domingo, 10 de outubro de 2010

"Carapau", de Chico Anysio


Apesar de minha imensa e irrestrita admiração por Chico Anysio, os dois únicos livros que li, até recentemente, de sua numerosa produção literária foram sua deliciosa (embora curta e prematura) autobiografia Sou Francisco (Rocco, 1992), e o romance O Canalha (Globo, 2001), sobre uma espécie de Forrest Gump brasileiro, que acaba sendo a causa involuntária de todos os eventos mais importantes da história nos últimos 50 anos.

O mote de um Forrest Gump no Brasil já tinha sido usado por Jô Soares em seu livro O Homem que matou Getúlio Vargas (Companhia das Letras, 1998), que não li. Quanto ao livro de Chico, impressiona pela riqueza das informações e pelo estilo ágil e escorreito, mas o tema já estava gasto e o livro veio fora de época. Acabei esquecendo-me de seus escritos por um tempo.

Meses atrás um sebo aqui perto, prestes a fechar, anunciou a liquidação de todo seu estoque. Não perdi a oportunidade e, entre dezenas de outros títulos, comprei quatro livros de Chico de uma só vez. Na época do lançamento de todos – meados dos anos 70 – ele ainda se assinava Anísio. Folheando-os, percebi que três deles eram de contos e o outro era o primeiro romance escrito por ele, em 1978. Chama-se Carapau, nome de uma cidade fictícia no interior do Ceará. Meu espanto começou antes de iniciar a leitura, ao constatar que a orelha do livro é de ninguém menos do que Jorge Amado. O prefácio, de nenhum outro senão Orígenes Lessa. Ambos desfiando os mais sinceros elogios ao talento literário de nosso comediante maior. Jorge fala do extenso rol de personagens criados por Chico na televisão, e agora na literatura, e comenta a desenvoltura com que o artista descreve o coronelismo em Carapau, assunto que o próprio Jorge tantas vezes tratou em suas obras. No fim vai direto ao ponto: “Após a leitura de Carapau é impossível, mesmo ao mais pernóstico de nossos críticos, grávidos de dogmatismo elitista, negar a Chico Anísio o lugar que lhe cabe na ficção contemporânea brasileira”.

Lessa afirma que a estréia de Chico no romance “vem confirmar, na precisão e enxutez da linguagem, o narrador excepcional que vinha crescendo nos livros anteriores. Com a arquitetura da história certa para o efeito certo, que só a longa experiência do narrador oral, medindo ao vivo cada intenção e cada efeito no auditório, poderia ter dado”. Está certíssimo. Carapau é um verdadeiro primor de narrativa. Mais do que isso; tem uma trama envolvente e bem amarrada.

A história gira em torno de João Neves, velho coronel que ao longo dos anos vai enriquecendo às custas da miséria da cidade de Carapau, da qual se torna chefe político e “dono”, de fato, exercendo seu poder através do despotismo e do terror. Indica seus apaniguados para a prefeitura, mora em uma confortável fazenda enquanto o povo citadino vive na eterna pobreza, é casado com a submissa Dona Julinha, tem uma rapariga na cidade, pune com o chicote os assessores que se desviam um centímetro da linha de servilismo estabelecida por ele e com a castração aqueles que se atrevem a mexer com sua rapariga. Tem também um araponga que lhe leva e traz as notícias e os conchavos que possam ameaçar seu posto de chefe supremo da cidade.

A ilustração de Ziraldo - desenhista de todos os livros de Chico - para "Carapau"

João Neves, entretanto, é personagem que não demanda grandes contornos criativos. É um coronel como tantos que infestaram o Brasil, do início do século XX até a década de 50, e que até hoje deixam sua gosma fedorenta e venenosa em estados como o Maranhão e a Bahia. Brilhante, digna mesmo de um experimentado autor, é a maneira com que Chico vai delineando os outros personagens de Carapau. São arquetípicos, mas são ao mesmo tempo densos. Todos têm uma história bem concatenada e sua razão de ser. João Taco de Ouro é o comerciante a que todos conhecem, estimam e freqüentam, assim como todos recorrem ao mesmo médico, Dr. Vidigal. Teotônio Vilalba é o malandro ignorante e metido a cafetão, mas que tem, em contrapartida, um amor genuíno pela cidade onde mora e pela liberdade política e social que todos almejam. Seu cacoete de ouvir uma palavra que não conhece, perguntar o que ela significa e quando vem a explicação ele desvia, dizendo “eu sei o que é, não entendi o porquê disso”, é humor de primeira, puro Chico Anysio. Cazuza Dengoso é aquele andarilho, trabalhador braçal que vemos em tantas cidades do interior, e muitas vezes nas capitais. Anda vendendo água com sua mula e pertence de tal forma à paisagem do vilarejo que já não se sabe mais quem é a mula e quem é o andarilho. É o operário-padrão, castigado, conformado, que ganha pouco, vive com pouco e perdeu a ambição do mais.

O jornalista pau-mandado, Ézulo Tavares, e o candidato a prefeito patrocinado pelo coronel, Zé Leitão, são aqueles capachos que se cansaram de ser pisados e ensaiam uma revolta que não ocorre. Mas no pensamento vão longe, e o leitor vai junto, sentindo o arrepio do ódio que nutrem pelo coronel, e aquela vontade salgada e fervente de matá-lo a pauladas, com os piores requintes de crueldade. Teco Mulato é o cão treinado. Pode ser o amigo fiel como pode ser o capanga mais desalmado e insensível. Contraponto perfeito para sua irmã, a negra Herondina, bom caráter a toda prova, e mais escrava do que criada do coronel. O aleijão Mane Cotó é um primor de criação literária. Quantos Manés Cotós não terá Chico visto por aí para desenhá-lo com tal perfeição? Marginal, rejeitado, sujo e mau-caráter. A cena em que Ézulo tenta chantagear Mané é sensacional. Os one liners repetidos, de Mané, a maneira que se refere a Ézulo como “jornalista”, tudo faz com que possamos praticamente ouvir o desaforado aleijão.

O dono de padaria Deolindo Barriga se vê de forma cristalina na descrição; o obeso mórbido, sempre suado, sempre ofegando, sempre incomodado, que anda pra cima e pra baixo com uma espreguiçadeira debaixo do braço, pois sabe que em lugar algum encontrará móveis suficientemente confortáveis para acomodar seu monte de banhas. Só que além da obesidade ele tem o detestável inconveniente de ser um peidorreiro crônico. Aqui também vale um parêntese a favor de Chico; na literatura universal, não são poucos (sabe-se lá por quê) os escritores que transformam a flatulência em característica primordial de um personagem, seja para torná-lo ridículo (no caso de Eça de Queiroz), seja para agregar ao quanto o personagem já é asqueroso (como em Garcia Márquez). Em geral, considero qualquer pendor excessivo ao escatológico ou ao pornográfico um elemento de repelência ao livro. Jorge Amado, por exemplo, tão genial e tão superior na arte de desenhar personagens, cenas e situações, conseguiu destruir alguns de seus melhores trabalhos pelo exagero nas descrições escatológicas ou sexuais.

Chico contorna esse perigo com esperteza. Por incrível que pareça, a flatulência de Deolindo é tratada com toda a elegância e humor possíveis, considerando o quão desagradável é o problema do dono da padaria. As pilhérias de que é vítima não são nojentas, como não enojam os comentários do próprio sobre aquilo que inicialmente ele descreve como uma “doença”, e que mais tarde vamos verificar que é um misto de vício com sua própria falta de educação.

Com o "amado mestre", em maio de 1991
A personagem Liana é paradoxal. Num primeiro momento repara-se uma patente falta de originalidade no casamento da bonita e espevitada (e mais tarde promíscua) Liana com o bobalhão manso e trabalhador (e mais tarde corno) Cazuza. É quase um lugar comum. Mas Chico preenche com a riqueza descritiva e psicológica o que falta na originalidade dessa escolha. Liana, de coadjuvante, se transforma em fio condutor da trama, junto ao coronel João Neves. Os capítulos que o autor dedica às elucubrações da moça, linda, cheia de vida e louca para se exibir, são lapidares. Pela maneira como arruma a casa, como prepara o jantar, põe as roupas no varal – os únicos afazeres de sua vidinha besta – sentimos seu tédio, a rotina horrorosa e vazia, a ansiedade, o vulcão interno em erupção, a frustração terrível de estar presa àquele mundinho primitivo e limitado, àquele casamento medíocre cujo amor se extinguiu antes mesmo de começar.

Quando faz desenhos na terra com um graveto, ou se deita na grama, contemplativa, remoendo dia pós dia o ressentimento pelo marido não tê-la presenteado com o tal “vestido verde, com passamanaria na barra”, ou não terem se mudado para uma casa maior, aquela que Dona Cresta pôs à venda, e sobretudo nas lembranças de seus antigos e abastados namorados, perfeitos patetas, mas que a paparicavam e lhe teriam dado uma situação menos amorfa e modorrenta do que aquela, o bisturi psicológico opera com maestria. Ela é o retrato fiel de nove entre dez jovens simples e ignorantes, do nordeste ou do sudeste, do interior ou da capital, que nasceram e foram criadas para casar o quanto antes, o que resulta quase sempre num casamento com o pior dos pretendentes – desde que seja financeiramente remediado – e só se dão conta de que jogaram fora sua juventude quando é tarde demais e já se encontram enrodilhadas num casamento equivocado e infeliz, seja por conta de uma penca de filhos não desejados, ou pela dependência econômica.

A sensualidade de Liana também é um atestado da inteligência de Chico, e de como é possível descrever em detalhes a beleza e os encantos de uma mulher irresistível, sem descambar para a cafajestagem ou para a mera lubricidade, outro defeito maior de determinados romancistas brasileiros. Não há um pingo de mau-gosto. Chico não perde tempo com “seios túrgidos”, “bunda arrebitada”, “lábios grossos e úmidos” e outras descrições idiotas que abundam na literatura nacional e mais fazem lembrar a seção de cartas de uma revista erótica. O simples andar de Liana, com o vestido preso entre as nádegas, indicando a ausência da calcinha ou o comentário de que a moça "tinha o vestido sobre a pele. De tão lavado, o vestido parecia ter aumentado sua transparência, deixando adivinhar o que de bonito devia esconder", é o que basta para incendiar a imaginação de qualquer leitor. Puxando pelo humor, ele diz, em outra ocasião, que Liana "cruzava a perna não era pra descansar nem pra se ajeitar melhor. Era pra se mostrar. Era dizendo tome, era mandando pegue, era deixando bote".

Firmino de Oliveira, esperança de Carapau para enfrentar o poderio de João Neves, é o político cansado, que a vida e as derrotas emascularam. A chama da ambição não foi apagada, em Firmino; ele mesmo é que se ocupou de escondê-la bem fundo, a fim de evitar novas decepções. Outro retrato modelar: o sujeito que um dia sonhou voar alto, mas foi impedido pelas circunstâncias, algumas devidas a ele, outras nas quais tropeçou sem querer. Sua esposa é o anverso da mesma moeda. Beatriz, um dia linda e disputada, hoje uma beata de 130 quilos. Através desses dois chega-se a outro aspecto positivo da narrativa de Chico: o de entregar o mote de cada personagem, sem de fato entregá-lo. Desde o começo sabemos da suspeita de que João Neves transou com a esposa de Firmino antes dela conhecê-lo. Ao longo do livro vemos o velho político negar o fato com tal veemência, descartando-o como calúnia, que realmente se alcança um ponto em que a dúvida – só esclarecida no final – fica no ar. O mesmo ocorre com a suposta promiscuidade de Liana. Ela é linda, fogosa e sensual, casada com um frouxo, mas é tão imatura, tão verde e ignorante, que por vezes duvida-se que seja capaz de trair o marido. Chico sabe fazer cortes múltiplos no novelo literário, criando suspense e dúvida, para mais à frente juntar tudo e não deixar um único fio solto.

No mais, quando Chico, de passagem, descreve Zé Leitão, em sua abordagem, como sendo “amistoso, safado, simpático, asqueroso, bonachão, interesseiro”, ele pintou o retrato mais absolutamente perfeito de 99,9 % dos políticos brasileiros.

O cinema também parece estar presente na veia literária de Chico. O jogo de pôquer entre Firmino, Paulo Rosa, João Taco de Ouro, Deolindo e Vidigal é, por si só, um roteiro redondo e acabado para um curta-metragem. Mais do que descrições a cena tem rubricas detalhadas, cada personagem tem seus tiques e o mote é o segredo de Firmino, que ele faz questão de não contar, levando todos a fazer o mesmo, inventando mentiras deslavadas ao invés de revelar seus próprios segredos. A surra que João das Neves dá em Liana é outra cena que Chico coreografa com a meticulosidade de um diretor de cena. Timing exemplar, e o contraste crível e perturbador da cena horrorosa entre o coronel e a rapariga, com a indiferença criminosa e insensível do capanga Teco, cuidando do jardim enquanto a violência acontece em sua própria casa. A última cena de Zé Leitão, o mato sem cachorro em que ele fica, as luzes se apagando, o fato de ficar totalmente sozinho no alpendre do coronel, e sair lentamente, montando desajeitado em seu cavalo, também não se lê, se assiste.

Concluo com duas perguntas. Primeiro, por que a Globo insiste em material inédito de baixa qualidade para suas minisséries, ou em adaptações chapa-branca da vida de cantoras, quando Carapau está aí, pronto para ser transformado em oito ou nove capítulos daquilo que de melhor se pode ver na TV? O que não seria o maravilhoso Othon Bastos no papel de João Neves? Matheus Nachtergaele parece ter nascido para viver Cazuza Dengoso. Luis Gustavo ou Antônio Pedro dariam performances de tirar o fôlego como Firmino de Oliveira. O mesmo em relação a Ewerton de Castro e Zé Leitão. E quantas cenas extraordinárias não estariam reservadas para a atriz que interpretasse Liana? Enfim, esperemos que a emissora lembre-se do caminho do sucesso, apontado por Boni, de ir buscar, sempre que possível, na (boa) literatura o material para novos projetos televisivos, como se fez com O Primo Basílio e com O Tempo e o Vento.

A segunda pergunta é melancólica: por que vemos tantos artistas invadindo a seara literária com livros medíocres, aclamadíssimos e por vezes se transformando em filmes tão ruins quanto os próprios livros, enquanto um romance excelente como Carapau permanece fora de catálogo há anos? Por que a Rocco não faz um esforço para relançar esse admirável trabalho de Chico, festejado por titãs como Jorge Amado e Orígenes Lessa?

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