domingo, 13 de dezembro de 2009

Bibi Ferreira em "Às Favas com os Escrúpulos"


Bernardo, querido.

Estamos fazendo ensaios corridos da peça ÀS FAVAS COM OS ESCRÚPULOS, a partir de hoje, quarta, por volta de nove da noite. Nossa estréia como você sabe é 18 próximo. Mas se quiser aparecer dia desses, ou hoje mesmo, para ver como está, teremos imenso prazer. Venha, traga quem você quiser. Hoje, por exemplo, vem Paulo Autran e sua troupe, porque ele trabalha a partir de quinta no AVARENTO. Se puder, venha hoje, ou qualquer outro dia, quinta, sexta, sábado, segunda, etc.

O teatro é o Teatro Raul Cortez, ex FÉ COMERCIO, que você já conhece. Tem estacionamento no teatro.

Imenso abraço do
Juca (9/5/2007)
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Na primeira quinzena de maio de 2007 houve três ensaios corridos do novo espetáculo de Bibi e tive o privilégio de estar presente, graças ao convite do querido Juca de Oliveira. Abaixo vai um modesto comentário sobre esse processo, escrito na época e que acabou sendo a primeira crítica do trabalho, antes da manifestação de qualquer órgão da imprensa. Divirtam-se.

Bernardo
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O primeiro "ensaio corrido" (jargão teatral que representa o ensaio sem interrupções, do início ao fim, sem interferências do diretor, com figurino pronto, som, iluminação, etc.) não foi divulgado e ocorreu basicamente para que Paulo Autran e "a troupe do Avarento" (nas palavras de Juca) pudessem assistir, já que o velho mestre está em cartaz no Cultura Artística e não poderia comparecer à temporada regular da peça. Por conta disso, o Fecomércio estava quase vazio, com apenas 15 ou 20 pessoas.

Avisado do ensaio por Juca nos 47 do segundo tempo, fui com tanta pressa que acabei chegando adiantado, o que me deu a oportunidade de ver a chegada dos artistas. Bibi, Neusa Maria Faro e Daniel Warren já estavam se preparando quando eu cheguei. Juca, sozinho e descontraído como sempre, envergando um uniforme de ginástica, chegou lá pelas 8 e meia. Em seguida chegou Adriane Galisteu, arrumadíssima e maquiadíssima, vindo provavelmente da gravação de seu programa de TV, com 2 ou 3 amigos. Peixe-fora-d'água no meio de tantos titãs do teatro, estendeu-me um "Boa noite, como vai?", que eu interpretei como pura humildade, já que ela nunca me viu mais gordo (ou mais magro), e apreciei bastante. Jô Soares chegou com um amigo e entrou rapidamente.

Jandira Martini foi talvez a única "artista" presente e chegou sozinha, pouco antes de Paulo Autran, que veio com sua entourage habitual, formada pela esposa Karin Rodrigues e por seu chevalier servant de todas as horas, o ator Elias Andreato. Com eles parecia também estar a atriz Ariêta Corrêa, a única da trupe de O Avarento. Foi impossível ver Paulo e Jandira juntos e não rir, relembrando o trabalho de ambos há 20 anos nos primeiros capítulos de "Sassaricando", com o malfadado casal Aparício e Teodora Varella.
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Dentro do teatro, todos já acomodados, Jô Soares cumpria em pé, no proscênio, o protocolo de diretor da peça, mas estando entre velhos amigos, deixou de lado o espetáculo e entreteve a todos com assuntos que iam de sua carreira a amenidades. Falou do Teatro Fecomércio, cujo nome criticou desde o começo, julgando-o responsável pelo sucesso tímido das peças lá encenadas até hoje. Chegou a brincar com o tema em conversa com Abram Szajman, perguntando-lhe "quantos fracassos terão que ocorrer nesse teatro até que você decida mudar, finalmente, esse nome?" Jô disse, inclusive, ter sugerido o nome de Teatro "Raul Cortez" para Szajman, sugestão aceita e futuro nome do teatro (é pena que Gianfrancesco Guarnieri não tenha sido lembrado nas cogitações de Jô Soares, mas enfim...).

Outro comentário é de que o teatro é muito bonito, mas segue uma tendência moderna de deixar o palco cada vez mais largo ("palco Cinemascope", nas palavras de Jô), embora com pouca altura e sem alçapão, bastante usado em montagens maiores.

Jô falou também sobre uma de suas personalidades favoritas do show business brasileiro, o ator Túlio de Lemos (1910/1977). Túlio, famoso por sua voz de baixo-profundo e por sua altura descomunal (tinha 2 metros e 4 cm), ficou conhecido como o "baixo mais alto do mundo" e encantou platéias em peças como a Ópera dos três vinténs, de Brecht e Weill. Era amigo de Jô e o levava para assistir recitais de ópera em pequenos teatros de bairro. Jô não continha o riso pelo exagero dramático das sopranos, enquanto Túlio gritava, emocionado, ovacionando as artistas com seu vozeirão tonitruante.

Marcado o ensaio inicialmente para "mais ou menos" 9 horas, o relógio marcava 9 e 50 quando Jô voltou ao palco e se desculpou pelo atraso. O público foi compreensivo e Jô aproveitou para falar sobre um assunto interessante e que toca de perto a classe teatral: a derrocada completa da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT). A outrora célebre instituição, fundada sob os melhores auspícios em 1917 por artistas e intelectuais do nível de Viriato Corrêa, Gastão Tojeiro, Oduvaldo Viana (padrinho de Bibi), Bastos Tigre e Chiquinha Gonzaga, visava acabar com a orgia reinante no terreno dos direitos autorais relativos à dramaturgia. Hoje, entretanto, o cenário da empresa é sombrio. "A SBAT está falida", disse Jô. "Fa-li-da". Contou que em uma viagem à Europa, comprou os direitos da peça Frankensteins, de Eduardo Manet, para dirigi-la no Brasil. Tratando com a responsável pela negociação, foi obrigado a ouvir a súplica da moça: "Por favor, eu pediria apenas que o pagamento fosse feito a nós, diretamente, porque a SBAT até hoje nos deve 65 mil dólares de direitos pela montagem de La cage aux folles (A Gaiola das Loucas)", sucesso retumbante de Jorge Dória e Carvalhinho na década de 70.

Passava das 10 e 15 quando a peça finalmente começou. O texto de Juca fala sobre a corrupção política e familiar de um senador chamado Bernardo de Almeida (Juca), casado há 53 anos com Lucila (Bibi). Daí o título Às favas com os escrúpulos, em alusão direta à famigerada frase proferida pelo então ministro Jarbas Passarinho na reunião do ministério de Costa e Silva que decretou o Ato Institucional nº5 (AI5): "Às favas, Senhor Presidente, com os escrúpulos de consciência".

Juca, que tem quase 50 anos de carreira como ator, sendo que nos últimos 25 tem desfrutado de sucesso maciço também como autor, encontrou seu nicho de dramaturgo não na crítica social propriamente dita, como Guarnieri, Vianinha e Plínio Marcos, mas na denúncia política através do humor inteligente. A mensagem é transmitida não só na demonstração do crime, mas no ridículo em que ele está coberto, no mais das vezes.


Nessa investigação, Juca talvez exagere um pouco no maniqueísmo, utilizando-se sempre do capitalista malvado e do pobre ético, ambos invariavelmente palhaços. Mas a brincadeira, embora repetitiva, é válida na medida em que se investiga a cada década os momentos políticos do Brasil, tão idênticos em suas diferenças. Juca é um dos abstract and brief chronicles of our time, de que fala Hamlet, e por sua pena não veremos apenas o oprimido Nicola, de Meno Male, o bancário desempregado de Caixa 2 ou Lucila, a esposa honesta e iludida de Às favas com os escrúpulos; veremos também os estertores da ditadura em Baixa Sociedade e Motel Paradiso, a decepção total com Sarney e a Nova República em Meno Male, o escândalo dos precatórios em Caixa 2, e por fim, a corrupção generalizada do governo Lula e a falência (moral, evidentemente, e não financeira) dos políticos brasileiros, representada pelo Congresso Nacional em Às favas com os escrúpulos.

Isso sem mencionar as citações reais divertidíssimas de políticos, banqueiros e tecnocratas que abundam nas peças de Juca, num artifício desassombrado que nos remete ao comediógrafo grego Aristófanes, outro que não possuía o menor pejo em satirizar (e mesmo ridicularizar) personalidades políticas e intelectuais de sua época. Então por aí temos, ao longo dos anos, o telefonema do (Mário) Amato, o almoço com o (Ângelo) Calmon (de Sá), a recomendação do (Guido) Mantega e dezenas de piadas com Tancredo, Maluf, Brizola, Jânio, Afanásio Jazadji, FHC, e atualmente, a ridícula e falastroníssima Ideli Salvatti.
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A primeira em cena é Neusa Faro, no papel da fiel empregada "Das Dores". Veterana, Neusa dá conta do recado com relativa facilidade, embora houvesse um certo titubeio por parte de praticamente todo elenco, como sói ocorrer em qualquer primeiro ensaio corrido. Bibi foi a segunda a entrar. Não é necessário descrever a corrente elétrica maravilhosa que se criou lá a partir de então, com o Rei e a Rainha do teatro brasileiro juntos no mesmo recinto, separados por poucos metros de distância. Paulo assistia Bibi atentamente, não regateando risos e gargalhadas para a performance da atriz, de volta à comédia de costumes depois de nada menos que 54 anos (segundo Jô).

Elegante, segura e bonita, Bibi foi se soltando aos poucos. No começo ainda se ressentia um pouco das caminhadas de um lado para outro, não por cansaço, mas pelo costume, nos últimos 25 anos, de ocupar quase sempre o proscênio em performances musicais. Mas sua experiência inigualável falou mais alto e em pouco tempo ela passeava com tranqüilidade e segurança pelo longo palco e pelo texto de Juca, imprimindo a marca de seu acuradíssimo humor a cada fala e levando o pequeno público ao constante gargalheiro.

Não saberia identificar o fenômeno, mas o fato é que Bibi remoçou nestes últimos 3 anos. No início do ano passado, quando assisti a 2ª temporada do Bibi in Concert III, fiquei prazerosamente surpreso com sua vitalidade e beleza, no palco do Frei Caneca. No Fecomércio, vestida como uma dona de casa de classe alta, simples e sem ostentação, o fenômeno se repete. Com efeito, Bibi é 15 anos mais velha que Juca de Oliveira e no entanto ambos fazem um casal perfeitamente crível, na faixa dos 70 anos.

Juca, na pele do acanalhadíssimo Bernardo, está brilhante como sempre. Ao contrário do banqueiro de Caixa 2, abertamente patife, o senador de Às favas com os escrúpulos é um canalha enrustido, mais complexo, e contém, digamos, diversos matizes da canalhice humana. Juca vai do palhaço ao trágico com a experiência de quem começou pelas mãos de Guarnieri e Paulo Autran.

A secretária-amante de Bernardo é a gostosa Brenda Lopes, que abusa do gerundismo e é interpretada por Adriane Galisteu. O papel da gostosa meio vadia, mais amoral do que imoral, é recorrente nas peças de Juca. É quase sempre amante de um político (como no caso de Sandra Mara Azevedo em Meno Male e Galisteu agora) ou do endinheirado desalmado (no caso de Suzy Rêgo, em Caixa 2). Representa a desestruturação familiar e a degradação dos costumes e fará (ou não) contra-ponto à esposa denodada e fiel, que se casou jovem e por amor.

Confesso que faço restrições imensas à participação de Adriane no espetáculo, julgando que não faltam, no Brasil, atrizes com mais experiência (ou beleza) para realizar esse papel. Procurei, portanto, assistir a peça com o espírito mais desarmado possível.

Minha opinião hoje é mais ou menos a mesma: Há, certamente, atrizes muito mais experientes e competentes que poderiam fazer esse papel. No entanto, o papel de Brenda é pequeno e Adriane não compromete o espetáculo. [Observação atual: tempos depois assisti novamente a peça, desta vez com Bárbara Paz no lugar de Adriane. E - que ironia - dou o braço a torcer: preferi Adriane, natural, vulgarmente sexy e espalhafatosa na medida exata, à performance de Bárbara, exagerada, careteira e sem qualquer humor]
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Juca e Daniel Warren

O jovem Daniel Warren também foi jogado às feras e faz o pequeno papel de Mateus, o neto hacker de Bibi e Juca, obcecado pela idéia de hackear o site do FBI.

O grande Cyro Del Nero, completando 60 anos de carreira em cenografia, assina o cenário que alterna a sala de Bernardo e Lucila com o quarto de Mateus, além do chamado "Teatro de Sombras" que representa os cenários de Brasília e Paris. Não sei quem é o responsável pela iluminação, mas esta me pareceu ser o ponto "menos alto" do espetáculo, mas imagino que naquele momento estivesse tudo em fase de testes e que correções sejam feitas até a estréia do dia 18.

Quanto à direção de Jô Soares, sua maior qualidade e seu maior defeito estão em não se poder identificá-la em nenhum momento. A qualidade está no fato de que as peças de Juca costumam ter um texto tão rico e tão enxuto que dispensam qualquer arroubo criativo maior, por parte do diretor. E o defeito está em levar isso demasiadamente ao pé da letra, temendo ousar com aquilo que já é ousado; neste caso, torna-se desafio para o diretor ultrapassar o limite do texto escrito, fazendo-o transcender no palco. É quando a relação autor/diretor se transforma em simbiose, e não em mera parceria. Por assim dizer, Jô estaria, no momento, sofrendo da síndrome de "respeito excessivo" seja pelo texto ou pela intimidação natural de dirigir uma figura exponencial como Bibi.

De uma forma ou de outra, o espetáculo pertence a Juca e à Bibi. Juca o escreveu para Bibi e ela brilha do início ao fim. É argumentável que o texto não acrescente nada de novo à sua carreira; que ela esteja plenamente dentro de sua confort zone. Não é exato. Porque Bibi está longe desse tipo de comédia há mais de meio século. Desde que ela abandonou temporariamente o gênero, as coisas mudaram profundamente, e sua volta em um texto de Juca não é bem uma "volta", tanto quanto é, de fato, uma nova estréia.

No fim da peça presencio o abraço afetuoso de Paulo e Bibi. Os dois se acarinham e conversam com a intimidade proveniente de 45 anos de amizade, desde My Fair Lady. Só lamento não ter uma câmera, no momento, para registrar encontro tão maravilhoso. Para quem esteve presente, não seria demais dizer que sobre o palco do Fecomércio estava o próprio Teatro Brasileiro.

Em seguida, o prazer de abraçar Bibi, que agradece a todos da comunidade pelo carinho. Um agradecimento especial é enviado à nossa Angela Glavam - webmaster do site oficial de Bibi - que a atriz descreve como "uma amiga querida e dedicada". No contato com Bibi, simples e acessível, tenho ainda mais uma vez a certeza de que a genialidade anda quase sempre de mãos dadas com a humildade.

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O ensaio do dia 10 consistiu em uma reunião entre diretor e elenco para aparar arestas e corrigir imperfeições do primeiro ensaio corrido, realizado no dia anterior. No dia 11, portanto, chegou o momento de testar novamente o texto no palco.

Desta vez, contamos com a presença luminosa de Cyro Del Nero no teatro, o magnífico cenógrafo e parceiro de Flávio Rangel em tantos espetáculos históricos da segunda fase do TBC, como a montagem original de O Pagador de Promessas e A Revolução dos Beatos de Dias Gomes, A Semente de Guarnieri (cenário fabuloso para uma peça complicadíssima, com uma concepção cênica ainda mais complicada, primordialmente cinematográfica, urdidas pelas mentes prodigiosas e nada ortodoxas de Guarna e Flávio Rangel), A Escada de Jorge Andrade, e tantos outros. Também é de Cyro a cenografia de Esperando Godot, último espetáculo de Cacilda Becker (que aliás - poucos sabem - começou sua carreira modelar de atriz na companhia de Bibi, para onde foi levada por Miroel Silveira, no início dos anos 40).

Cyro e Juca trabalham juntos há mais de 40 anos, mas o encontro do autor Juca com Del Nero se deu em 86, quando este criou os cenários do mega-sucesso de Juca, Meno Male, com direção de Bibi.

A conversa com Cyro e o jornalista Alex Solnik foi saborosíssima, como não poderia deixar de ser. Cyro falou extensamente sobre Flávio Rangel, cuja ligação com Bibi também foi fundamental, tendo ele dirigido dois dos maiores sucessos na carreira da atriz, que são os musicais Homem de la Mancha e Piaf, vida e obra de uma estrela da canção. A amizade de Flávio e Cyro vem de 1955, da chamada "Turma da Estátua" (grupo de amigos - Flávio, Cyro, Fábio Sabag, Manoel Carlos, entre outros - que se reunia na Biblioteca Nacional do Rio, diante de uma estátua de Minerva que lá se encontrava), prosseguiu pela febre dos anos 60, no TBC e perdurou até a morte prematura de Flávio, em 87. Alex atalhou para falar sobre o papel importante de Juca em nossa atual dramaturgia, e do quanto lhe causou espanto a frondosa biblioteca do ator: "Juca é cultíssimo! Sua cultura é sólida. Ele conhece a fundo os grandes autores, e não estou falando só de literatura; estou falando de pensadores, da Política e da Ética de Aristóteles, daqueles livros que formam a base da cultura universal. Juca conhece tudo, e sempre que pode, lê as obras no idioma original". E realmente, a formação marxista de Juca o levou a esse aculturamento superior, a ponto de ele ter dado aulas de política e marxismo no Teatro Oficina, no início da década de 60.
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Augusto Boal, Juca, Flávio Império
 e Guarnieri, no Arena

O assunto político se fez presente e Guarnieri imediatamente foi lembrado, o que deu a Cyro o ensejo de comentar o memorável episódio de que fez parte, em 64, quando Guarna e Juca empreenderam uma fuga destrambelhada para a Bolívia, no temor de serem presos pela polícia política do recém-empossado governo Castelo: "Levei o Guarnieri e o Juca no meu Fusca 59 até Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul! De lá sugeri que eles pegassem um trem para Corumbá, onde poderiam cruzar a fronteira para Porto Suarez, ou Santa Cruz de la Sierra. E de lá um avião para Roma, já que o Guarnieri era cidadão italiano". Guarnieri e Juca contaram a história (de maneira incompleta, deixando um incontrolável gosto de quero mais, que hoje só pode ser satisfeito por Juca) na entrevista dada por Guarna a Sérgio Roveri, na coleção Aplauso, editado pela Imprensa Oficial.

Mas a aventura boliviana de Juca e Guarna só durou três meses, e nossa conversa foi interrompida pela abertura das portas do Fecomércio. Lá dentro, Jô fez uma única recomendação, do meio do público, junto a um grupo de amigos: "Isto aqui é apenas um ensaio, portanto qualquer coisa que dê errado... não é verdade!", arrancando gargalhadas do público. A verdade, no entanto, é que este ensaio foi bem mais dinâmico do que o anterior.

Neusa, Daniel e Adriane, que na quarta (09/05) ainda demonstravam incerteza nas marcações, estavam rápidos e certeiros em suas tiradas (o personagem Brenda inclusive ganhou uma boa piada alusiva à passagem do Papa pelo Brasil). Bibi e Juca criaram ainda mais cumplicidade e a comédia começou a ganhar aquele jogo que só vem com a repetição diária e com a exploração das diferentes nuances de cada fala, piada ou situação. O texto todo ganhou agilidade, especialmente na parte final - cena longa e de inúmeras marcações - quando é costumeiro a peça criar aquilo que no meio teatral se chama de "barriga", e chegou-se, a meu ver, muito perto da performance ideal.

O segundo ensaio corrido foi ótimo e o público - ligeiramente maior que o de quarta e ainda assim bastante reduzido - gostou muito.
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A semana de estréia de Às favas com os escrúpulos começou com a gravação da entrevista de Bibi a Jô Soares (que deverá ir ao ar na quinta, 17), e no fim do dia uma entrevista coletiva do elenco e da produção, no Fecomércio.

Na terça - 15/05 - assisti a primeira de duas pré-estréias (a segunda ocorreu no dia seguinte) do espetáculo. Público compacto escolhido pela produção, destacando-se a ausência de VIPS e presença de amigos pessoais de todos do elenco. Sobretudo atores já dirigidos por Bibi, como Francarlos Reis, Carlos Capeletti, Vera Mancini e Luiz Amorin. Também estiveram lá o diretor Felipe Hirsh e o ator Cássio Scapin, possivelmente levados por Jô Soares.

No início do espetáculo, uma inovação (ou um artifício que a direção optou por não utilizar nos ensaios corridos): um filme é projetado num ciclorama que preenche o palco. No clip, vemos cenas da revolução de 30, do velório de Getúlio, da campanha pelas diretas, a eleição e morte de Tancredo e o impeachment de Fernando Collor. Terminado o clip, as luzes se acendem e o espetáculo começa normalmente, com Neusa Faro. A sensação que ficou foi de uma introdução meio sem pé nem cabeça, ou uma edição no mínimo confusa e incompleta; num texto em que se fala de corrupção de uma maneira desabrida, corrupção moral, política, conjugal, familiar, etc., o clip mistura a revolução de 30 - quartelada que derrubou do governo a gangorra Minas/São Paulo - com a eleição de Tancredo - espécie de intervenção civil na última eleição indireta do regime militar; da mesma forma, pouquíssimo tem a ver juntar cenas da campanha pelas Diretas-Já - único movimento medularmente popular na história republicana - com a campanha do Fora-Collor - reação de uma elite política ressentida cuja manifestação se deu com adolescentes de classe alta matando aula de cara pintada, sem sequer saber qual era a acusação que se fazia a Collor.

Entende-se que venham as cenas do povo lamentando o suicídio de Getúlio e a morte de Tancredo (o político prestigioso pranteado depois de sua morte é assunto tratado na peça), mas por que justamente Getúlio e Tancredo, sobre quem jamais pesaram acusações de corrupção ou enriquecimento ilícito? Neste caso talvez tivesse sido mais conveniente utilizar imagens de Adhemar de Barros e JK, eternamente acusados de corrupção, na mesma medida em que foram amados e chorados pelo povo.

Mas o que espanta é a ausência de imagens do período Sarney/FHC/Lula, ou de parlamentares ligados à corrupção. Por que, ao invés de concentrar o video em Getúlio, Tancredo e Collor, não mostraram imagens de célebres escândalos do passado recente, como a aprovação do quinto ano de Sarney, a emenda da reeleição e - principalmente - o mensalão de Lula? Em todo caso, o clip é rapidamente esquecido quando Bibi entra em cena.
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Foi a primeira apresentação do espetáculo diante de um teatro cheio, e tendo assistido os ensaios corridos, foi curioso observar cada piada sendo literalmente testada. Impossível saber o que se passa pelo cérebro coletivo que gargalha e aplaude piadas simples e até ingênuas, ao passo que ignora tiradas lapidares, de humor finíssimo. No momento seguinte celebra a espetada velada com risos e palmas e relega ao silêncio a punhalada óbvia. Nos dias seguintes - eis o mistério do teatro - novo público terá comportamento completamente diferente, seja misturando essas reações, seja apreciando tudo ou ignorando tudo, porque também a performance de cada ator nunca é a mesma.

Nas interpretações individuais, os atores vão mais e mais se adaptando e incorporando aos personagens. Bibi voa por Lucila, em comunhão constante com o público, na risada e na tristeza; Juca vai lutando para encontrar o tom exato de seu Bernardo, bastante amadurecido desde o primeiro ensaio geral. E aqui e ali vamos sentindo o dedo de Jô, numa pausa, num esgar, numa entonação, num gesto, seguindo seu trabalho de dirigir sem poluir, fazendo o texto simplesmente fluir (que é, aliás, o que Bárbara Heliodora comentou sobre uma das direções da própria Bibi).

Depois da apresentação, o bom humor de Bibi jogava luz na coxia do teatro. Comemorava com todos o "presente maravilhoso" que lhe fôra dado por Juca. Ainda comentou que "tem um momento da peça em que eu engato um allegro vivace e vou até o fim", referindo-se à já antológica cena de sua embriaguez, em que leva o público ao delírio. E se foi para a reunião de Jô com o elenco, para dar os toques finais.

Vai chegando o momento do parto, na sexta-feira. Mas esse parto não significa uma interrupção nesse processo, mas a inclusão do público, nele.

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Os textos contidos neste tópico foram escritos um dia depois de cada evento. O primeiro foi escrito no dia 10, o segundo no dia 12, e o terceiro no dia 16.

Procurei manter fielmente a impressão inicial causada pelas apresentações, para que todos possam de alguma forma acompanhar o processo de desenvolvimento desse trabalho notável de Juca e Bibi. Para concluir, deixo um agradecimento a Juca de Oliveira, à Angela Glavam - que teve a gentileza de publicar este modesto comentário no site oficial de Bibi - e outro particular à Neyde Gallassi, amiga e assessora de Bibi.
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As fotos utilizadas aqui vêm, em sua quase totalidade, do programa da peça e foram feitas pelo fotógrafo João Caldas.

Um comentário:

  1. Bernardo amigo

    Seu comentário honesto e competente enriqueceu o Bibi&Piaf. Fico feliz que agora esteja também em seu blog, para deleite de todos. Sucesso sempre!

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