sexta-feira, 5 de março de 2010

Sobre "Capitu", de Luiz Fernando Carvalho


Quando escrevi para este blog um texto acerca da minissérie Som e Fúria, um jovem amigo me mandou um comentário dizendo: "Espero que Fernando Meirelles leia e entenda de uma vez por todas que TEATRO e CINEMA são duas coisas diferentes". Esse comentário – absolutamente infeliz – prova que meu amigo ou não viu a minissérie ou não compreendeu o que eu escrevi (ou os dois, o que acho mais provável). Som e Fúria não é obra teatral adaptada para o cinema; é obra cinematográfica que fala de teatro. E a despeito dos inúmeros defeitos de roteiro e elenco, é impecável justamente como produção e linguagem. Curiosamente, o lugar onde esse comentário desastrado teria mais sentido é aqui, no texto que ora apresento sobre a micro-série Capitu, que foi ao ar na Globo em dezembro de 2008.

Luiz Fernando Carvalho e Machado de Assis

A intenção do diretor Luiz Fernando Carvalho, de homenagear o centenário da morte de Machado de Assis e ao mesmo tempo levar a literatura brasileira para a televisão, é das mais nobres e acredito que em larga medida tenha alcançado seu objetivo. Sou obrigado a questionar, entretanto, a maneira como isso vem sendo feito. Em conversa com Antunes, há vários anos, ele me disse uma coisa que jamais esqueci, sobre direção teatral: "Não sabe fazer, põe nariz de palhaço". É o que sinto quando assisto qualquer coisa realizada por dois famosos diretores de São Paulo, e as micro-séries de Luiz Fernando Carvalho. O diretor insiste não apenas em aplicar uma linguagem teatral a todos os seus trabalhos, mas em exagerá-la ao máximo, a ponto de transformá-la em circo. O artifício foi utilizado com relativo sucesso em Hoje é dia de Maria, perdeu fôlego na "segunda jornada" da mesma micro-série, ambas em 2005, acabou passando em brancas nuvens em 2007, com a adaptação de A Pedra do Reino, e teve, provavelmente, seu ápice com Capitu.

As caretas de Michel Melamed

O primeiro capítulo foi uma tal confusão de vinhetas, inserções, cenários teatrais, e performances estupidamente caricatas que chegou a cansar depois de 20 minutos. O que se viu foi uma panacéia que misturou videoclipe, o efeito já manjadíssimo no cinema americano de ilustrar referências com imagens de arquivo, alucinações ou devaneios que tomam forma (coisa que até o Monty Python já fazia no início da década de 70), truques e brincadeiras testadas anteriormente na TV por Guel Arraes e João Falcão, e a intercalação da narrativa machadiana com elementos da modernidade como o metrô, o telefone celular e a repetição ad nauseam de uma musiquinha idiota americana chamada "Elephant Gun". Fotografia nota dez. Relevância e, sobretudo, originalidade, nota zero. Uma mistura de Monty Python com o Moulin Rouge de Baz Luhrmann, o Frida de Julie Taymor e sabe-se lá o que mais. A audiência foi de 17 pontos, em horário nobre.

As caretas de Antônio Karnewale

Bentinho (Michel Melamed) já envelhecido aparece para narrar e – lógico – é um clown. Sua maneira de andar é tão falsa que faz lembrar a velhinha surda de Roni Rios na Praça da Alegria, a fala é tremelicosa e exagerada, a maquiagem é pesada, o bigode é pintado e a interpretação é canastrona. Todos, com exceção de Bentinho jovem (César Cardadeiro) e sua mãe (Eliane Giardini), em sua família são clowns. Tudo são caretas, tudo é artificial, tudo é além da conta. Nisso, aliás, perde-se um dos melhores personagens do livro, que é o agregado José Dias, interpretado de forma quase amadora por Antônio Karvewale. Os dois parecem atores de uma peça ginasial. Culpa dos atores? Não. Da direção.

O desperdício de Izabella Bicalho e Thelmo Fernandes

Do lado de Capitu o desastre é menor. O pai, Pádua (Charles Fricks) é clown como Bentinho envelhecido, exagerado e farsesco. Já Capitu (a lindíssima Letícia Persiles) e sua mãe (a maravilhosa Izabella Bicalho) parecem ter se salvado. Num verdadeiro refrigério da motoniveladora circense que esmagou a micro-série, as duas são o que há de melhor, na interpretação natural e espontânea que dão a seus personagens. Izabella por seu talento, infelizmente desperdiçado em uma participação mínima, e Letícia por sua extraordinária e hipnótica beleza. Destaque - também pelo desperdício - é o competente Thelmo Fernandes.

A extraordinária beleza de Letícia Persiles

Minha impressão é de que tanto o artifício de transformar tudo em teatro ou circo, o mais forçado e falso possível, quanto esse disfarce de "atemporalidade", misturando Machado de Assis com o "Iron Man" do Black Sabbath, é, de fato, preguiça. É a mistura do que disse Antunes, sobre não saber fazer, combinado com a preguiça de aprender e correr atrás. O roteiro de Euclydes Marinho é bom e se prestaria a vôos altíssimos em mãos mais experientes e menos preguiçosas.

Por que transformar o Rio do fim do século XIX em uma coxia de teatro, ou em um picadeiro? Porque é mais fácil do que fazer o necessário trabalho de reconstituição da época. Por que transformar Prima Justina em um personagem que chega a perder sua graça por ser excessivamente caricato? Porque é mais fácil do que procurar uma boa atriz que saiba tirar o humor exato de uma interpretação convencional. Por que usar a ridícula "Mercedes Benz" de Janis Joplin para ilustrar um passeio de Capitu e Bentinho? Porque é mais fácil do que pesquisar a música da época, ou usar o "Odeon" de Chiquinha Gonzaga pela undécima vez, como se faz em todos os seriados de época da Globo. Melhor deixar no meio do caminho, sem fazer uma produção ambientada no tempo em que se passa, e sem modernizar de uma vez, trazendo-a para os dias de hoje. Isso não é atemporalidade. Isso é o que se faz nas escolas. Não há tecidos para fazer o figurino, usa-se o papel-crepom. Ninguém vai reparar a diferença, e se alguém perguntar, basta dizer que é "atemporal".

A Capitolina madura de Maria Fernanda Cândido

Os exemplos são inúmeros, mas o que mais choca é como a série cresce quando essa bagunça de vinhetas, videoclipes e demais bobagens teatrais e circenses dão lugar à interpretação de verdade. Letícia Persiles e César Cardadeiro se beneficiam com isso de certa forma, mas quem acaba, surpreendentemente, se destacando, é Maria Fernanda Cândido, que trabalha somente nos dois últimos capítulos. Carvalho parece ter se cansado, a essa altura, e deixou que a dramaturgia seguisse seu curso normal, com atores contracenando de verdade, sem clowns, biombos, panos, balés, piruetas e a infinidade inútil de inserções e interrupções dos primeiros capítulos. Com efeito, as melhores cenas são aquelas que envolvem Bentinho e a Capitolina de Maria Fernanda, já madura.

A jovem Capitolina de Letícia Persiles

É uma pena. Os intelectuais de cozinha, as meninas de 16 anos e os fãs do Beirut (banda que canta "Elephant Gun"), do alto de sua excelsa cultura, resolveram culpar a "ignorância do povo brasileiro" pela baixa audiência da micro-série. Estarão certos? Ou será que esse pastiche de Machado de Assis com circo não foi um equívoco palmar, em que se queimou o cartucho precioso de brindar o público televisivo com essa jóia literária? Salva-se a descoberta de Letícia Persiles. Linda já sabemos que é. Resta agora saber se é talentosa. Quem sabe no próximo trabalho tenha espaço e oportunidade para mostrar. O que terá acontecido ao esforço do fim da década de 80 e início da de 90 para se produzir obras-primas como O Primo Basílio ou Desejo? Terá desaparecido, junto ao outrora célebre Padrão Globo de Qualidade, no momento em que Boni deixou a Globo?

quarta-feira, 3 de março de 2010

Sobre "Filhos do Carnaval", de Cao Hamburguer e Elena Soarez


Seguindo a tendência das HBO internacionais de produzir suas próprias minisséries, a filial brasileira também se aventurou na empreitada e em 2005 pariu a deplorável Mandrake, destruindo o personagem criado por Rubem Fonseca. Talvez o raciocínio dos produtores tenha sido de que o público da HBO engoliria passivamente o mesmo lixo que se vê nas novelas todos os dias, então adotaram o expediente global de escalar um péssimo protagonista – Marcos Palmeira – e adorná-lo com erotismo gratuito e um elenco de cobras coadjuvantes que supririam a absoluta falta de talento do ator principal. Não deu certo e a minissérie naufragou pavorosamente. No ano seguinte, aprendida a lição, a HBO voltou à carga, destacando o diretor Cao Hamburguer e a roteirista Elena Soarez para mais uma tentativa.

Felipe Camargo e Jece Valadão

A impressão é que os dois repetiram tudo o que foi feito na primeira minissérie, só que ao contrário. Eles apresentaram uma história original, Filhos do Carnaval, escalaram um grande protagonista, Jece Valadão, e jogaram ilustres desconhecidos na coadjuvância, com a diferença fundamental de que estes coadjuvantes provaram ser extremamente talentosos. O produto, como não podia deixar de ser, quando se une uma ótima história a um elenco competente, é de primeiríssima qualidade.

Jece e Thogun

Filhos do Carnaval conta a história do bicheiro Anésio Gebara (Jece), seu império, que inclui centenas de pontos de jogo do bicho, máquinas de caça-níquel e uma escola de samba, e a relação que tem com os quatro filhos, dois legítimos (Felipe Camargo e Enrique Diaz) e dois bastardos (Thogun e Rodrigo dos Santos). O argumento e o roteiro são excelentes e fogem completamente dos estereótipos intragáveis que se veiculam sobre o Rio, no cinema de hoje: miséria e violência superlativas nos morros ou opulência nababesca e criminosa nos condomínios de luxo. Nada disso. A minissérie de Cao e Elena mostra um Rio sóbrio, verdadeiro, que tem favelas e tem a avenida Atlântica, ricos e pobres têm filhos, têm dores de cabeça e todos fazem uma coisa só, que é sobreviver.

Enrique Diaz, Rodrigo dos Santos, Thogun e Jece

A desgraça, o tráfico e as chacinas dos morros deixam de ser o cartão postal invertido em que se transformou o cinema brasileiro de hoje e dão lugar ao verdadeiro drama, que é familiar, humano, e o Rio é apenas cenário. Os temas são a ganância, a inveja, a lealdade e a deslealdade, a cobiça, a solidariedade, qualidades e defeitos de cada um e assim por diante. Jece é o velho patriarca da contravenção, Anésinho (Camargo) é o filho inconseqüente e preferido, Cláudio (Diaz) é o filho alijado e pequeno-burguês, Nilo (Thogun, fio condutor da trama) é o bastardo conformado e disciplinado e Brown (Santos) é o bastardo irresponsável e eternamente adolescente.

Diaz e Mariana Lima

As sub-tramas são todas críveis, sem maniqueísmo, sem breguice, sem serem piegas. É possível compreender a agonia de Thogun sobre o mistério em torno da morte de sua mãe, como é possível sentir o terror que leva Anésinho ao suicídio no primeiro capítulo, e o desconforto de Cláudio na lida diária com a contravenção que ele mal conhece. Brown é o retrato do adolescente que cresceu à deriva, irresponsável e impune. Sua mãe, o protótipo da mãe ignorante e complacente; Dona Dadá, o exemplo da empregada chata e falastrona; Órfão, o próprio penetra sem eira nem beira. A personalidade de cada um é burilada à perfeição. São críveis porque a um tempo nada se lhes sonega e nada se lhes exagera. E tudo graças ao texto bem amarrado e enxuto, mas sobretudo pelas grandes interpretações.

Felipe Wagner e Jece

Dá um alento especial ao coração ver que Jece Valadão – morto aos 76 anos, meses depois da minissérie ser veiculada – teve um último grande papel para fazer brilhar seu extraordinário e incompreendido talento. Os veteranos Jorge Coutinho (Joel) e Felipe Wagner (Sírio) dominam a tela a cada aparição. Os conhecidos Felipe Camargo e Enrique Diaz estão ótimos. O canalhinha Órfão ganha peso e humor na interpretação de Felipe Martins. Mariana Lima (Ana Cristina), à semelhança do que já disse anteriormente sobre Andréa Beltrão, é outra que depois de mais de uma década de trabalhos amorfos e esquecíveis, começou finalmente a ter um caso de amor com a câmera.

Em sentido horário: Shirley Cruz, Maria Manoella, Roberta Rodrigues e Sabrina Rosa

O show, entretanto, fica quase que exclusivamente a cargo dos desconhecidos Thogun, Rodrigo dos Santos, Shirley Cruz (Glória), Maria Manoella (Bárbara), Roberta Rodrigues (Rosana), Sabrina Rosa (Carlinha) e até mesmo Thiago Queiroz, que faz o menino Cris. Todos brilhantes. Filhos do Carnaval é uma luz no fim do túnel. É Cao Hamburguer e Elena Soarez ensinando nossos cineastas a fazer cinema e a Globo a fazer novelas. É lição de casa para Jayme Monjardim e Daniel Filho. É mostrar violência sem precisar de cabeças rolando e sangue sendo espirrado. É erotismo sem uma única cena de nudez frontal. É o morro pelo morro e Copacabana pelo que é, nem melhor e nem pior. Uma aula de cinema e de televisão.
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