Unidos e como tal, não convinha incomodá-lo. Quando veio Tempos Modernos em 1935 e Chaplin maravilhou o mundo com a famosa gag da bandeira vermelha que cai de um caminhão, é apanhada pelo Vagabundo, que começa a agitá-la a fim de chamar a atenção do motorista, e acaba involuntariamente liderando uma passeata comunista, a reação do governo foi de riso. Nem mesmo os norte-americanos seriam tão idiotas de encontrar qualquer subtexto comunista em uma piada tão óbvia.

Acima, Mussolini e Hitler e abaixo,
a maravilhosa sátira com Hynkel (Chaplin)
 e Napaloni (Jack Oakie)

No ano em que eclodiu a Segunda Guerra, Chaplin já estava filmando O Grande Ditador, paródia violentíssima, genial, que mostrava Hitler e Mussolini como dois palhaços que deixavam ao talante de sua cretinice o destino de seus países e da Europa. Neste filme Chaplin fez uma provocação dupla: além de ser um barbeiro judeu – dentro de um país conhecido pelo preconceito, pelo racismo e pelo anti-semitismo – ele ainda encerrava o filme com um longo discurso pacifista dizendo coisas como “soldiers, in the name of democracy, let us all unite!” A princípio, quando o filme foi lançado no segundo semestre de 1940, a reação foi positiva, primeiro porque os Estados Unidos pendiam para o lado dos Aliados e ficaram satisfeitos de ver Hitler e Mussolini sendo ridicularizados publicamente, e segundo porque a indústria cinematográfica estava (e ainda está) quase que integralmente na mão dos judeus. Só que passado o primeiro momento, ficou um gosto amargo na boca dos anti-semitas e dos capitalistas mais reacionários. Determinados órgãos da imprensa nova-iorquina (entre eles o Daily News) denunciaram as tintas comunistas no discurso de Chaplin. Concomitantemente, ele teve um encontro com o dono do The New York Times, Arthur Sulzberger e com o ex-presidente Herbert Hoover. Hoover – presidente dos Estados Unidos durante a crise da bolsa de NY, entre 1929 e 1933 – falou da necessidade de enviar suprimentos com urgência à Europa ocupada. Chaplin concordou, desde que “a distribuição dos víveres e medicamentos pudesse ficar a cargo dos judeus”, num cuidado claro para que tais provisões não caíssem nas mãos dos nazistas. Hoover se fingiu de surdo nas primeiras duas vezes em que Chaplin disse isso. Na terceira ele não teve mais como fingir e respondeu, simplesmente: “Oh, isso não seria possível”. Em menos de uma semana, portanto, Chaplin foi para o radar do FBI como um comunista em potencial, e para a lista de personas non gratas de toda a (enorme) facção anti-semita dentro da imprensa. Não obstante, O Grande Ditador foi um sucesso avassalador e uma grande bilheteria, que só não foi maior porque acabou proibido em todos os países que faziam parte do Eixo, na Europa.

Não foi até que Pearl Harbour fosse bombardeado, em dezembro de 41, que o comunismo se tornou o calcanhar de Aquiles de Chaplin. No primeiro semestre de 1942, os russos guerreavam para impedir a entrada dos nazistas em Moscou, e clamavam pela formação de uma segunda frente européia que incluiria os norte-americanos. Nos Estados Unidos a reação era de pouca simpatia; ser russo era ser comunista, e ser comunista era comer criancinhas, de modo que a carnificina entre nazistas e russos era algo que os norte-americanos viam com deleite, sem entreter qualquer necessidade de participar. Chaplin, é evidente, via as coisas pelo prisma pacifista e não generalizava; para ele, a segunda frente era uma contingência humanitária, uma obrigação de todos os povos em solidariedade a um povo – o russo – que estava enfrentando o mal maior, que era Hitler e o nazismo. Em maio de 42, realizou-se a reunião de um tal “Comitê Norte-Americano para o Socorro de Guerra Russo” em São Francisco e o embaixador norte-americano em Moscou, Joseph L. Davies, falaria em prol da formação da segunda frente.

Na última hora o embaixador ficou com laringite e não pôde comparecer. O presidente do Comitê convidou Chaplin para substituí-lo. O cineasta aceitou e diante de um salão com dez mil pessoas, a quem chamou de “camaradas”, arrancando risos e aplausos, falou durante 40 minutos. “Os russos são nossos aliados”, disse Chaplin; “não combatem apenas para defender o seu sistema de vida, mas também o nosso, e conheço bem os americanos para saber que eles querem participar da peleja”. Pensando ingenuamente no bem da humanidade e em expressar-se com sinceridade, Chaplin não tinha noção das bombas de nêutrons que estava lançando pela boca. “Existe algo que Stalin está desejando, que Roosevelt tem pedido e que devemos todos apoiar... a abertura imediata da segunda frente!” O público aplaudiu, frenético, por minutos a fio. No futuro Chaplin declararia: “Creio que foi então que tiveram início as minhas contrariedades”. Dois meses depois veio o convite de um grupo de sindicatos de Nova York para mais um pronunciamento, desta vez no Madison Square Garden. Aparentemente o presidente compartilhava da iniciativa e no grande auditório, em 22 de julho de 1942, estiveram presentes o prefeito La Guardia, o vice-governador, senadores e outras figuras de igual ou maior envergadura.

Chaplin no Carnegie Hall
Chaplin não compareceu, mas seu discurso de 14 minutos, ao telefone, foi transmitido pelas caixas de som durante o evento. Mais nitroglicerina: “A sorte das Nações Aliadas está nas mãos dos comunistas”. “Os russos necessitam desesperadamente de ajuda. Pleiteiam a abertura de uma segunda frente. (...) Se os russos perderem o Cáucaso, será a mais dura de todas as provações para os Aliados”. O nome de Chaplin começou a aparecer em listas indesejáveis. Em outubro ele recebeu um convite para falar, junto a outros artistas, sobre a segunda frente no Carnegie Hall, também em Nova York. A princípio considerou que já fizera o suficiente e não havia mais necessidade de participar desses comícios. Só que dias antes, jogando tênis com Jack Warner, o empresário lhe disse, claramente: “Não vá”. O cineasta quis saber por quê. Warner foi lacônico: “Siga o meu conselho, não vá”. Foi o que bastou para que Chaplin aceitasse. Não admitia ser manipulado ou intimidado por quem quer que fosse. A imprensa mais uma vez deu larga cobertura ao evento. As conseqüências foram diametralmente opostas: ao mesmo tempo em que passou a ser convidado a todo e qualquer comício sobre a participação dos norte-americanos na guerra, sumiram os convites para freqüentar a sociedade nova-iorquina e suas “suntuosas casas de campo”. Em sua autobiografia Chaplin analisa seu próprio comportamento naquele período em que cutucou os leões anti-semitas e anti-comunistas que habitavam os EUA:

Via-me agora colhido por uma tormenta política. Principiei a conjecturar que razões me levaram a isso... até onde fôra eu impelido pelo ator que havia em mim e pelo influxo do público presente? Ter-me-ia lançado a essa aventura quixotesca se não houvesse feito um filme anti-nazista? Ou seria uma sublimação de todos os meus exasperos e de toda a minha ojeriza ao cinema falado? Suponho que isso tudo contribuiu, porém o motivo mais poderoso foi o meu ódio e o meu desprezo pelo sistema nazista.

Joan Barry

No primeiro lustro da década de 40 a vida de Chaplin foi virada do avesso. Em meados de 1941 conheceu uma maluquete chamada Joan Barry, com quem começou a ter um caso. Não resisto de transcrever aqui a maneira cheia de eufemismos hilários que o cineasta utilizou em sua autobiografia para descrever seu tesão pelos seios enormes da moça: “A Srta. Barry era uma mulher de vinte e dois anos, bonitona, de tipo graúdo, boa compleição, com as rotundidades do busto extrarodinariamente desenvolvidas e realçadas pelo excessivo decote da roupa de verão. Isso (...) despertou a minha curiosidade lúbrica”. Além das rotundidades, Chaplin viu também potencial dramático em Barry e comprou os direitos da peça Shadow and Substance, de Paul Vincent Carrol, a fim de roteirizá-la e transformá-la num filme que seria protagonizado por ela. Começou a trabalhar no roteiro, só que a “atriz” não tardou em mostrar um misto de oportunismo e desequilíbrio mental. Quando não era convidada a passar dias (ou noites) na casa de Chaplin, invadia sua propriedade, quebrava janelas, fazia cenas e dava escândalos. Depois de um ano da tumultuada e esporádica relação, Chaplin se cansou. Despediu Barry e engavetou o roteiro de Shadow and Substance.

Chaplin e Welles, no comício do Carnegie Hall
No meio tempo, o comício da segunda frente no Carnegie Hall o fez estreitar relações com Orson Welles, também presente à reunião. Este comentou, tempos depois, que gostaria de dirigir Chaplin em um filme-documentário sobre o assassino francês Henri Landru (1869/1922), que assassinara mais de dez esposas. Chaplin gostou da oferta a princípio, porque andava cansado de escrever, dirigir e protagonizar seus filmes, mas pouco depois lhe veio à cabeça a idéia de Henri Verdoux e todo o mote de um filme sobre um “barba-azul”, baseado em Landru. Declinou a oferta de Welles, arregaçou as mangas e mergulhou no roteiro de Monsieur Verdoux. Welles ficou putíssimo, exigiu 5 mil dólares e seu nome nos créditos como autor da “idéia” de fazer um filme sobre o assunto, e em entrevistas posteriores declarou, despeitado, que Chaplin se “acovardara” diante da proposta, e que ele (Welles) teria feito um filme melhor, se Chaplin o tivesse deixado dirigir.

Chaplin e Oona, logo depois de casados

Os fatos começaram a se precipitar. No início de 43, Chaplin conheceu a jovem Oona O’Neill, de 18 anos incompletos, atriz amadora e filha do célebre dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill. Apesar da diferença de 35 anos entre os dois, eles começaram a namorar e Chaplin logo cogitou ressuscitar Shadow and Substance, desta vez para Oona. Casaram-se em junho, só que a alegria durou pouco. Em meados do mesmo ano, Joan Barry, grávida, entrou na justiça acusando Chaplin de ser pai do filho que ela estava esperando. Chaplin contratou duas feras da advocacia, Loyd Wright e Jerry Giesler, e as partes fizeram um acordo: Joan Barry receberia uma quantia fixa em dinheiro para sustar o processo até que a criança nascesse, quando então um exame de sangue seria feito na criança, em Barry e em Chaplin. Era uma espécie de pré-história do exame de DNA, onde a inocência do acusado se comprovava se no sangue da criança “houvesse elementos que não correspondessem nem ao da mãe nem ao do suposto pai”, ou seja, vinham de um terceiro. Chaplin tinha, segundo ele mesmo contou, uma chance em catorze.

Chaplin e Jerry Giesler
Barry aceitou, Chaplin deu sua versão dos fatos no tribunal em setembro de 43 e no mês seguinte nasceu a criança. À esta altura o governo norte-americano abandonou qualquer sutileza e resolveu iniciar sua desforra contra os pronunciamentos de Chaplin sobre a Rússia, meses antes. Considerando que a ação de paternidade era pouco, o governo aproveitou que Chaplin havia viajado uma ou duas vezes com Barry e indiciou-o por transgredir o “Decreto Mann”, uma lei jurássica, de 1910, que tratava do transporte de prostitutas de um estado a outro. A batalha judicial, que já era suja, ficou sórdida. Em fevereiro de 1944 veio a prova cabal, endossada por três médicos, de que o tipo de sangue da criança era totalmente incompatível com o de Chaplin. Pelo acordo estipulado entre ambas as partes, o assunto se encerrava ali. O governo, porém, aferrou-se imoralmente a uma tecnicalidade: quem entrara com o processo fôra Barry, mas desde então a tutela da criança fôra transferida para o governo, portanto o processo seguiria em frente, impetrado, agora, pelo próprio governo.

Refrigério temporário: Populares cumprimentam
Chaplin, absolvido no processo do Decreto Mann

O processo pela transgressão ao Decreto Mann ocorreu entre fevereiro e abril de 1944. Neste processo Chaplin foi absolvido. Em julho nasceu a primeira filha dele e de Oona, Geraldine. Mais uma vez, o refrigério familiar teve vida curta; em dezembro começou o processo de paternidade. A imprensa, que recebera conveniente acesso aos tribunais desde o começo, pôde testemunhar o circo em que aquilo foi transformado por Joseph Scott, um velho asqueroso de 77 anos que representava Barry. Ele foi fundo e explícito na caracterização de Chaplin como um tarado que seduzia suas atrizes e desfiou-lhe apodos como o de “projeto de Svengali”, “cockney grosseiro e ordinário” e até mesmo “pequeno vagabundo” (little tramp), em alusão cruel ao magnífico Carlitos, personagem que fez de Chaplin uma estrela mundial. No fim do processo, em janeiro de 45, o júri de sete mulheres e cinco homens não conseguiu chegar a um consenso (embora o placar tenha ficado em sete a cinco pela absolvição). Em abril o processo foi novamente a julgamento, desta vez com 11 mulheres e um único homem no júri. A despeito do exame sangüíneo, em menos de 13 dias o processo chegou ao fim, com a condenação de Chaplin, por onze votos a um. Ele teve que pagar uma pensão semanal de 75 a 100 dólares à filha de Joan Barry até que a criança completou 21 anos.

Joan Barry chora dramaticamente
nos ombros do velho abutre Joseph Scott
A título de (mórbida) curiosidade, Joan Barry, depois de mais algumas maluquices, acabou indo para um hospício em 1953. Efetivamente, não se sabe o que aconteceu com ela. Alguns sites dizem que ela morreu em 1996, mas tal afirmativa é feita sem qualquer prova concreta. Sendo verídica, ela teria na ocasião 76 ou 77 anos, já que sua data de nascimento também está em questão. Sua filha, Carol Ann Barry, hoje com 67 anos, está viva, bem, mudou de nome e mora nos Estados Unidos.

Depois de dois anos desse freak show, a reputação de Chaplin ficou em frangalhos. O governo norte-americano largou o osso por um tempo, mas o cineasta tornou-se objeto de investigação perene por parte do FBI e seu chefe todo-poderoso, um homossexual enrustido e repulsivo que atendia pelo nome de J. Edgar Hoover. Para piorar, os grandes amigos de Chaplin durante todo esse período de perseguição foram justamente figuras notórias do comunismo nacional e internacional como o escritor alemão Lion Feutchwanger, o compositor também alemão Hanns Eisler e o dramaturgo e roteirista norte-americano Clifford Odets. Como sempre indiferente à grita paranóica dos reacionários, Chaplin voltou ao roteiro de Monsieur Verdoux.

Diante da declaração de Oona, de que realmente não desejava ser atriz, ele descartou definitivamente Shadow and Substance e concentrou-se única e exclusivamente no trabalho sobre o barba-azul. Segundo Chaplin, “apesar de haver passado por crises periódicas de enjôo e desalento quanto à minha carreira, nunca se me abalou a fé de que uma boa comédia poria fim a todos os meus problemas”. Pobre Chaplin. Depois de tudo que passara, continuava otimista. Não perdia por esperar.

Terminado o roteiro de Verdoux e enviado ao Breen Office – divisão burocrática da Legião da Decência, responsável pela censura dos filmes produzidos a cada ano – Chaplin recebeu uma carta desse organismo anunciando dezenas de cortes, os mais bobos e inexplicáveis, a seu roteiro. Em visita ao Breen Office teve um diálogo terrível com um dos censores, que tentou aniquilar praticamente todas as cenas, fossem elas cômicas ou não. Chaplin ignorou as recomendações, fez um ou outro corte que não comprometia nada e filmou Verdoux. No início de 1947, apresentou o filme para 30 membros da Legião da Decência. “Nunca me senti, em toda a minha vida, tão só como nessa ocasião”, disse o cineasta, anos depois. O resultado foi de frieza total por parte dos censores, mas o filme acabou aprovado por Joseph Breen. Antes de seu lançamento, entretanto, houve um último susto: Chaplin foi incluído pelo facinoroso Comitê de Atividades Anti-Americanas numa lista de 19 artistas e intelectuais suspeitos de comunismo.

O Comitê, como se sabe, seria responsável ao longo de toda a década seguinte pela desmoralização e destruição da carreira de inúmeros artistas, baseando-se no temor patológico e demente de uma conspiração comunista no país. O cineasta recebeu uma notificação para comparecer a Washington, mas logo depois veio um telegrama cancelando a audiência. Dias depois, mais uma notificação e mais um cancelamento. Quando isso ocorreu pela terceira vez, Chaplin ficou farto e escreveu uma carta ao Comitê. É ele quem conta, em sua autobiografia:

Passei telegrama aos convocadores, acentuando que tinha em suspenso uma vasta empresa, com prejuízos sensíveis; a seguir ponderei que, como a Comissão viera recentemente à Hollywood, para interrogar o meu amigo Hanns Eisler, bem poderia ter aproveitado o ensejo para também me ouvir, poupando o dinheiro dos contribuintes. “Contudo”, concluí, “como declaração prévia, posso desde logo adiantar que não sou comunista, nem jamais me inscrevi em qualquer partido ou organização política, sendo apenas o que se chama ‘um pacifista’. Espero que isto não chocará a Comissão. Solicito a gentileza de marcar definitivamente a data em que devo comparecer a Washington. Atenciosamente, Charles Chaplin”.

Chaplin no papel de Verdoux

A sinceridade, ou a assertividade do telegrama deve ter impressionado o Comitê, porque a resposta foi “cortês” e instava Chaplin a dar o assunto por encerrado. Há quem diga que o Comitê preferiu não convocá-lo por medo que ele humilhasse os obtusos inquiridores com seu humor e sua inteligência, o que de fato ocorreu em algumas sessões do Comitê, sendo uma delas com o grande artista negro Paul Robeson. Fosse o que fosse, nada estava encerrado. Tudo contribuiu para um lançamento problemático e hostil de Monsieur Verdoux. Chaplin estava marcado a ferro como comunista e corruptor de moças inocentes. Aos olhos do povo, catequizados pelo governo e facilmente influenciáveis pelo sensacionalismo barato da imprensa marrom, Chaplin pregara uma aliança com os russos, engravidara uma atriz e casara-se com outra, menor de idade. Para coroar a situação, produzia agora uma comédia de humor negro que tinha o subtítulo nada sutil de “Uma comédia de assassinatos” onde mulheres eram mortas pelo seu dinheiro, críticas violentas eram feitas à indústria da guerra e Carlitos sequer aparecia. A entrevista coletiva para promover Monsieur Verdoux foi tenebrosa. Chaplin ensaiou seu melhor sorriso, foi doce, simpático e amistoso em sua apresentação, mas de cara percebeu que a platéia de repórteres estava integralmente contra ele. O que se seguiu foi um cross-examination dos mais agressivos. Perguntaram-lhe se era comunista, fustigaram-no por não ter se naturalizado norte-americano, perguntaram de sua amizade com Hanns Eisler, até ex-combatentes católicos manifestaram-se, e absolutamente nada se falou de Verdoux. Chaplin retirou-se da coletiva arrasado, temendo pelo sucesso do filme. E não estava errado em temer.

Chaplin como Verdoux e sua inspiração,
o barba-azul Henri Landru
Monsieur Verdoux estreou em abril de 1947. A crítica ficou atônita com a diferença desse para os outros filmes de Chaplin. Em geral os comentários foram mais positivos do que negativos, mas um mal irremediável havia sido feito à sua reputação. Já não se discutia mais se Verdoux era um filme bom ou ruim; o que importava era Chaplin dizer que “as a mass killer I’m an amateur”, comparado aos fabricantes de armas, ou “one murder makes a villain; millions a hero. Numbers sanctify”. Estava queimado com um setor conservador, reacionário, cretino e, infelizmente, numeroso da sociedade, e tal setor não permitiria que o público formasse sequer uma opinião própria sobre o filme. Grupos de arruaceiros começaram a fazer piquetes e demonstrações na frente de cinemas que exibiam Monsieur Verdoux. Nos cartazes, dizeres como “Chaplin é a favor dos comunistas”, “Expulsemos do país o adventício”, “Já chega de ter Chaplin como hóspede”, “Chaplin, ingrato e simpatizante do comunismo”, “Que Chaplin vá para a Rússia” e mimos do mesmo jaez. Conseguiram o que queriam. Donos de cinemas por todo o país estrearam o filme com grande sucesso e foram obrigados a retirá-lo de cartaz em pouco tempo, ou mesmo no dia seguinte, temendo represália dos manifestantes da Legião Católica, da Legião Americana e de outras organizações de carolas reacionários.

Como se pode ver, Chaplin estudou as fotos do julgamento real de Landru e posicionou a câmera e o policial da mesma forma, em seu filme

Lançado na Europa, Monsieur Verdoux teve um sucesso de bilheteria mais substancial. Insuficiente, porém, para que desse lucro. “Mal deu para equilibrar o custo”, diria Chaplin, depois. De qualquer forma, o cineasta guardou carinho pelo filme e declarou, em sua autobiografia: “Creio que Monsieur Verdoux é o melhor e o mais brilhante dos filmes que já fiz”. Era um perseverante. Nem bem sofrera o açoite ininterrupto que foi todo o processo de preparação e lançamento de Verdoux, e já tinha Luzes da Ribalta no embrião. “Porque permanecia otimista”, explicou Chaplin, “e ainda não me convencera de que houvesse perdido inteiramente a afeição do povo americano; custava-me crer que esse povo estivesse tão politizado e tão destituído de humor a ponto de boicotar quem poderia diverti-lo. Nascera-me uma idéia e sob a sua inspiração já nem me importava o que viesse a acontecer; o filme tinha que ser feito”.

Calvero (Chaplin) e Terry (Claire Bloom)
em Luzes da Ribalta
Chaplin levou um ano e meio escrevendo o roteiro de Luzes da Ribalta, e entrou na década de 50 filmando a belíssima história de amor entre o velho comediante Calvero e a jovem dançarina Terry. O filme abandonava o “pessimismo frio” de Verdoux, e voltava às raízes sentimentais de Chaplin, com o diferencial, desta vez, de colocar o drama sobre a comédia. A filmagem teve seus percalços. O cineasta não chegava a estar paranóico, mas observava com o maior cuidado os funcionários mais humildes, que operavam máquinas no estúdio, ou responsáveis pelo transporte de rolos de filmes, e coisas assim, preocupado que fossem da Legião Americana e estivessem lá para sabotá-lo. No início de 1952 ele fez uma sessão fechada do filme para algumas dezenas de amigos. As reações de apreciação foram unânimes e Chaplin ficou satisfeito em relação ao retorno de seu investimento. Vivendo essa tranqüilidade, resolveu que aquele seria um bom momento para visitar a Inglaterra, coisa que não fazia desde 1931, quando Luzes da Cidade estreou. A situação era propícia, Oona já era mãe de quatro filhos de Chaplin e desejava que eles conhecessem a terra do pai, e o filme se passava na Inglaterra, o que tornava um lançamento londrino excelente estratégia de marketing.

Como já se viu anteriormente, quando Verdoux está sendo sentenciado à guilhotina, ele faz um libelo anti-guerra. Em determinado momento, diz: “As for being a mass killer, does not the world encourage it? Is it not building weapons of destruction for the sole purpose of mass killing? Has it not blown unsuspected women and little children to pieces, and done it very cientifically?

Harry Truman e J. Edgar Hoover

É perfeitamente provável que quem sentiu de forma mais intensa o golpe, ao ouvir tais frases, foi Harry Truman, então presidente dos Estados Unidos e responsável pela morte de 200 mil civis, quando autorizou o lançamento de duas bombas atômicas sobre o Japão. Teria Truman, um caipirão bronco e ignorante, esperado o momento exato para se vingar de Chaplin? O certo é que mesmo tendo entrado três meses antes com os papéis de autorização para viajar e retornar, Chaplin não recebera nenhuma resposta até aquele momento, em que Luzes da Ribalta era mostrado ao público de convidados. De repente o cineasta recebeu uma comunicação da Receita Federal, dizendo-lhe que devia 2 milhões de dólares. Organizadíssimo com suas finanças, ele ficou indignado e respondeu que não pagaria um centavo, e que se quisessem poderiam processá-lo. A cobrança foi arquivada, como num passe de mágica. A seguir, veio nova comunicação, desta vez anunciando que o cineasta seria visitado por quatro funcionários do Departamento de Imigração. A entrevista foi como a coletiva de Monsieur Verdoux, só que elevada ao cubo. Questionaram a autenticidade de seu nome, se era comunista, se seguia a linha do partido, por que utilizara o termo “camaradas” no longínquo comício do Comitê para o Socorro de Guerra Russo, por que não se naturalizara norte-americano e até se já cometera o adultério. Outra pergunta era típica dos interrogatórios do Comitê de Atividades Anti-Americanas: “Se este país fosse invadido o senhor lutaria em sua defesa?” Chaplin não titubeou: “Naturalmente. Eu quero bem a este país... É o meu lar, onde tenho vivido há 40 anos”.

Chaplin e Oona
A sabatina durou três horas. Uma semana depois Chaplin foi intimado a comparecer ao Departamento de Imigração, em Los Angeles. O funcionário de lá o tratou com toda a cordialidade, desculpou-se pela entrevista exaustiva e deu-lhe os papéis, autorizando a viagem e o retorno. Num daqueles momentos em que o sexto sentido transforma-se na diferença entre a vida e a morte, Chaplin pediu a Oona que se tornasse titular de sua principal conta bancária. Ela relutou, pediu que tratassem disso na volta, mas ele insistiu, e dez minutos antes dos bancos fecharem, a conta passou a ser conjunta. Em 6 de setembro de 1952 a família partiu para Nova York, de onde embarcariam para Londres. Sem nenhuma vontade, Chaplin seguiu o conselho de seu assessor Harry Crocker e se encontrou com jornalistas das revistas Time e Life, a quem permitiu uma sessão privada de Luzes da Ribalta. O tiro de Crocker saiu pela culatra. O clima do encontro foi de absoluta frieza e ambas as publicações espinafraram o filme. No dia 17 Chaplin e a família embarcaram no Queen Elizabeth. Segundo o cineasta, o primeiro dia da viagem foi divino, de pura liberdade e prenunciava uma jornada maravilhosa, ao fim da qual ele poderia mostrar sua Londres à mulher e aos filhos. Mas Harry Truman e J. Edgar Hoover tinham uma última maldade para despejar sobre Chaplin.

Chaplin, Oona e os quatro
 filhos no Queen Elizabeth

O almoço do segundo dia foi agradabilíssimo, até que alguém entregou um radiograma a Harry Crocker, pedindo resposta urgente. Era de James McGrannery, procurador-geral do governo Truman, revogando a autorização de retorno. Declarava que Chaplin estava proibido de voltar aos Estados Unidos, e se desejasse entrar novamente no país teria que se submeter a uma comissão de inquérito no Departamento de Imigração, por violar uma lei que restringia a entrada de estrangeiros acusados de inidoneidade moral ou subversão ideológica. Para Chaplin, foi a gota d’água: “Crisparam-se todos os meus nervos. Já pouco me importava tornar ou não àquele país desventuroso. Gostaria de dizer à sua gente que me livrar o mais cedo possível da sua atmosfera impregnada pelo rancor seria o melhor para mim; que a América já me fartara com seus insultos e o seu moralismo pomposo; que tudo isso já me aborrecera além da conta”.

As coisas, contudo, não eram tão simples; Chaplin dera um jeito de salvaguardar sua fortuna mas ainda havia propriedades, ações da United Artists (estúdio fundado por ele, Mary Pickford, Douglas Fairbanks e D.W. Griffith 33 anos antes) e mais um emaranhado de questões legais para tratar. A abordagem inicial de Chaplin à sua expulsão, portanto, foi de dizer apenas que lamentava aquilo e que lutaria para voltar ao país onde vivera por quase 40 anos. Em novembro, Oona foi quase em segredo para os Estados Unidos. Tratou da questão bancária, fechou a casa onde moravam, em Beverly Hills, que havia sido varejada pelo FBI pouco depois da partida deles e retornou à Londres.

Douglas Fairbanks, Mary Pickford, Chaplin e D.W. Griffith, fundadores da United Artists, em 1919. Douglas e Griffith já estavam mortos quando Chaplin foi expulso dos Estados Unidos

Chegada a Londres
Chaplin foi recebido como um rei, em seu país, e sua alma foi lavada pelo carinho dos fãs que o saudaram por toda Europa, e pelo sucesso maciço de Luzes da Ribalta por lá, transformando o filme na maior bilheteria de todos os filmes de Chaplin. Nos Estados Unidos, por outro lado, os vexames continuavam. Exibido discretamente em alguns cinemas, a Legião Americana ensaiou piquetes semelhantes aos da época de Monsieur Verdoux. Chaplin não lhes deu a satisfação; através de seus representantes na United Artists, pediu o recolhimento imediato das cópias. Os norte-americanos tiveram que esperar mais de 20 anos para assistir o filme. (Quando foi lançado nos Estados Unidos, em 1972, o filme recebeu o Oscar de Melhor Trilha Sonora. Ironicamente, o único Oscar competitivo recebido por Chaplin em toda sua vida, honra que ele dispensava e que além de tudo vinha tarde demais)

Entrevista coletiva em Londres, com Oona, Claire Bloom e
o filho Sidney, para promover Luzes da Ribalta

No início de 1953 Chaplin e sua família encontraram uma grande propriedade no vilarejo de Corsier, em Vevey, na Suíça. Em abril ele jogou uma pá-de-cal nas esperanças de quem sonhava vê-lo novamente nos Estados Unidos. Foi ao consulado norte-americano em Genebra e devolveu sua permissão de retorno, que por sinal não valia. De volta a Londres, no mesmo mês, acompanhou Oona à embaixada dos Estados Unidos, onde ela entrou com os papéis para renunciar à sua cidadania norte-americana e requerer a naturalização inglesa.

À imprensa, Chaplin foi direto e objetivo: “Desde o fim da última guerra mundial, tenho sido o objeto de mentiras e propaganda por parte de poderosos grupos reacionários que, por sua influência e com a ajuda da imprensa amarela [termo que remete a publicações sensacionalistas e escandalosas do século XIX, e que traziam tiras do primeiro personagem da história em quadrinhos, o “Yellow Kid”], criaram uma atmosfera insalubre na qual indivíduos de mente liberal podem ser isolados e perseguidos. Sob essas condições acho ser virtualmente impossível continuar meu trabalho cinematográfico, e portanto renuncio à minha permanência nos Estados Unidos”. Sem qualquer emoção ou nostalgia, como ele próprio consignou em sua autobiografia, pôs à venda seu estúdio, sua mansão e seu iate.
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BIBLIOGRAFIA:

PARTE 2 deste artigo

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