sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Adorável Tônia



No fim de 1993, anunciou-se que Tônia Carrero ministraria um workshop no Centro Cultural da Vergueiro, mesmo local onde ela apresentava na época a peça Ela é Bárbara, de Barrilet e Gredy. Não gostei da peça – um boulevard bobinho – mas decidi assistir o workshop. Aos 21 anos, cru e cheio de curiosidade sobre todos os aspectos da vida teatral, achei que seria divertido participar de um curso com a célebre atriz, que aos 70 anos, estava cheia de energia para atuar, além de manter impecável sua lendária beleza. Foram três dias. No primeiro ela deu uma palestra à tarde no mesmo teatro onde a peça era encenada. Falou durante horas, divertida, interessante, articulada, carismática.

Disse-me que desejava ter interpretado Viola, na juventude, em Noite de Reis de Shakespeare, falou de Celli, do TBC, de sua carreira. Demonstrou carinho especial pelo papel de Neusa Suely, criado por ela na montagem original de Navalha na Carne, e pela peça Quartett, de Heiner Müller, que interpretou sob a direção de Geraldo Thomas. Não esqueço o rapaz na primeira fila, muito sério e conservador, perguntando a Tônia o que ela achava daquele festival de beijos entre jovens em que se haviam transformado as novelas da Globo. A resposta da atriz o desmontou: “E você queria o quê? Que fôssemos eu e o Jorge Dória dando aqueles beijos? Dois velhos?” A platéia veio abaixo em gargalhadas. “Tem que ser gente jovem, mesmo!”

Tônia revelou não ter o menor preconceito com as chamadas “modelos e atrizes” que infestavam a emissora do Jardim Botânico: “É evidente que o talento vem em primeiro lugar, mas vocês pensam que a Vera Cruz escolhia única e exclusivamente pelo talento? Se a beleza vier sem o talento não vale de nada, mesmo, mas a beleza é uma qualidade que ajudou muitos atores e atrizes hoje consagrados e respeitados. Não é um defeito”. O público não quis mais ir embora. Depois de algumas tentativas infrutíferas de finalizar a palestra, ela declarou, com sinceridade: “Olha, não tenho mais o que falar a vocês, o resto virá nos próximos dias, mas se vocês quiserem eu posso contar uma história do Ziembinski fazendo teatro na Polônia”. O público aplaudiu, aprovando a sugestão. Ela então contou a anedota em que o velho Zimba tinha que entrar em cena cantarolando, satisfeito, com uma rosa na mão. No proscênio ele levava a rosa ao nariz, cheirava e dizia: “Estou vindo da casa de minha namorada”. Só que, como sempre ocorre, dia houve em que a bendita rosa não estava nos bastidores. Desesperado, Zimba correu como uma barata tonta pela coxia, procurando o objeto cênico, até o momento em que veio sua deixa e ele não pôde mais esperar. Com as mãos vazias, entrou no palco cantarolando, satisfeito, embora o filete de suor que descia por sua testa acusasse que havia algo errado. Foi até o proscênio e improvisou como pôde. Levou os dedos da mão direita ao nariz, cheirou, e disse, impávido, o inefável “estou vindo da casa de minha namorada”, para o gargalheiro generalizado do público.


Os dois outros encontros foram bem cedo, em uma sala subterrânea do Centro Cultural (acredito que era uma espécie de semi-arena e não sei se ainda existe) e o público diminuiu sensivelmente. Mas quem compareceu não se decepcionou. Tônia ensinou exercícios de alongamento, de colocação de voz e pediu a quem quisesse que apresentasse cenas de peças que já estivessem preparadas. As reações foram interessantes. A atriz não passou a mão na cabeça de ninguém. Dois atores começaram a fazer uma cena do Baal, de Brecht, e não estavam nem na segunda fala quando Tônia mandou parar. Deu-lhes um esporro exemplar, criticou absolutamente tudo e mandou-os ensaiar de novo.

Outro rapaz tentou encenar o monólogo final de Édipo. Mais um esporro. Tônia se levantou e mostrou a impostação ao mesmo tempo meticulosa e intensa de uma tragédia grega. No fim apareceu um garoto que recitou uma poesia de forma caricata e divertida. Tônia adorou. Terminado o workshop comentei com ela que tinha pronto e decorado um monólogo do Henrique V em inglês (resultado das 300 vezes que assisti o filme de Olivier), mas não me aventurei por medo de que ela me achasse pretensioso. Ela compreendeu minha reserva, mas comentou: “Devia ter feito. O máximo que ia acontecer era eu te corrigir aqui e ali”.

Conversei muito com ela nesses três dias. É uma mulher magnética e atraente. De uma inteligência aguda e penetrante. Não surpreende que além de ter sua beleza festejada há tantas décadas, tenha sido, também, musa da intelectualidade brasileira nos anos 50, 60 e 70. Anos depois estive com ela duas vezes na casa de amigos. Minha impressão só melhorou. Bebe como gente grande quando há oportunidade, e a cada dose torna-se mais encantadora. Conhece MPB como ninguém, canta bem, sabe de teatro como poucos, tem uma cultura literária frondosa e todos os maiores nomes da história contemporânea eram ou são seus amigos e/ou admiradores. Como atriz, pude vê-la no teatro umas quatro vezes. Lamentei a direção dos espetáculos. Padeceram do mesmo mal que muitos dos últimos espetáculos de Paulo Autran: um respeito excessivo, quase um temor por ser ela uma lenda do teatro, e a incapacidade de desafiá-la, retirando dela uma interpretação original. Na Visita da Velha Senhora houve alguns grandes momentos, valorizados pelo elenco superior que a acompanhava, mas não houve catarse; creio que faltou um Antunes, um Flávio Rangel ou mesmo o velho Celli, para dobrá-la ao meio e espremer o talento da atriz, e esquecer o totem teatral com 60 anos de carreira. Não obstante, é uma estrela maior, no palco e fora dele.

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