quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O antológico Cyrano de Flávio e Fagundes - Grandes Espetáculos


Há poucos momentos, no teatro brasileiro e na vida de um diretor, em que simplesmente TUDO dá certo e se atinge algo muito próximo à perfeição; poderia citar o próprio Flávio em um sem-número de espetáculos, como O Pagador de Promessas, Liberdade Liberdade, Édipo Rei, O Homem de la Mancha e Piaf. Também podemos citar Boal em Arena conta Zumbi, Ademar Guerra em Marat-Sade, Zé Celso em Pequenos Burgueses, Fernando Peixoto em Um grito parado no ar, Abujamra em Volpone, Antunes em Macunaíma e Macbeth, Gianni Ratto em Gota d'Água, Bibi em Brasileiro, Profissão: Esperança e Meno Male, e poucos outros. Cyrano de Bergerac foi o grande momento de Flávio Rangel, em 1985. Segundo o próprio biógrafo de Flávio, José Rubens Siqueira, Cyrano foi, em muitos aspectos, a obra-prima de Flávio no teatro. E também a de Antônio Fagundes, que teve a idéia de montar o espetáculo, junto à CER, sua Companhia Estável de Repertório. Ele atingiu sua maturidade artística e comemorou o fato com a montagem do maior texto francês contemporâneo.

Inteligente como é, Fagundes sabia que não poderia errar na equipe que escolheria para montar um espetáculo tão difícil como Cyrano, que Procópio namorou durante anos e jamais conseguiu montar na íntegra, visto o sem-fim de dificuldades que a produção envolvia (as fotos de Procópio vestido de Cyrano são de uma festa artística em homenagem à Dulcina, onde ambos representaram a cena do balcão. Segundo Bibi, a cena não ficou boa, não houve tempo para ensaios, Procópio não decorou o texto todo, etc.). Quase 1 século depois de sua estréia na França, Cyrano permanecia inédito no Brasil.

Primeira decisão a ser tomada: a tradução da peça. Cyrano tinha uma tradução de Carlos Porto Carrero que necessitava urgentemente de uma atualização. Mas como traduzir um texto como Cyrano, tornando-o palatável para o Brasil dos anos 80 sem agredir a magnífica poesia em versos dodecassílabos de Edmond Rostand? O ingente fardo recaiu sobre os ombros experientes de ninguém menos que o grande poeta Ferreira Gullar, que se desincumbiu da tarefa de maneira absolutamente brilhante. Sua tradução tem a fluência de um rio; mais do que traduzir, ele melhorou Rostand no português, como é próprio dos grandes tradutores.

Segunda decisão, a mais importante: quem poderia dirigir um texto clássico com dezenas de atores, interlúdios musicais e cenas de capa-e-espada? Que diretor teria a sensibilidade imprescindível para pôr em pé o drama de Cyrano, com suas nuances românticas e trágicas, sem cair no melodrama, na pieguice? Fagundes chamou o melhor de todos: Flávio Rangel. Flávio era um Midas do meio teatral; jovem, brilhante, corajoso e com menos de 50 anos já assinara a direção de dezenas de espetáculos memoráveis e vitoriosos. Flávio foi o diretor perfeito. Autoritário sem ser despótico; Cultíssimo sem ser arrogante (ok, talvez um pouco); e por se identificar com Cyrano, compartilhava da empolgação de Fagundes em levar aos palcos espetáculo tão difícil.


A cenografia dificílima de Cyrano também foi posta em mãos mágicas; mãos que desenharam cenários por onde desfilaram desde Maria Callas até Fernanda Montenegro: o cenógrafo e diretor italiano de nascimento-brasileiro de coração, Gianni Ratto. Ratto tinha sob sua responsabilidade não apenas a interação de Cyrano com a lua (uma das paixões do verdadeiro Cyrano, que term até livros escritos sobre o assunto), mas a melhor cena de balcão desde Romeu e Julieta. Em meio a outras tarefas bem fáceis, como recriar tabernas, casernas, cenas de batalhas, um convento, e assim por diante. O resultado foi pouco menos que sublime.

E o que dizer do elenco de Cyrano? Fagundes encarnou com precisão quase parapsicológica o "herói do bom combate", nas palavras de Rangel. Cômico, patético, comovente, perfeito na ironia, sem exagerar no histrionismo (defeito que persegue Fagundes em papéis onde há comédia), enfim, brilhante em sua compoisção. Considera-o, evidentemente, o melhor papel de sua vida. No papel de Roxane, Bruna Lombardi, emprestando beleza e inesperado talento à musa de Cyrano. O grande Antônio Petrin foi Ragueneau, o "confeiteiro dos poetas". O veterano Jorge Chaia trouxe sua empolada bonomia ao fiel amigo Le Bret. O novato talentoso Antoine Rovis no papel do galã Cristiano.

O saudoso João José Pompeo foi o desprezível De Guiche. Walter Breda era o bêbado Ligniére. Tácito Rocha e Neusa Maria Faro em papéis múltiplos. Figurinos de Kalma Murtinho, coreografia de Clarisse Abujamra, e tantos outros que fizeram dessa peça uma das mais extraordinárias experiências do teatro brasileiro no século 20. A coragem de Fagundes, sua temeridade, sua inteligência na hora de escolher, seu absoluto compromisso com o talento e não com a notoriedade, nos deram um desses presentes raros e preciosos. Eis o mistério (e a tragédia) do teatro: só conhece a sensação de ver algo tão bem feito quem teve a sorte de estar presente no teatro, quando essa coleção de talentos se reuniu.

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