sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A Parceria de Guarnieri e Toquinho - Parte 1


Era uma época em que se ouvia Guarnieri afirmar: "Por mais graves que sejam os problemas que cercam o teatro brasileiro, não vejo justificativa para o abandono do campo. Ao contrário, cada vez com mais urgência o artista de teatro, seja ator, autor, diretor é chamado a defender sua arte, seus princípios, sua posição. Independente dos fatores, sem dúvida passageiros, que possam prejudicar sua criação".

Fernando Peixoto
("Em cena aberta", Coleção Aplauso)

O endurecimento da ditadura de 64 provocou uma reação musical por parte dos grupos de teatro. No fim desse ano o CPC importou Augusto Boal para a direção do espetáculo Opinião, no Teatro de Arena da rua Siqueira Campos, no Rio, com músicas de João do Valle, Zé Ketti e uma plêiade de compositores. O Arena, aqui em São Paulo, dava à luz a obra-prima Arena Conta Zumbi, início da parceria de Guarnieri e Edu Lobo com direção do mesmo Boal. Ao mesmo tempo, o CPC (mais conhecido agora como Grupo Opinião) voltava à carga com o espetáculo Liberdade Liberdade, colagem de textos de Flávio Rangel e Millôr Fernandes com músicas de Noel Rosa, Billy Blanco e vários outros compositores nacionais e internacionais. O Arena continuou investindo no original e em 67 estreou Arena Conta Tiradentes, com músicas de Caetano, Gil, Théo de Barros e Sidney Miller e letras de Guarna para várias delas.

Myriam Muniz e Guarnieri em La Moschetta

No fim de 67 ainda houve tempo para um dos mais memoráveis espetáculos não-musicais do Arena: La Moschetta, de Ângelo Beolco. Montado em apenas 12 dias, foi talvez o maior momento da parceria artística de Guarnieri e Myriam Muniz. Quem assistiu diz que ambos estavam assombrosos. Myriam chegou a comentar a peça com Guarnieri na entrevista que ele deu ao SNT, em 75:

Me lembro de um dia que você ficou 15 minutos em cena, improvisando. Eu fiquei sentada, te olhando. Olha que 15 minutos em cena é muito tempo. E você sapateava e cantava uma música espanhola que não tinha texto. (...) Era uma matinê e eu me lembro que duas velhas ficaram tão cansadas que foram embora.

Ambos eram coadjuvados por um magrela feio e desengonçado de 18 anos, em início de carreira: Antônio Fagundes.

Fagundes, Myriam Muniz
 e Rolando Boldrin em cena de Animália
Em 68, Guarnieri fez dois trabalhos com Ivany Ribeiro na TV Excelsior - dos trabalhos dele na televisão falaremos em outro tópico - e participou ativamente da Feira Paulista de Opinião, ocorrida em junho. A Feira consistia de textos em 1 ato apresentados em seqüência, no Teatro de Ruth Escobar. Os dramaturgos escolhidos foram Jorge Andrade, Lauro César Muniz, Augusto Boal, Plínio Marcos, Bráulio Pedroso e Guarna, que colaborou com o subversivíssimo Animália. Entretanto, o verdadeiro trabalho dele nesse segundo semestre esteve na composição da peça Memórias de Marta Saré, por encomenda da companhia de Fernanda Montenegro e Fernando Torres. Guarnieri mais uma vez teve a oportunidade de compor em parceria com Edu Lobo e o espetáculo estreou em dezembro, ficando o ano de 69 inteiro em cartaz. O elenco contava com Fernanda, Guarna, Myriam Muniz, Fagundes (que também trabalhou em Animália), Beatriz Segall e outros. Assim, com Marta Saré e mais duas novelas na Excelsior, terminou a riquíssima década de 60 para Guarnieri. Paradoxalmente, a década de 70, que traria terror e desgraça para todo o Brasil, e em especial para a classe artística brasileira, começou juntamente a uma bela e nova parceria musical. Depois de Jorge Kaszas, Carlos Lyra, Carlos Castilho, Edu Lobo, Théo de Barros e Sidney Miller, o parceiro de Guarna seria um paulista de 24 anos chamado Antônio Pecci Filho, e conhecido como Toquinho.

Sérgio Ricardo, Toquinho e o percussionista Manini no espetáculo de Chico de Assis e Sérgio Ricardo encenado no Arena, Esse Mundo é Meu

Assim como Guarnieri, Toquinho era um prodígio e com 19 anos já participava como músico da remontagem de Liberdade Liberdade com Cláudia no lugar de Nara Leão. No mesmo 65 ele foi introduzido ao Teatro de Arena de São Paulo, participando com Sérgio Ricardo do espetáculo Esse mundo é meu, de Chico de Assis, portanto não é de todo estranho que Guarna e Toquinho viessem a se tornar parceiros em algum momento. O interessante é que a coisa tenha acontecido nesse fim de 69 e início de 70, porque foi exatamente a época em que Toquinho conheceu Vinícius. Vamos por partes.

Toquinho lançou seu primeiro LP em 66. Era todo instrumental e se chamava O Violão de Toquinho, onde ele já mostrava grande talento como violonista, adquirido com Paulinho Nogueira, Oscar Castro Neves e Edgard Janulo. Nos três anos seguintes Toquinho se alternou em bicos na televisão e em composições para os festivais da canção. Em 69 fez uma turnê esquisitíssima pela Europa junto a Chico Buarque, e um de seus bicos por lá (provavelmente por indicação do próprio Chico) foi tocar violão no LP La Vita, Amico, É L'arte Dell'incontro, homenagem a Vinícius de Moraes em que o poeta Giuseppi Ungaretti recitava poesias de Vinícius, e Ségio Endrigo cantava suas músicas mais famosas. Não houve parcerias.

De volta ao Brasil, Toquinho se tornou parceiro de Jorge Ben, com quem compôs as músicas Que Maravilha, Carolina Carol Bela e uma inacabada chamada Zana. E é nesse momento que Guarnieri entra na história.

Terminada a temporada de Marta Saré, que foi um grande sucesso, Guarna surpreendeu, partindo para um "espetáculo de variedades engajado" no estilo de Liberdade Liberdade. Chamou Marília Medalha, sua companheira de Zumbi, Myriam Muniz, companheira de sempre no Arena, e Sylvio Zilber, também do Arena e na ocasião casado com Myriam, para dirigir. A novidade ficou por conta do convite a Toquinho, que entrou no elenco e assinou a direção musical do espetáculo. Juntos, Guarna e Toquinho deram os toques finais à Zana, música que é a cara de Jorge Ben e nada tem a ver nem com Toquinho e nem muito menos com Guarnieri (uma mera questão de estilo, sem o menor desdouro a Jorge Ben, a quem eu amo), e compuseram a música Tudo de Novo, que se tornou nome do espetáculo. A terceira e última composição deles neste primeiro momento chamou-se Balada da Delinqüência Juvenil, letra de Guarnieri e Sylvio Zilber, e música de Toquinho e Carlos Castilho.

É possível que o segundo LP de Toquinho (Toquinho) tenha sido lançado durante os ensaios da peça, porque das parcerias com Guarna somente Zana - a piorzinha das três - entrou na edição final, o que reforça a tese de que se trata de uma composição de Toquinho e Jorge Ben que já estava quase pronta e o dramaturgo deve ter mudado um ou dois versos.

Guarnieri e Marília

A parte musical ficava toda a cargo de Marília Medalha e além dessas três músicas, ela cantava Minha, de Francis Hime, Jenny dos Piratas, versão de Toquinho para a música de Brecht e Kurt Weill, Cérebro eletrônico, de Gil, entre outras. Junto ao violão de Toquinho estava o órgão de Francisco Tenório Filho, Tenorinho. As canções eram permeadas por textos de Guarnieri, Zilber, Bertrand Russell, Tennesse Willians, Ionesco, Gonçalves Dias, Millôr Fernandes, Pessoa, Paulo Mendes Campos e Brecht, e por sua vez os textos eram ilustrados por projeções de slides com fotografias de Branca Paulo de Freitas.

Nem o belo elenco e nem o rico conteúdo do espetáculo foram suficientes para que o público se interessasse. Depois de casa cheia na estréia de Tudo de Novo para convidados, em 22 de abril de 70, no Teatro Olimpiá (depois rebatizado com o nome "Záccaro", em São Paulo), o público sumiu. Diante do desastre, o produtor Marcos Lázaro teve a inusitada idéia de incluir a cantora Rita Pavone na abertura do espetáculo. Desnecessário dizer que o martelo da simpática Rita não se coadunou com os textos de Brecht e músicas que diziam "canta, meu pai, que eu sou irmão do povo". E o singelo e bem-intencionado Tudo de Novo sumiu nos desvãos do tempo. E quando digo que "sumiu", digo literalmente. Não há menção à peça ou às músicas dessa peça (com exceção justamente de Zana) no site oficial de Toquinho, e o assunto não foi sequer aventado por Sérgio Roveri no livro sobre Guarna para a Coleção Aplauso.

Myriam Muniz, Toquinho, Sylvio Zilber (em pé), Marília Medalha e Guarnieri no cartaz promocional de Tudo de Novo (foto do arquivo pessoal de João Carlos Pecci,cedida gentilmente pelo pesquisador e músico Bruno de la Rosa)
Eis as letras de Zana e Tudo de Novo:

Zana
(Toquinho, Jorge Ben e Guarnieri)

Você já foi em fevereiro
Ver uma Escola desfilar?
Você já teve boas notícias
A um amigo pra contar?
Você já teve um grande amor
Em noite calma pra passar?

Zana, ô, Zana. Zana, ô, Zana.
Temos vinte e poucos anos,
Pouco tempo pra pensar.
Zana, ô, Zana. Zana, ô, Zana.
Temos vinte e poucos anos,
Tanto tempo pra salvar.

Ai quem me dera um fevereiro
Com vontade de cantar.
Ai quem me dera a um amigo
Boas notícias ter pra dar.
Ai quem me dera o meu amor
Com noite calma pra ficar.

Zana, ô, Zana.
Temos vinte e poucos anos,
Pouco tempo pra pensar.
Zana, ô, Zana.
Temos vinte e poucos anos,
Tanto tempo pra salvar.

Tudo de Novo
(Toquinho/Guarnieri)

O que ficou, filho meu, de um sonho,
de uma esperança de uma vida inteira
a não ser teu olhar manso e conformado?
Um filho, só, e a casa vazia,
um pai antigo e pobre e a tristeza enorme
que nem sabe ser saudade.

Canta, meu pai, que eu sou irmão do povo
repete a canção com tudinho, com tudo de novo (bis)

Filho meu, que ficou da vida, assim,
conformada a não ser um sonho,
um olhar inteiro e manso de esperança?
De um pai só na casa antiga,
o filho num pobre vazio da saudade enorme
que nem sabe ser tristeza.

Canta, meu pai, que eu sou irmão do povo
repete a canção com tudinho, com tudo de novo (bis)

Da esperança vazia
que não sabe ser nem um sonho numa casa pobre
de um pai conformado, de um filho só,
a não ser tristeza enorme
de uma saudade antiga, o que ficou, filho meu,
foi uma inteira vida.

Canta, meu pai, que eu sou irmão do povo
que esta canção tem tudinho, tem tudo de novo (bis)

(fala)
Anseio por aliviar o mal, mas não posso,
eu também sofro.
Eis o que tem sido a minha vida;
Tenho-a considerado digna de ser vivida
e de bom grado, se me fosse dada tal oportunidade
eu viveria tudo de novo.

Até onde eu sei, a música Balada da Delinqüência Juvenil não foi jamais gravada. É uma pena. Só que Guarnieri tinha uma esposa e 5 filhos para alimentar, então não havia qualquer tempo para chorar as pitangas pelo fracasso de Tudo de Novo. Aceitou o convite de Fernando Peixoto - diretor do Oficina junto a Zé Celso e em busca desesperada de um projeto que rendesse dinheiro ao Oficina - e foi para o antípoda estilístico do Arena fazer Don Juan, de Molière.

Fernando Peixoto
Fernando Peixoto participara de todos os grandes espetáculos do Oficina e durante a década de 60 trabalhara em perfeita harmonia com Zé Celso e Renato Borghi. Com efeito, eram os três diretores do grupo. Embora com linhas estéticas diferentes, tanto o Arena quanto o Oficina tinham a mesma finalidade, que era criar uma trincheira popular de conscientização política e liberdade artística. No fim da década, entretanto, o Oficina começou a partir para uma linha quase irracional de libertação (e libertinagem) moral que levou Fernando a se afastar cada vez mais, tanto é que Don Juan foi feito no Teatro Oficina mas não é considerado um espetáculo do grupo. Além disso, Fernando e Guarnieri comungavam da idéia de que o teatro era um instrumento de educação e cooptação do público, quando Zé Celso tinha muito mais uma relação de amor e ódio com a platéia, de amar e fustigar o público, desafiando-o e chegando por vezes até mesmo a agredí-lo, como se viu em alguns de seus espetáculos. Sobre essa divisão irreversível dos maiores grupos de São Paulo, naquele momento, é valioso o depoimento de Fernando Peixoto à EXPO-Arena:

Zé Celso

O Oficina entrou naquele nível desenfreado de drogas, das coisas de religião oriental, a busca do irracional, o contra-racional. (...) Pouco a pouco, o Zé Celso foi trazendo para dentro do grupo uma série de atores jovens, que ele trouxe principalmente do Rio de Janeiro. Eram jovens que tinham feito Roda Viva com ele. Virou uma coisa inteiramente irracional. Em alguns lugares, quando a gente fez a temporada, por exemplo, em Florianópolis, nesse momento, o elenco saía pra rua, levava a platéia para uma praça em frente ao teatro, fazia uma loucura, se envolvia com isso e depois volava para dentro. Imaginem a loucura. Em seguida, eu e o Renato Borghi tínhamos que fazer uma cena violentíssima, a cena do Cardeal, dificílima, ultra-brechtiana, racional, ultra-intelectual. Depois daquilo, a platéia estava num agito, numa loucura. Era um delírio. Pouco a pouco foi-se criando uma crise interna muito grande que levou ao esfacelamento interno do Oficina.

Ainda sobre a questão de meros amadores serem escolhidos ao bel-prazer de Zé Celso (prática que aliás perdura até hoje), Guarnieri comentou à revista Argumento, em 73:

O Oficina fez muito disso: achava que o sujeito, quanto mais instintivo fosse, quanto mais despreparado teatralmente estivesse, melhor para entrar em cena. Esse sujeito é que seria valioso, porque teria uma força misteriosa para colocar em cena. Mas o fato é que ele não tem. Pode ter numa noite, mas na repetição de todas as noites acaba perdendo o que eventualmente tinha para dar. É uma coisa muito desagradável, muito amadora e diletante. Além disso, é uma tendência clara de auto-destruição, fruto do teatro da agressão e da crença de que a palavra está morta.

Zé Celso respondeu a esse tipo de comentário numa entrevista à revista da Sbat, acerca de Don Juan:

Mas o trabalho todo dessa corrente também era diferente do nosso. E começaram a dizer que nós fazíamos um teatro irracional e eles o da palavra, portanto político. Isso porque tudo que fosse fora do código deles, isto é, a realidade, eles não entendiam, era irracional. O nosso código era o do corpo, em que a palavra se incluía, o deles só o da palavra.

Fosse como fosse, Don Juan acabou sendo o último espetáculo de Fernando no Oficina:

Eu estava com um espetáculo que eu tinha dirigido, Don Juan, de Molière. Eu levei o Guarnieri daqui para fazer o personagem principal. Engraçado. Eu estava indo para o teatro, um dia, e no meio do caminho, mais ou menos em frente aonde hoje é o Teatro Imprensa, eu parei e falei: "Eu não vou mais. Não vou mais porque não dá mais pra ficar junto, se ficar junto vai dar briga. E eu não quero brigar. Eu gosto do Zé Celso, eu gosto do pessoal, mas não dá mais pra ficar junto, esse é o problema. Não é questão de gostar ou não gostar. Não dá pra ficar junto porque a nossa realidade é diferente". Eu voltei caminhando, peguei o ônibus, voltei para o apartamento. (...) Nunca mais fui ao Oficina. Foi separação de casal, de casamento. E o que havia era isso, uma discordância absoluta em relação a isso.

Fernando saiu do Oficina, assim como Othon Bastos saíra pouco antes e Renato Borghi sairia pouco depois. Curiosamente, todos eles foram trabalhar com Guarnieri em peças de extraordinário sucesso, além de terem suas próprias (e vitoriosas) companhias fora do Oficina. E o Oficina definhou em sua confusão orgiástica e psicotrópica.

Antônio Pedro no papel de Sganarelo,
em Don Juan
Don Juan estreou em 18 de junho com um belo elenco que incluía nomes como Antônio Pedro, Jofre Soares, Martha Overbeck, Lutero Luiz e Tessy Callado, mas no meio desse processo de separação e morte lenta do Oficina, é evidente que a peça não podia ter vida longa. Três meses depois da estréia, Guarnieri estava de volta ao querido Arena, que lutava heróicamente para sobreviver, diante do cerco violento da censura. A peça escolhida para estrear em outubro de 70 foi A Resistível Ascensão de Arturo Ui, texto de Brecht que contava metafóricamente a ascensão do nazismo através de uma trama de gangasters.

Sem dinheiro e visadíssimo pela polícia política, Augusto Boal se juntou mais uma vez a Guarna na busca do brilho que os espetáculos do grupo obtiveram de 62 a 68. No elenco estavam Guarnieri, Fagundes, Antônio Pedro, Luis Carlos Arutin, Dante Ruy e Bibi Vogel. O sitema Coringa foi novamente adotado, mas os tempos eram outros e desta vez o resultado não foi bom. A estréia ocorreu no dia 9 de outubro. Ciente de que aquilo não era o melhor que o Arena tinha a apresentar, e sim o que era possível apresentar, a crítica foi carinhosa. Sábato Magaldi destacaria as brilhantes atuações de Guarna como Arturo Ui e de Antônio Pedro como Coringa, mas não perdoaria nem Bibi Vogel e nem a reutilização do sistema Coringa, a seu ver, já esgotado:

Guarnieri, como Arturo Ui

Uma certa insatisfação do espetáculo vem do próprio sistema Coringa, elaborado por Augusto Boal. Toda fórmula, utilizada mais de uma vez, tende a transformar-se em forma. A criação artística, feliz ou infelizmente, não pode permanecer num achado, e reclama sempre novos inventos. O sistema Coringa, que se desenvolveu até Arena Conta Tiradentes, não exprime agora aquela criatividade que seria de desejar. E a utilização de uma só atriz para desempenhar todos os papéis femininos, para ficarmos num exemplo, não parece uma escolha lógica, mas apenas pobreza de recursos. Conhecemos os problemas econômicos do Arena e as limitações de seu palco: é preciso reconhecer, porém, que Arturo Ui não teve, apesar da sustentação teórica possível de dar-lhe, uma montagem ideal.

Fagundes (sentado), Bibi Vogel e Antônio Pedro
(à direita) em cena
de Arturo Ui

Gianfrancesco Guarnieri faz um Arturo Ui convincente, sublinhando o caráter repulsivo da personagem. Antônio Pedro vem se distinguindo pela maleabilidade e, como Coringa, explica sempre com elogiável didatismo a ação em progresso. Luis Carlos Arutim, Antônio Fagundes e Dante Ruy são outros atores que se destacam. Apenas Bibi Vogel deveria ter mais experiência ou domínio para assumir toda a responsabilidade dos papéis femininos.

Em depoimento à EXPO-Arena, em 2004, o próprio Fagundes admitiria que Arturo Ui não fôra um bom espetáculo. Foi o último trabalho da magnífica e inigualável associação de Guarnieri e Boal e a última direção de Boal para um texto linear, utilizando o sistema Coringa, no Arena. Depois disso Boal dirigiria apenas o Teatro Jornal, criação coletiva, e seria preso, torturado e exilado. Era o triste fim do Arena, no Brasil.

Ivany Ribeiro

Quem também agonizava era a TV Excelsior, o que levou Guarnieri a migrar para a TV Tupi junto com Ivany Ribeiro, Carlos Zara e Eva Wilma. O ano de 1970 terminou com o saldo de três peças recebidas com frieza pelo público, a morte anunciada do Arena, do Oficina e da Excelsior, e Guarnieri trabalhando em Meu Pé de Laranja Lima, primeira das novelas de Ivany para a Tupi. Era hora de mudar.

Influenciado pelo livro ABC de Castro Alves, lançado em 1941 por Jorge Amado, Guarnieri resolveu mergulhar novamente na vida de uma grande figura de nossa história para poder manter ativa sua tribuna teatral. O poeta baiano, famoso por sua luta em favor do fim da escravidão, dava poderoso mote para que se cantasse a liberdade, mais suprimida do que nunca naqueles anos acres do governo Médici. Assim nasceu Castro Alves pede passagem. Guarna utilizou o popularíssimo programa de auditório "Esta é sua vida", apresentado por J. Silvestre, como fio condutor da trama, e com música e poesia foi desfiando a atribulada vida do célebre poeta que morreu com apenas 24 anos e um único livro lançado. Para musicar a peça Guarna resolveu chamar Toquinho.

Com fina erudição e agudíssima esperteza, Guarna conseguiu criar um belíssimo painel animado sobre a vida de Castro Alves, enchendo-o do início ao fim de petardos envenenados contra a ditadura. São diversas as vezes em que reconhecenos a voz do próprio Guarnieri nas falas de Castro Alves ou de seu irmão José Antônio: "Está todo mundo sentado de olho miúdo olhando o mundo em sua mexida e chupando sorvete. Podem tombar cadáveres do televisor que ninguém se mexe. Os mortos lhes entram pela casa adentro e ninguém se levanta da poltrona. E se falta luz, vivem na escuridão até que alguém se lembre de acender uma vela." (esta última frase tornaria-se mote para o espetáculo Um Grito Parado no Ar), "Taí, pra isso é que é bom morrer cedo, na flor da idade, antes que chegue a maldita idade do conformismo, da renúncia dessa porca razão!", "Meu coração está nas ruas, com esse povo aturdido... há gente que me ouve e que me segue. Sou uma espécie de esperança. Cada ato arrojado, cada protesto, cada afirmação de nós mesmos cria novo alento prá eles...". Nesta só faltou dizer que ele foi o cantor de Zumbi e Tiradentes: "Defendi os direitos do homem, a liberdade de palavra, de reunião e de imprensa. Condenei a guerra e a tirania; abominei o terror e a violência como armas políticas, fui o cantor de heróis populares brasileiros...", "Cidadãos, é chegado o fim da tirania. Em cada coração o sagrado desejo da Pátria livre, e Pátria livre só a conquista o homem livre, senhor de sua Nação!", e assim por diante.

O Castro Alves do grande
 Zanoni Ferrite

Foi um tiro certeiro e a peça agradou em cheio. Tratando-se de texto quase didático sobre figura histórica do século passado, os censores - sempre cretinos - não perceberam as alusões evidentes e óbvias ao momento atual e simplesmente deixaram passar. Produzida pela companhia de Othon Bastos e Martha Overbeck e dirigida pelo prórpio Guarnieri (em sua primeira direção), a peça contou com Zanoni Ferrite como Castro Alves, Fagundes como seu irmão, Dante Ruy, Jacyra Sampaio (absolutamente TODOS eles, ex-integrantes do Arena), Martha Overbeck, Regina Vianna, Luís Carlos Moraes (sobrinho de Dulcina) e outros. Estreou em maio de 71 em Salvador e seguiu em carreira vitoriosa e memorável pelo resto do país.

Este é o texto escrito por Guarnieri para o programa do espetáculo, e que mais tarde foi publicado na introdução do livro com o texto da peça (Castro Alves Pede Passagem, Palco+Platéia Editora Ltda., 1971). Guarnieri relata a maneira como contou a história de Castro Alves nos botecos da vida, tendo os bêbados como público. Agradece a Jorge Amado e a uma série de pessoas, no estilo do Samba da Benção de Vinícius e Baden Powell:

Jorge Amado
Sim, meu povo! Vivemos do canto, do homem e do seu mundo. Nossa poesia é da tua e do boteco. Geração da “Brahma”,
“caipirinha”
e “batida de limão”. Da conversa com o “bebum”. Contamos a história de um grande poeta pra um conjunto de homens. Cada qual mais de cara cheia que o outro. Eram cinco. Tudo fazedor de tijolo e telha. Operário de olaria. Contamos a vida de um moço que foi chamado “poeta dos escravos”. E quando disse eles sorriram. E quando sorriram percebemos que não muito tempo se passou. Ele morreu faz cem anos. E canta forte, minha gente, canta forte que se ouve. Ou sei lá, foi o eco que ficou! E a moçada, sorriu no sem dente, e um lá puxou a fungar escondendo o choro. E fez-se silêncio no botequim. E a gente contando a moçada vibrava e perguntava e pedia pra ouvir os versos que a gente dizia, estropiados, só no que a memória ajudava e mesmo assim o moço poeta desceu que nem em terreiro por lá comandando o encontro, abençoando a cachaça que aumentava o preto dos olhos da moçada que olhava e ouvia. E como o moço amava, reagia, sofria, cantava, chorava, morria... Contei também pra minha amiga, que na sua graça do seu amor por mim, no seu trabalho que não dá dinheiro, na sua maternidade bem compreendida, se afastou dos números e de profundos raciocínios e chorou e riu comigo uma saudade, que é de povo, saudade de um moço, soldado sem fuzil, que da palavra fez espoleta que explodiu estruturas e corações. G.G.

A "amiga" de Guarnieri,
 sua esposa Vanya Sant'Anna

Já cantou essa história, meu povo, um poeta que sussurra à cabeceira dos povos do mundo. Cantador em várias línguas, já nos falou de Besouro, de Lucas da Feira, de Rosa Palmeirão, do negro Antônio Balduíno, de Gabriela, Quincas Berro D’água, e de Castro Alves, amiga, de Castro Alves nos falou, abraçando forte o corpo cheiroso de seu amor, à beira do cais, apontando estrelas e fazendo um ABC que nem o de Lucas da Feira. Sua benção, Jorge Amado, e Vinícius que me ensinou a pedir. Sua benção, Pedro Calmon, autor da obra indispensável para o conhecimento do poeta, sua benção Afrânio Peixoto, sua benção Edison Carneiro (amigo antigo de consultas, sempre presente e orientando ao sincero cantador), sua benção Mário de Andrade, sua benção Xavier Marques. Vossa benção, irmãos de porto e destino, pelo estímulo de cantar.

As três parcerias de Guarnieri e Toquinho compostas para Castro Alves mais tarde lançadas em LP são estas:

Meu Tempo e Castro Alves
(Toquinho e Guarnieri)

Meu tempo escutou, vindo lá do passado,
Um poeta que o tempo guardou.
Meu tempo é apressado, meu tempo é danado:
Meu tempo tudo mudou.

Meu tempo mal guarda o sabor do presente
E se atira prum tempo melhor.
Meu tempo não pensa, está sempre adiantado:
Esqueceu o que sabe de cor.

Meu tempo é de morte pra vida.
Meu tempo se escorre na multidão.
Meu tempo, poeta, é um tempo engraçado:
É o tempo da lua na televisão.

Meu tempo é do homem aflito,
Apressado, angustiado, sem remissão.
Meu tempo, poeta, não é do seu tempo:
É outra a nossa canção.

Vem Amor, Vem Vingança
(Toquinho e Guarnieri)

Vem amor e vem vingança,
Cada qual com sua bagagem.
Vem a morte sem remédio

Escondida numa imagem
De moça nova, donzela,
Toda beleza e coragem.

Toma tento seu Deolino,
Põe freios no coração.
Ninguém brinca sem castigo
Com as leis deste sertão.

Bobeou, não vai entender
(Toquinho/Guarnieri)

Le - le- le - le - le
Bobeou, não vai entender
E você, se um dia bobear,
Vai entrar, eu quero ver.

Meu samba é da rua,
O meu samba é do chão.
Você que está na sua
Preste muita atenção.

O samba é de boteco,
Armado em roda de bar.
Onde o triste dá risada,
Onde o forte vai chorar.

Meu samba calça chinela,
Camiseta e bandeira.
Com amor e cansaço
Ele faz rimas na feira.

Ele é muito fácil,
Sempre sabe o que diz.
Samba meu nasce no peito,
Tão bem feito na matriz.


Agora eu peço perdão ao Vinícius de Moraes
Por essa traição com um cara que é demais.
Um bom parceiro, um diretor fora de série,
Um ator tão badalado: Gianfrancesco Guarnieri.


Na última estrofe desta música fica clara a camaradagem de Guarnieri e Vinícius na "triangulação" de Toquinho como parceiro de ambos. Só que acontece o seguinte: não houve traição alguma porque Guarna foi parceiro de Toquinho ANTES do Poetinha. Graças à sua participação no LP italiano em homenagem a Vinícius, em 69, Toquinho foi chamado para acompanhá-lo em uma temporada à qual se juntaria também a cantora Maria Creusa na boate La Fusa, em Buenos Aires. No show, que virou o LP Vinícius de Moraes en La Fusa, a única música de Toquinho é Que Maravilha, dele com Jorge Ben.

Vinícius de Moraes en La Fusa e
Como dizia o Poeta - Música Nova
A parceria efetivamente só começou em 71, no álbum Como Dizia O Poeta... Música Nova - Vinicius, Marília Medalha, Toquinho, que contou com Marília Medalha, também parceira de Vinícius. Um ano depois de Tudo de Novo. Portanto, o "traído", no bem-humorado perdão de Toquinho foi Guarnieri, e não o saudoso Poetinha. A letra se refere, de fato, ao convívio extenso do dramaturgo e Toquinho, e brinca com o ciúme que isso poderia estar causando a Vinícius. Não é outra a razão pela qual a música que abre a peça, Modinha, é de Toquinho sobre um poema de Vinícius escrito especialmente para Castro Alves Pede Passagem. E não por coincidência, a música foi parar na trilha sonora de Nossa Filha Gabriela, segunda novela de Ivany Ribeiro na Tupi, que estreou em 1° de setembro de 1971. Teve Guarnieri e Eva Wilma como protagonistas, direção de Carlos Zara e um elenco que incluía Bete Mendes, Cláudio Corrêa e Castro e Lélia Abramo, entre outros. A trilha ficou inteira a cargo de Toco e Vinícius.
___________________________________

Parte 2 deste artigo

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...